Comentário a "a esgalhar", de HorrorisCausa
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2/10/2021 14:11
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"a esgalhar", de HorrorisCausa

para que percebas
meus "percebas"
são peidos saídos...

pela ponta dos dedos
da minha mão esquerda
quando escrevo...

exalações de essências viscerais
transfiguram todas as matérias
celulares do meu ser...

inculta, sem erudição
iletrada, despreparada...

não sabe de punhetas, bucetas
incubar " egg(o)s cavos
mastubar sem recheio medular...

germinado no ventre de um keruv
(minha sábia mãe)
"fiat lux" a martelo e cinzel...

em vez de bisturi.


atenciosamente
HC

" quod tibi vis alteri ne facias "


" An ye harm none, do what ye will "

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Percurso de leitura nº 17 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Informação prévia: Partes do texto seguinte podem ser consideradas chocantes ou impróprias por leitores mais sensíveis. As referências a canções e pinturas/fotos têm um link associado.

Meados dos anos 1960 — Scott Walker torna-se um verdadeiro ídolo juvenil, com sucessos de pop açucarada que ainda se ouvem em rádios vintage, como "Make It Easy on Yourself" ou "The Sun Ain't Gonna Shine Anymore".
2012 — Scott Walker edita "Bish Bosch", álbum em que a sua voz de crooner se ridiculariza a si mesma, desafinada e combinada com uma sonoridade avant-garde a que se juntam sons corporais, como gemidos e flatos.

O que explica uma mudança tão drástica num artista? O desejo de ser original? De simplesmente provocar e ganhar a atenção dos outros?

Ao longo da história, muitos foram os que — por estas ou por outras razões — trouxeram o que é repulsivo para o campo da arte. Assim de repente, nas artes plásticas, lembro-me de "Fountain" (1917), de Marcel Duchamp (um urinol transformado em fontanário), de "Tale" (1992), de Kiki Smith (escultura de uma mulher em tamanho natural, que arrasta uma cauda feita de algo parecido com excremento) ou de "Piss Christ" (1987), de Andrea Serrano (em que um crucifixo é fotografado no meio de um duche de urina).

Em Portugal, houve até um movimento abjecionista, na sequência do surrealismo literário, que deixou marcas em autores como Pedro Oom, Mário Cesariny ou Herberto Hélder. Veja-se, por exemplo, um excerto de um dos poemas de "A faca não corta o fogo" (2008), de Herberto: "ainda me está doendo do pêso de seu beijo / na risca rosa no meio de virilha até virilha, / e entra em mim e que as coxas me estremeçam, / te mete inteiro / por boca e cu e côna adentro, / que os que louvam a Deus esse Deus os devora".

E no caso do poema de HorrorisCausa? O que a moveu a trazer para este poema "peidos", vísceras, "punhetas", "bucetas", masturbação…?

O meu ponto de partida encontra-se, curiosamente, no final do texto: duas epígrafes, uma em latim e outra em inglês arcaico.
Comecemos pela segunda, que HC utiliza quase como uma assinatura dos seus poemas: "An ye harm none, do what ye will". Trata-se de uma divisa que poderia ser traduzida como "Faz o que quiseres, desde que não magoes ninguém". Uma pesquisa simples indicar-nos-á que esta frase está ligada ao movimento Wicca, que tem raiz nos cultos pagãos ligados à natureza, aparecendo, por exemplo, nos escritos do mago Aleister Crowley, amigo do nosso Pessoa.

Assim sendo, estamos perante uma afirmação de liberdade pessoal, que é matizada com a segunda epígrafe com que o texto é assinalado: "Quod tibi vis, alteri ne facias". É curioso que esta expressão latina normalmente não tem esta forma, falta-lhe aqui uma negação. A versão tradicional "quod tibi non vis, alteri ne facias" corresponderia à conhecidíssima afirmação "Não faças aos outros o que não gostarias que fizessem a ti". No caso do poema de HC, a tradução seria subtilmente diferente: "Não faças aos outros o que gostarias que fizessem a ti". Esta subversão traz consigo uma conotação especial, da total diferenciação do "eu" em relação ao "outro", um individualismo radical, em que assume que é eticamente reprovável impor a sua identidade e os seus gostos aos outros.

Assim sendo, o recurso a imagens e vocábulos aparentemente menos dignos de poesia seria uma forma — subversiva e destemida — de demonstrar esta ética. Parece-me particularmente interessante a forma como esta reflexão é feita, de uma maneira despojada, despretensiosa e escarnecedora da seriedade do tema, recorrendo, todavia, a segundos sentidos, a símbolos e a alusões místicas fascinantes.

O título é um bom exemplo da duplicidade de significados que é característica no poema: "a esgalhar" pode significar o lado expedito de uma ação, algo que se faz com desembaraço, mas também usamos esta expressão para designar o ato da masturbação (que terá uma referência direta mais à frente no texto).

O poema avança, logo de início, para o seu objetivo: perceber os "percebas" do "eu". Entendo o segundo termo do trocadilho como um convite à reflexão. Como se o sujeito poético dissesse ao seu interlocutor: "tem de compreender uma coisa antes de começarmos…" E o que vem a seguir aponta-nos o objeto dessa reflexão: a escrita.

O que o "eu" escreve é apresentado como "peidos", "exalações de essências viscerais", algo repelente que tem a intenção de mostrar, mesmo que possa parecer ridículo, errado ou anormal. O pormenor da "mão esquerda" pode ser um sinal disso: em latim e em italiano, "esquerdo" tem a designação, respectivamente, de "sinister" e "sinistro", palavras que, em português, associamos a algo funesto, negativo.

São precisamente esses elementos nefastos ou repugnantes que "transfiguram todas as matérias / celulares do meu ser", isto é, são a expressão que mais se aproxima da verdade interior do "eu", que se diz "inculta, sem erudição / iletrada, despreparada", que nem sequer "sabe de punhetas, bucetas / incubar egg(o)s cavos / masturbar sem recheio medular".
Trata-se de alguém que experimenta uma grande agitação interior, que tem a certeza de que essa agitação é a melhor (a única?) matéria poética de que dispõe, mas que reconhece que talvez ainda lhe falte dar o passo decisivo: perder os últimos receios e conseguir a transfiguração da realidade, mesmo que à custa da exposição da faceta mais irracional da natureza humana, em toda a sua verdade.

Podemos dizer que se trata de um momento místico genuíno do "eu" e, desse ponto de vista, talvez não seja por acaso a escolha de palavras como "incubar" ou "keruv".
"Incubar", numa primeira aceção, aponta para o momento anterior ao nascimento de algo (o trocadilho com o inglês "eggs" sugere esse significado). Neste caso, o objeto da incubação seria o "ego", o princípio da realidade freudiano, que estaria prestes a despontar (pois ainda é apenas uma imagem vazia — assim entendo as expressões "cavos" e "sem recheio modular"). Porém, interessa-me muito uma segunda aceção de "incubar", associado ao ato sexual, nomeadamente aos demónios designados íncubos, que atacavam as mulheres adormecidas.
Essa ideia de malignidade combina-se com a imagem do "keruv", o anjo querubim, espírito celestial que constituiu, em certas passagens da Bíblia, o mensageiro de Deus. Esse "keruv" é ligado à "mãe" — será uma referência à Mãe Terra, adorada pelos neo-pagãos, como os iniciados nos cultos Wicca?

É da simbiose entre o maléfico e o angelical, entre o asqueroso e o místico, que o "eu" procura a sua origem e a da sua escrita, duas realidades inseparáveis. Dessa busca interior, há apenas um sinal, um "fiat lux" como o do Génesis bíblico. Nessa altura, o sujeito poético tem uma epifania: de que não nasceu do "bisturi" — símbolo da precisão fria das transformações, a que associamos as cirurgias —, mas "a martelo e cinzel" — de uma forma ruidosa e bruta, mas, no final, aberta à beleza e à perenidade, como acontece com a arte da escultura.

Assim se transforma uma provocação em afirmação de dignidade: todos os rostos da humanidade merecem consideração poética, mesmo os mais sórdidos, pois muitas vezes são precisamente estes a melhor expressão dessa criatura sempre insatisfeita, sempre à procura de ser intransigentemente livre.

Criado em: 24/6/2023 18:59
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Re: Comentário a "a esgalhar", de HorrorisCausa p/ benjamin
Administrador
Membro desde:
15/2/2007 12:46
De Porto
Mensagens: 3598
olá benjamin

fazer o que fazes , análise/crítica não é fácil. principalmente quando a crítica literária está em constante mudança e divergência metodológica.
esmiuçar, ser criterioso implica muito "engenho e arte".
implica um vasto conhecimento literário e outras áreas. ler e reler, pesquisar, estudo e tempo (arduamente.aprazível).
um verdadeiro crítico , na minha opinão, "trabalha" em conjunto com o autor e, fazes tu fazes isso. tornas os escritos e neste caso "a esgalhar" mais intelegível não só para o leitor como para o eu.autor, levando à reflexão do mesmo. (para quem o quer fazer, evidentemente)
para mim é algo precioso. é a supremacia. leva ao enriquecimento intectual de todas as partes envolvidas.

obrigada por o fazeres

atenciosamente
HC

Criado em: 27/6/2023 10:18
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Re: Comentário a "a esgalhar", de HorrorisCausa

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1943
Não há como escapar aos dois.
Devo admitir que me chocou agradavelmente este "a esgalhar" da HC.
Já à altura da publicação.

Digamos que ela os tem no sítio. Os ideais.
A coragem que vai esbanjando tem povoado as minhas leituras e dotado o site de criatividade.

Aquilo que o benjamim insiste em fazer é mostrar-nos como o elogio bem fundamentado não é um elogio.
Duma forma amiúde científica e impregnada de referências e sobretudo inteligência, é, como diz uma amiga minha, um bafo.

São aliás os dois.

Obrigado pelos dois momentos, o poema e o comentário, belas fontes de inspiração.

Abraço

Criado em: 28/6/2023 21:17
_________________
Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

Saibam que agradeço todos os comentários.
Por regra, não respondo.
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