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Cidade insana

 
As 8:15 eu acendia um baseado. Quatro bolas eram o suficiente para atravessar a cidade a beira mar. 8:20 eu saia pelo portão do condomínio. Os próximos vinte minutos, seriam os vinte minutos mais longos do dia, especialmente no final da tarde e em épocas de temporada. Uma insana cidade turística. Em menos de três quilômetros de percurso eu via mais que o suficiente por uma semana de pedalada. Desde famílias argentinas e trabalhadores haitianos à gringos da Europa e chineses trazendo vírus. As atendentes de caixa dos supermercados vieram do nordeste. Os vendedores de loja do shopping eram do sul. Mulheres nas entradas das baladas, vestidas como putas para atrair caras babacas. Bêbados ao volante, abrindo a porta do carro para vomitar pelas avenidas. E na BR, grupos de motoqueiros barbudos viajando em suas Harleys. Hippies nômades, vendendo suas artes e curtindo um reage. As pessoas falavam em espanhol pelas ruas, como se a gente fosse obrigado a entender. Uma grande mistura de culturas, lingagens e sotaques, em meio a maresia camuflada pelo cheiro de milho cozido. Nessas circunstâncias, a gente se torna indefinível. Qual sotaque uma fugitiva deveria usar, morando na cidade mais visitada do mundo? Eu quis manter meu sotaque caipira, para que eu nunca esqueça de quem eu sou. Sem querer, acabei trazendo um pouco do sotaque catarinense. Talvez eu precisasse esquecer um pouco do que eu era. E continuo indefinível. Sigo o meu caminho rumo ao trabalho. Vejo o mar, vejo prédios, vejo gente. Gente mergulhando no mar em pleno inverno. Tem que fazer valer a pena o valor da viagem. As 8:30 os surfistas saem do mar. Grupos de ioga na areia, e grupos de jovens maconheiros que provavelmente já estavam ali desde o nascer do sol. Eu vi o homem aranha fazendo crossfit na praia, e o batman andando de skate na faixa de ciclismo. Pessoas de patins, de bicicleta, simples, dupla, tripla. Mulheres de biquíni com molas na sola do tênis, pulando e correndo. Gente fantasiada andando de patinete em um Halloween fora de época. Era uma faixa muito disputada. Os tralhadores, a galera finess, os velhos saudáveis, atletas treinando, turistas passeando em sua bikes e carrinhos alugados. Skatistas (em forma de humano e Buldogue Francês), corredores com seus Whippets e Border Collies correndo ao lado. Acidentes eram comuns. Sempre tinha um turista distraído andando a pé sobre a fixa. Nessas horas, eu queria ter uma buzina na minha bike para não precisar xingar ninguém. Cachorros por todos os lados, andando em suas guias, e as ruas eram limpas. As pessoas recolhiam os dejetos de seus animais. De onde eu vinha, não tínhamos essa cultura... Os cachorros andavam sozinhos pelas ruas e ninguém sabia de seus excrementos, a não ser quem pisasse em cima depois. É possível educar as pessoas. O trânsito as vezes, era caótico. Aquelas ruas não tinham uma infra-estrutura suficiente pra receber tanta visita. Na avenida atlântica, eu via carros conversíveis. Ferraris e Mercedes circulando pelas ruas era normal. A viatura da polícia era um Camaro. E ao lado, na faixa de ciclismo, os trabalhadores em suas bicicletas, carregando uma enxada e tentando chegar vivo num emprego de salário mínimo pra garantir o pão de cada dia. Realidade cruel... Era o que eu ouvia no meu fone de ouvido. Quando eu finalmente chegava na barra sul, o sol parecia brilhar mais. A parte mais cara da cidade, onde os ricos guardavam seus barcos. As pessoas não queriam circular muito por ali, logo eu me sentia em paz. Parei e esperei o bondinho passar, atravessei a rua e olhei as horas. 8:40. Chego no estacionamento ao lado do meu trabalho, onde deixo minha bike. Em vinte minutos de pedaladas no sol, meu suor é proporcional a tantas coisas aleatórias vistas durante o percurso. Depois de cadear a bike, sento no degrau dos fundos de um restaurante para tomar fôlego. Aproveito a ocasião e acendo um cigarro. Sinto o cheiro do camarão vindo da porta da cozinha. O céu está tão azul, e isso me deixa triste. Nessa hora toca Legião no fone. Trilha sonora ideal para entrar e começar mais um dia de cão nesse lugar tão deprimente. Eu entro as 9:00.

 
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Leepeters
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