António Ramos Rosa : Poema dum Funcionário Cansado
em 02/06/2007 13:10:00 (13531 leituras)
António Ramos Rosa

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só


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Enviado por Tópico
AlvaroGiesta
Publicado: 13/06/2009 07:35  Atualizado: 13/06/2009 07:35
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 Re: Poema dum Funcionário Cansado
Mais uma vez um dos meus poetas preferidos.
Este ao lado de Herberto Helder e Pessoa.

Apenas uma advertência ao adoptante deste poeta:
A estrutura do poema não devia ser desvirtuada. Isto é, devia respeitar-se a estrutura tal qual o poeta escreveu o poema.
Este, por exemplo, que faz parte do livro "VIAGEM ATRAVÉS DE UMA NEBULOSA" (que também devia ser referenciado), é composto por três longas estrofes que aqui o adoptante reuniu numa estrofe só.

Para que, quem comentasse o poema - não dizendo apenas se é bonito ou feio, mas comentá-lo seguindo linhas de leitura - o pudesse fazer de ordem a observar, nas várias estrofes, a gradação com que o poeta exprime o sentimento.

Por exemplo neste:
Na 1.ª estrofe que terminaria em "... num quarto só), o poeta coloca-nos perante alguém que se encontra muito só e confuso. Isto é, o "eu poético" está marcado pela confusão e pela solidão

Na 2.ª estrofe que termina com a interrogação "Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?", o sujeito poético, com ironia "o chefe apanhou-me com o olhar lírico na gaiola do quintal da frente" apresenta-se como "um funcionário apagado", "triste", "cansado". É um auto-retrato irónico "debitou-me na minha conta de empregado" a criticar a sociedade aqui na pessoa do chefe que obriga ao cumprimento do dever e na pessoa do empregado que afinal cumpre sem orgulho o seu dever do qual se sente extremamente cansado.
E o valor da interrogação ainda na segunda estrofe a remeter-nos para aquilo que afinal é toda a poesia de Ramos Rosa.
Uma interrogação constante na busca do sempre novo, ou seja, da palavra que se dá a descobrir.

Na 3ª estrofe, que é o resto do poema, o sujeito poético evade-se por pouco tempo para as "velhas palavras generosas", para o "amigo menino" de outros tempos mas depressa se sente irremediavelmente só nessa existência.

Alias, todo o texto é uma gradação disso mesmo: Uma recusa ao sonho no lugar a que o sujeito poético tem direito na vida.

Desculpem-me esta escalpelização que faço do texto, mas a paixão que sinto por determinados poetas da nossa literatura leva-me a este exagero sempre que os leio.
Por isso tento, aqui, fugir da sua leitura para não dar ares daquilo que não sou.
É que talvez esteja anquilosado poeticamente dado que, também eu, antes de escrever um poema o idealizo na mente e, tantas vezes, o estruturo no papel de ordem a que ele possa dizer no fim aquilo a que me propus no princípio, antes de o passar à sua fase final.

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