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PASSIONAL- Notas d'um bilhete suicida - Parte 9

 
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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 9

Afonso preferiu ficar no estúdio, como era seu plano desde o início. Tereza teve de atravessar aqueles dias consolando as meninas e procurando ela própria lidar com o luto da separação. Sentia-se culpada por estar tão feliz com Júlia enquanto as filhas estavam tristes pelo pai.

Cumprindo sua promessa, mudou-se para a casa da mãe, na periferia, e colocou o apartamento à venda. Desfazer-se de seu lar foi -lhe especialmente doloroso, mas sabia que se não o fizesse aconteceria tal-e-qual a primeira separação: Ele voltaria para casa e continuariam brincando de irmãos com filhos.

Mas, d'essa vez, havia Júlia... Não podia perdê-la em nome d'um casamento de aparências.

Procurou focar no trabalho da igreja, mas mesmo lá já não sentia bem. Sua separação de Afonso foi vista como um escândalo entre os casais restaurados... Do dia para noite, seus testemunhos passaram, no final, como hipocrisia diante da assembleia. Teve de deixar até de acompanhar Júlia aos cultos, tal o burburinho crítico que lhe faziam. Procurava desde então focar no planejamento do trabalho pastoral. Os cristãos, diferente de Cristo, era como Júlia dissera "Só veem aparências...". Tereza sabia em seu íntimo que sua tentativa de restaurar o casamento com Afonso fora sincera. Não queria nem imaginar se viessem a saber de seu envolvimento com Júlia...

A pastora procurou lhe dar espaço para reorganizar a vida, embora os compromissos da igreja as reunisse diariamente. Preferiam se ver no apartamento d'ela. Raramente se encontravam na igreja. Em público, jamais.

Afonso sabia d'elas, mas também elas sabiam de seu segredo... Uma indiscrição anulava a outra. Se reveladas, acabaria como um bate-boca de ressentidos com as meninas sofrendo no meio. Um pesadelo que não interessava a ninguém.

A mãe a recebera com olhos fatalistas como se dissesse "eu não te disse?" Tereza voltava ao seu quarto de solteira enquanto as meninas dividiam o quarto que fora de seus irmãos. Morar com a mãe, contudo, era importante para que pudesse continuar acompanhando a pastora pelo país. Em todo caso, Tereza tinha de esperar a venda do apartamento para fazer qualquer plano. Sentia-se pronta, inobstante, para acompanhar Júlia ao Sudão ou aonde quer que ela fosse com fumaças de que se manteria ao seu lado mesmo durante a missão,

Júlia, contudo, mantinha-se categórica -- "Lá não é lugar para ti, meu amor, muito menos para as meninas. Se eu tiver de ir ter com Carlos será para convencê-lo de que é inútil voltar ao Sudão enquanto não houver uma zona pacificada garantida pela ONU... -- advertindo no fim -- O que não significa estar seguro...

Júlia tentava tirar da cabeça de Tereza qualquer ilusão de ir para África: -- "O que aprendi lá é que inimigos e aliados podem mudar todos os dias. É um cenário complexo, mutante: Há milícias também entre as etnias meridionais, grupos cristãos armados... Na África, nada nunca é simples; não são azuis contra verdes, cristãos contra muçulmanos... São desesperados contra desesperados, uns mais bem armados e outros menos." -- e insistia diante d'uma Tereza confusa -- "As fronteiras foram abstrações arbitrárias desenhadas por projetos colonialistas, sem qualquer vínculo com a história e os costumes. Por todos os lados, etnias rivais foram reunidas indiscriminadamente em territórios. Há dezenas de ruandas espalhadas pelo continente."

--"E os governos?" -- insistiu Tereza -- "Em geral, líderes comprometidos com essa ou aquela etnia chegam ao poder e se mantem oprimindo as demais etnias." -- respondeu a pastora -- "Há muita corrupção em todos os níveis de agentes públicos. Todos se sentem na obrigação de depenar estrangeiros. Muitos, inclusive, acreditam que dificilmente os recursos enviados para melhorar a vida das pessoas se tornem no final algo diferente de armas, drogas e munição." -- e concluí desalentada -- "É o próprio inferno de boas intenções..."

As duas passaram aquela noite juntas assombradas pela ideia de serem subitamente separadas pela missão. O pastor Carlos lhe chamava por skipe semanalmente pedindo relatórios financeiros e discutindo o planejamento da missão. Ele não estava disposto a desistir. Júlia teria de confrontá-lo pessoalmente.

... e continua ...


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
Autor
RicardoC
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