Poemas : 

sou um louco que sabe tocar acordeão (2)

 
(quando a morte me levar não ergam bandeiras negras.
encham sim os copos com vinho;
mas cuidado que a Gula azeda a garganta!)



Ó FASCINADOS Produtores de Lixívia!
Será que um dia da vossa produção dará para desinfectar o mundo?
Então dois dias
Que venham lá três! Três dias sem sair de casa
Três hipóteses para sobreviver
Três terços de manhã à tarde e à noite
Esta mosquitada vai toda de uma vez!

O estudante precisa de um canudo
E eu preciso de um canudo para bater no estudante
Aprender é aqui
De A a Z nas estantes
Como o borrachão nas adegas
A teoria não muda a fralda a ninguém
Não foi preciso esperar pela luz
Eu nunca me borrei!
Sou auto-suficiente
Na tropa toquei clarim e mandei o exército regressar

Elogiaram-me o pescoço
Que daria para bom laço
Disseram
A sorte é que tenho amigos corruptos
E num empurrão elevaram-me a mártir
Os heróis só aparecem nas estreias
A mim espetaram-me com bíblias na mão
Para vender de porta a porta
Na primeira porta que bati beijaram-me os pés
Só porque eu tinha cabelos compridos e as vestes compridas

Mudei de marca de cigarros
Os intelectuais souberam logo!

Eu cá sou de mudanças
Vou ao Paulista porque posso ficar a dever
E tem boas entradas

Demitido sou noutras ruas
Um dia engoli uma bola de queijo
E ninguém me deu valor
Toquei Bach com os dedos metidos na boca
E fizeram-me olhos negros

A inteligência não sai na bica da fonte
Acreditem! Eu já tentei!
Meu cérebro gorduroso apostou tudo numa rixa
Se disser que ganhei minto

O maior pecado é não pecar e ver os outros pecar
O maior cemitério é o que está a um palmo acima das nossas cabeças
Ou talvez menos
Lindas paisagens!
Lindos azulejos!
Lindos seios que aquela mulher tem!
O eco ecoa sempre que a ponte me tenta

Não!
Não vou acender o isqueiro quando houver fuga de gás!
Não vou a Roma só porque dizem que lá a fé é mais barata!
Aprendi a andar de bicicleta tarde
Mas olhem como eu pedalo! Faço curvas
Contra-curvas
Tiro as mãos do volante
Sabia que é tudo uma questão de sistemas emparelhados?
Domino papagaios como nunca dominei uma mulher
Fico para ali horas a vê-lo voar
E eu na terra
A trocar os fios da corrente eléctrica a ver no que dá

A ganância já se vende nas bancas
Os jornais falarão de mim quando não houver massacres
Manifestações
Vítimas violadas
Santos roubados
Congressos de pívias
Estarei eu
Diante e exposto

A dar sangue aos cabeçalhos
A dar cursos de divergências
A tomar o lado do contraditório
E tudo: ah! Que lindas são as paisagens maciças!
Os ventos nem conseguem mexer uma folha!
Nada fecunde
Nada transmite ao Outro o que o Outro disse
Nada mais vai parar aos museus
Toda a História será revista por bisontes
As clínicas a tornarem-se casas de passe
Nada será mais Ontem
O Futuro tem a data do século anterior
Nos blocos operatórios joga-se à bisca

Quem mexer na minha cabeça terá de responder!
E aviso que tenho amigos maus
Fazem truques de maldade
Mastigam livros inteiros do Saramago em vez de chiclete!

A minha missão é pôr fim aos fingimentos
Tenho um mindinho que detecta tudo
Quem se mexer está a levar!

Os meus lábios estão inclinados para a morte
Mas não me empurrem!

A minha única moral é ser contra os moralistas
Tenho uma mulher que me abre o lençol
Prepara-me o lanche e regressa ao mar

O mito há-de ser mitigado
Colocado na batedeira a mil rotações

Não julguem que eu não amo
Amo! Amo os glaciares que estão derretendo
Amo os ombros do homem que carrega
Amo a liga da mulher oferecida
Amo o espectáculo dos amantes
Amo o pecador à saída da igreja
Amo a plasticidade com que me beijam!

Ó noites fartas ó noites vadias!
Tomai meu pulso enquanto bate
O elixir já se esgotou
Restas-me tu ó mesa dos condenados!
Ó licenciada em vampirismo!
Verifica-me o sal antes de beijar a pedra
Esta pedra que aqui vês a servir de janela
Tenho pena que não haja árvores para subir
Era puto e lembro-me que subia subia subia
Agora
Que a tísica sede me toma
Fico aqui
Na escrivaninha do tempo
No silêncio intemporal
Coleccionando raridades
Lançando beijos às moças das fábricas.
 
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flavio silver
 
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Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 10/03/2009 10:40  Atualizado: 10/03/2009 10:40
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8104
 Re: sou um louco que sabe tocar acordeão (2)
No fundo é muito complicado ser uma pessoa simples...Gosto sempre de ler o que escreves...Abraço.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/03/2009 10:48  Atualizado: 10/03/2009 10:48
 Re: sou um louco que sabe tocar acordeão (2)
Flavio: permiti-me comentar teu fantástico
texto.

Acho que realmente és um louco que sabe tocar acordeão à margem do convencional.
E viver à margem observando tudo, tirando conclusões, só é para mentes privilegiadas,
iluminadas que veem longe...

Parabéns por partilhar conosco seus pensares.

Abraço daqui do BR.

REGE

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 10/03/2009 11:31  Atualizado: 10/03/2009 11:31
 Re: sou um louco que sabe tocar acordeão (2)
Conheço o texto e já o ouvi até declamado. Estou é ainda à espera de um livro autografado.
Uma das tuas melhores obras.
O final deste excerto mata-me, é fantástico, já te disse...
Abraço


Enviado por Tópico
anjinho_perdido
Publicado: 10/03/2009 11:56  Atualizado: 10/03/2009 11:56
Participativo
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Localidade: Açores
Mensagens: 42
 Re: sou um louco que sabe tocar acordeão (2)
Amei cada frase deste teu poderoso texto.
Sublime!

Parabéns!

Enviado por Tópico
CarlosCarpinteiro
Publicado: 10/03/2009 12:03  Atualizado: 10/03/2009 12:03
Super Participativo
Usuário desde: 22/02/2007
Localidade: Mondeville
Mensagens: 196
 Re: sou um louco que sabe tocar acordeão (2)
Excelente apenas.
Um abraço