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Comentário a “a semente na taça inventada” - de Zita Viegas

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6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Este texto também pode ser lido na secção de comentários do autor.


Começo por afirmar que adoro “ter” de fazer este comentário.
Zita Viegas é, neste site, um caso raro de lirismo e qualidade. É sempre muito bom sinal quando ela volta. E escreve, e muito.

Começo, também, duma forma que me é pouco habitual. A análise estrutural quanto ao número de versos é, de certo modo, peculiar. A primeira estrofe tem 13 versos e as restantes 3, 6.
Descobri, via google, que há um termo para o medo ao número 13, a triscaidecafobia. Dizem dar azar. Não me vou alongar nessa superstição.
A conjugação do número 666 também não costuma ser bom augúrio. A associação a forças do mal tem sido divulgada mais recentemente do que o primeiro.
Ambos têm algo de negativo.
Mas será este poema assim tão negativo?
Em matemática pura, quando se junta dois números negativos surge um positivo (menos com menos dá mais).

Lendo o poema, o título é bastante intrigante.
“ A semente na taça inventada” é uma metáfora que pode ter várias interpretações.

A “...taça...”, como receptáculo pode ser um recipiente simples (mas com elegância, não um simples caneco), como pode ser o útero, ou o santo Graal.
Os recipientes simples podem levar todo o tipo de substância. Desde a água, o vinho, a terra (ser um vaso).
O útero é o ponto fértil para a reprodução animal (desde o Homem ao rato), portanto de representação de crescimento, evolução.
O santo Graal é o recipiente da espiritualidade.

“ A semente...” é símbolo do projecto, do começo , da criação. Nas plantas é o início e a certeza da flor (fim) nas circunstâncias certas de solo e clima.

O “...inventada...” é a palavra mais literal do conjunto. Mas nem por isso menos bela.
Os inventos são o brilho do engenho, são criação pura e dura, mas pela mão do Homem. E, se muitas taças são cópias que advém de processos industriais, cada modelo original foi inventado.
Assim como a primeira das primeiras, o arquétipo.

Não há como não achar este título poético.


A primeira estrofe começa com um verbo na primeira pessoa.
Portanto o princípio é de presença. E o verbo é germinar. Ora o verbo vem do Latim germen, derivado de gen-men,  descendência, crescimento. Faz-me pensar em germes e a doença (estranhamente).
A conjugação “Germina no peito\uma semente...” parece ser referência metafórica ao coração, para ser no “...peito...”. Gosto desdes dois versos na melodia, no ritmo que a métrica permite. Um começo BOM.
Segues com um “...Pousada numa taça inventada...”. O pousada faz-me lembrar os locais que usamos que não são as nossas casas, mas que usamos para re-pousar. A invenção da taça parece pertencer a um debate poético acerca do papel do coração nas relações, ou no amor\ódio. Não será sempre o cérebro a ter esse papel?

Os dois versos seguintes são talvez um indicador. “...De pedra\ou de silêncio...” coração de pedra ainda pode ser sem sentimentos, mas de silêncio?! Mais complexo... Será que sente, mas esconde?
Quando me ponho a fazer perguntas é bom sinal.
“...Por vezes, engana a razão.\ Outras vezes, é como trigo imaturo,\ ondula quando tocada...”. As emoções, as endorfinas, afectam um bocado o normal funcionamento cardíaco (coitadas das coronárias). O “...ondula quando tocada...” tem uma forte carga sensual. De novo emoções (ou sensações?).

Mais dois versos que reparo: “...Muitas vezes, abre em chaga, \ em tremor oculto...” os angófonos usam a expressão heartbreak para os desgostos amorosos e para a depressão que deles advém. A metáfora da “...chaga...” para fugir è desgastada ”dor” é mais uma prova do lirismo supracitado, ou no mínimo, empenho. O “...oculto...” repete o silêncio e funciona quase como um pleonasmo escondido (lol).

A primeira estrofe segue cheia de possibilidades e os versos seguinte desafiam.
“...Leva dentro a passiflora,\ em toada, \ de canto de canora....” A passiflora é a flor do maracujareiro (palavrinha difícil) em inglês (de novo) passion fruit. E aqui a paixão volta ao de cima.
Sendo a paixão, aquela da duplicidade amor\dor. Emoções fortes, refere o sujeito poético, quase sem eu. O canto é outro nome para poema ou escrita. A suavidade que o “...canora...” implica entra em contrassenso com a “...passiflora...”, o “...em toada...” podia-se juntar e dizer entoada, que riqueza...

Da segunda estrofe destaco uma expressão “...os trevos ausentes...”. Gosto de trevos e azedas dão para mastigar o caule.
Os trevos, e os de 4 folhas são, como o número 13, um convite à superstição. Dão boa sorte, logo se ausentes determinam a sua falta. Belo.

A terceira estrofe começa como a segunda. A repetição do elemento primordial “...semente...” persiste.
Mas gostaria de destacar os seguintes versos que vou tentar ler:
“...Semente que respira, \ o ar fechado \ do espelho...”
Temos de fazer a leitura de trás para a frente.
Há um espelho que tem ar fechado.
O espelho é algo que serve para refletirmos e para nos refletir. Um olhar para nós mesmos. Uma alusão ao auto-conhecimento.
O ar é um dos elementos de vida( como a água). Estando fechado, estará preso? Ou guardado? Protegido?
Escolham.
E a semente já decifrada (parcialmente) respira esse ar.

Na última estrofe o poema acaba, em perda. Há quase um desinteresse que notamos quando “...esmorece...”. O poema como o futuro e como o tempo.
Do ponto de vista sonoro o “...palpita...” tem o efeito interessante de parecer um coração a palpitar, com os verso muitos curtos e leituras breves.


a semente na taça inventada



Germina no peito
uma semente.
Pousada numa taça inventada.
De pedra
ou de silêncio.
Por vezes, engana a razão.
Outras vezes, é como trigo imaturo,
ondula quando tocada.
Muitas vezes, abre em chaga,
em tremor oculto.
Leva dentro a passiflora,
em toada,
de canto de canora.


A semente tece
a rama do sangue.
É berço e é esquife.
Lugar de poentes sonolentos,
vive em conluio,
com os trevos ausentes.

Semente que respira,
o ar fechado
do espelho.
De paixão, nem sempre.
De dor
ou rosa em brasa, por vezes.

O futuro cava-lhe
o tempo, que velozmente esmorece.
Palpita...
Palpita...
Palpita.
Bate fundo e perece.






Criado em: 13/2/2022 8:03
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Segunda leitura



Depois de refletir sobre a censura e sobre algumas respostas ao primeiro comentário, resolvi fazer uma segunda leitura.
Sobre a censura muito haveria a ser dito. O lápis azul passou a ser um símbolo odioso da prisão de expressão.

Há dias fui desafiado a ler um livro de Saramago chamado “a noite” (sim, o título é em minúsculas). É uma peça de teatro com poucos golpes de génio.
Quem conhece o Nobel sabe que a ficção é a sua praia (sim para mim ele não morreu).
O drama todo passado na redação de um jornal sem nome, fala abertamente de censura. Mas, não tanto do lápis azul (embora esteja lá), mas mais dum jornal do sistema, do jornalismo falso e resignado, imoral.

E de repente tive uma ligação direta com “os figos secos”.
Sinto que debrucei-me pouco na segunda metade do poema, uma vez ter achado a primeira tão forte.

Apesar da voz do sujeito poético estar quase sempre no tempo presente, gramaticalmente, ela tem cheiro (não perfume) a pretérito imperfeito.

O autor aborda o tema opressão\abuso e sujeição\submissão duma forma tão forte e particular que ao leitor pode escapar uma temática ainda maior.
Se formos corrompidos desde cedo, e desde sempre não conheceremos mais nenhuma realidade. Se for usada a força bruta e desproporcional, cada vez que houver o mínimo sinal de “...revolta...”, pode ser quase utopia ela nascer.

Se, quem tem memória, se lembrar dos tempos de ditadura (geralmente militar ou militarizada), sabe que a miséria dos figos secos, do frio, do cheiro a fumeiro, dos pés descalços, do fato de domingo, da fome e da sardinha dividida, da escolaridade só para alguns poucos (escola só 4 anos, aos 10 vais trabalhar para o campo ou para as obras), da riqueza severamente mal distribuída, da policia internacional da defesa do estado (é melhor não dizer as siglas, é proibido), do medo a chegar ao terror, foi uma verdade em Portugal em décadas de prosperidade industrial pelo resto da Europa, e ainda é uma realidade na atual Coreia do Norte.
Misturei tudo.
Cuidado que o Tarrafal, afinal, ainda é uma ilha inteira.

“a noite” de Saramago tem um final feliz, mas se na peça recuassem dez anos haveriam figos para o lanche, atrás de uma misera igreja qualquer...

Criado em: 10/2/2022 21:25
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Re: Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Interessante por onde o tema foi-se desenvolvendo.
A censura, na minha opinião é altamente (totalmente) censurável.
O Zé escreveu algo muito correto. A sociedade de hoje está muito estranha. Há uma cultura excessiva do mainstream.
O politicamente correto, apenas faz sentido se, quem o praticar, o pensar verdadeiramente. Isto é, não está mais preocupado com aquilo que o vizinho do lado possa pensar.

Sempre houve mecanismos de auto-censura. Dentro do ser humano, segundo algumas corrente de psicologia, podemos fazer a divisão do Homem em consciente, subconsciente e inconsciente, tudo no mesmo individuo, e a representação da importância de cada um destes mecanismo da personalidade e da mente é feita no formato de pirâmide, nessa ordem.
É o subconsciente que serve de filtro para o inconsciente, que depois é representado no consciente, salvo erro.

É óbvio que não dizemos tudo aquilo em que pensamos.
Mas, o facto de se estarem a registar comportamentos em massa, que parecem agir como fosse um sistema de censura, como foi feito em regimes de censura ditatoriais, é alarmante.


P.S. Nota, se alguém deste site fizesse o que o benjamin refere no final, ainda iamos ter uma conversinha....



Criado em: 9/2/2022 8:09
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Comentário a "Nos teus vocábulos " - de Abissal

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Este comentário também pode ser lido na secção de comentários anexa ao texto.
No fim do mesmo, pode-se ler o poema na integra.



Eu favoritei este poema pelo verso mais prosaico que nele nos apresentaste, o último. Desconcertante...

Três estrofes, não muitos versos, rima livre e despreocupada de métrica e outros formalismos, há neste poema uma constante que é indisfarçável: o sorriso.
Pelo meio há alguns pedidos de desculpas, não sei se assim tão sentidos quanto isso.

É um poema feliz, apesar de tudo, que consegue fugir, por um triz, do enjoativo e do lamechas.

Acho, por exemplo, o verso "...Por favor, sorri comigo,..." uma proposta indecente a caminhar para o erótico.

Na primeira estrofe apresentas, desde logo, um verbo reflexo com que me identifico imenso "...perco-me...". Os "...vocábulos..." com "...certezas..." fazem a apresentação do interlocutor do sujeito poético, e essa admiração patente.

O último verso da primeira estrofe é o momento mais negro, no meio de muita luz. Os calos têm muita idade e dor.
As "...lágrimas...", essas podem ter várias origens, como a felicidade, mas o pedido de desculpas parece indicar outra.

Outro dos momentos que é de destacar, aparece nestes dois versos da terceira estrofe:
"...Quando te escondes
Invades a minha zona..."
E é giro como o esconderijo de alguém pode ser o território doutrém.

Do último verso já falei.



No teus vocábulos


Perco-me nas certezas dos teu vocábulos,
És tão difícil, mas para mim és tão óbvio, não tens filtros.
Sorrio,
Desculpa por sorrir das tuas lágrimas,
Calejei tudo o que me possa incomodar.

Por favor, sorri comigo,
Amanhã pode ser tarde,

Sabes,
Aquilo que nos ficou de loucos
Quando te escondes
Invades a minha zona.
Apetece-me sorrir agora.

Se eu sou gorda, tu és tão parvo.


Criado em: 5/2/2022 14:12
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Comentário a "Sandeman ou a parábola dos figos secos" - de benjamin

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Este já esteve, e permanecerá, na secção de comentários do poema.
Por sugestão do criador deste bloco do fórum que, por coincidência é o autor do primeiro poema que aqui insiro.

O poema, na sua integra, virá depois de comentário

Afirmo, sem medo, que este poema sabe a tabu, do primeiro ao último verso.

Sandeman é uma marca conhecida de vinho do porto.
A sua imagem, ou logótipo, que vem bem claro no rótulo dessa marca (passo a publicidade), é um misterioso homem de capa, todo ele anónimo e envolto numa sombra escura e robusta. Há quem diga que tem o nome de Don.
Sem grande dom, é denominação de nobreza, como o Sir em inglês.
Além de circular pelo mundo engarrafado, é um catrapázio gigante, em Vila Nova de Gaia. Tenho a memória de um tio meu chamar àquele monumento, Roque Santeiro, numa conversa jocosa que ele consegue ter, quando alegre. Também a personagem da novela era misteriosa.
Sobre capas e tios, mais à frente.

Os figos são flores invertidas.
Pessoalmente, acho-os deliciosos. Ir aos figos é uma boa maneira de ir parar ao hospital. Os ramos mais altos têm os maiores.
A folha da figueira foi a primeira peça de roupa, segundo o antigo testamento. Uma das primeiras consequências do pecado original.
Figos secos lembra-me o natal e a minha incapacidade de lidar com doces.
A desidratação destes frutos não tem muito que se lhe diga: é deixar ao sol.
Assim, conservam-se quase para sempre, e é proibido misturá-los com frutos secos, como a amêndoa, ou a noz. Ou, em alternativa, deito a balança no lixo.

Já que falamos do antigo testamento, ele é pródigo em parábolas. Textos de forte moral em que o uso de metáforas é abusivo. Interessante o uso da palavra no título. Terá este poema uma moral?
A metáfora, é uma das figuras de estilo em que tenho mais dificuldades, de interpretar e de criar. Há umas bastante óbvias, outras nem tanto. Criar novas metáforas, ou originais, é bem difícil e desafiante.
E pronto, já consegui sair do título...


O sujeito poético começa por fazer uma confidência, na primeira estrofe. E fá-lo sob a forma de adivinha.
Na primeira pessoa, diz que “escondo...” evitando mostrá-lo, e depois compara-se com as “...nuvens...”, elemento de água essencial à vida, mas inacessível, a não ser que se desfaça em chuva, por arrefecimento. Embora os dois últimos versos da mesma estrofe vinquem o “...depressa...” e a efemeridade. Um passageiro, no fundo.

A justificação para isso surge no verso seguinte, em que o secretismo se mantém, mas o elemento ar se repete, desta vez, não nas nuvens, mas nas “...aves...”.
E aqui as aves têm duas ações que, poeticamente, são magníficas, o voo (como as tais nuvens) mas, sobretudo, o canto.
Ser “...das aves...” “...desde criança...” é uma expressão orgulhosa de pertença, quase como se tratasse de um clã. Uma sina.

Mas, assim como parece se colocar num grupo especial e restrito nestas duas estrofes, logo na terceira desmonta totalmente essa ideia, com a repetição de “... igual às outras...” no segundo e quarto versos.
Especial, mas não tanto, e acaba a apresentação.

Na primeira pessoa continua o poema e surge um macabro ”...agarro as cortinas surradas\enquanto me mordes com as mãos...”.
Dois versos fazem a quarta estrofe, e a parábola começa.
A mordedura é uma agressão animal, da maioria dos predadores. Os caninos salientes, geralmente, procuram zonas vitais onde atacar. As mãos (e as garras), na melhor das hipóteses, arranham.
Ou agarram “...cortinas surradas...”. Uma bela metáfora, também, ao escondido por trás de algo, e com esse sujo a ter, imageticamente, o tom de entranhado.
Tabus.

A personagem principal deste poema é a tia Linda. Não sei se nome, se adjectivo.
Optei pelos dois. Pois é a representação do cúmplice, do veículo, do chulo e do manipulador. Da que compra o afecto e a submissão com algo tão menor, como figos secos.
Ela surge na quinta estrofe, e é nessa mesma que fica a última expressão de ingenuidade do sujeito poético.

Tudo o resto é resignação.
Como tia é um grau de parentesco, a estrofe que vem quer fazer divisões. O trigo do joio. As valorizadas “...aves...” têm rostos (superficialidade) e "...muros..." (barreiras). E tias.
O autor, aqui, faz a piedade de salvar, desta aparente alusão ao abuso sexual de menores, a figura da Mãe. Coloca um elemento ligeiramente mais distante nessa posição.

O elemento água, que é iniciado nas altas “...nuvens...” aparece, agora, como “...
o ribeiro sujo de uma sarjeta...” totalmente poluído (pela mão do Homem).
Quase tem cheiro este verso.
À oitava estrofe o título volta em força, o elemento dos figos aparece associado à tia e o dar a mão a corporalidade (sensualidade não me estava a soar bem).
“Dar a mão” tem muitos sentidos. Tem o direto, de fazer companhia. O associamos ao laço amoroso (mãos dadas). “Dar a mão em casamento”, como transmissão do dote e permissão desse ritual. Ou, simplesmente, o mais metafórico, o ajudar.
Podendo-me escapar algum, neste poema não consigo encaixar nenhum destes.
O “dar a mão” perfidamente fingido e manipulador, talvez.
Engraçada a escolha do "...lanche..." para a estrofe.
Pensando um pouco nisso, é uma das refeições que foge das três principais. Como se fosse um luxo, em tempo de escassez, como o ambiente anteriormente descrito parece querer indicar.

O sujeito poético, a partir da décima estrofe, assume a voz no feminino.
Também o terceiro protagonista surge, na figura do “...tio...”.
A capa do Don parece assentar bem (mal) no tio.
O binómio tia-tio forma uma equipa mórbida e explica a “...revolta...” do sujeito poético.
Um dos pontos mais marcantes deste escrito, aparece nestes três versos: “...nasci para ser degolada\todos sabem que a carne de sangue fresco\é a mais saborosa...”.
Há a resignação supracitada, mas além dela, uma estranha forma da vítima justificar os atos do agressor. Como as mulheres usarem roupas provocantes ser justificação para violações!...
Tantos tabus.

Com mestria, o autor continua a conseguir provocar o asco do (deste) leitor, nas estrofes seguintes.

A corrupção da inocência vai-nos guiando no “...ventre peludo...”, no “... mas agora sou uma criança podre...”, no “... na primeira vez foi atrás da igreja...” numa leitura que custa até à dor e até ao fim...

Um retrato demasiado real, escrito com as entrelinhas devidas que a poesia permite, que todos devemos conhecer.
Ou pelo menos não ignorar.
Assim se quebram Tabus.


Sandeman ou a parábola dos figos secos


escondo no meu corpo
aquilo que se diz das nuvens
que depressa nascem
e depressa envelhecem

o segredo
é que desde criança sempre fui
das aves

como esta nesta janela
igual às outras
com gente como eu
igual às outras
nestas pensões em que
tudo dá para o drapeado noturno
das mesmas ruas

agarro as cortinas surradas
enquanto me mordes com as mãos

a minha tia linda
é que sabia tão bem como me dar
a mão

daqui diviso aves por
rostos
rostos por muros
casarios pardos
o ribeiro sujo de uma sarjeta
ao longe um sino

abri senhor os meus lábios

a minha tia linda dava-me a mão e
lanchávamos figos secos

existes para me cobrir
és parte da minha revolta
porque um dia pensei que a febre
também podia ser uma espécie
de certeza

nasci para ser degolada
todos sabem que a carne de sangue fresco
é a mais saborosa

o meu tio mastiga em seco
e atira a malha
a minha tia só me aperta
a mão

faz diferença ter uma casa de banho
onde me trancar
no espelho
faltam-me os braços
mas tenho um ventre peludo
por dentro
sou veludo e sou garrote
e há dias em que gostava
de ser apenas um ângulo

mas agora sou uma criança podre

que a tia linda leva pela mão
até ao rio do homem da capa e
lanchamos figos secos

o quarto cheira a fumeiro
frio e fome
a primeira vez foi atrás da igreja
os cães não param de ladrar
e ele bate com a porta

a malha cai bruta sobre o pino
a minha mão dói tia linda
e o homem da capa está a olhar para nós

encosto o rosto à janela
tento voar e cruzo o rio

as suas mãos
nas minhas

figos secos


Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=360102 © Luso-Poemas


Criado em: 5/2/2022 13:33
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Re: Um verso ou um poema?

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Há belíssima prosa poética que para mim é poesia e não vem na forma canónica de verso quebrado.

O patamar inalcansável é aquele que se lê em muitos consagrados, mas que, no mínimo, não tem erros ortográficos, de sintaxe, de concordância, sem linguagem impoética (palavrões, asneiras, ultrasimplismo), mas que tem o enigma das elipses, a beleza das metáforas, a graça dos trocadilhos, as óbvias comparações, as ideias elevadas, os ideais (sejam quais forem), e para além de grandioso, consistente (a minha maior falha).

Desculpas pelo post scriptum exagerado.

Criado em: 3/5/2018 17:11
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Sou fiel ao ardor,
amo esta espécie de verão
que de longe me vem morrer às mãos
e juro que ao fazer da palavra
morada do silêncio
não há outra razão.

Eugénio de Andrade

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Re: Um verso ou um poema?

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Para mim poesia, não é hoje o que foi há uns anos.
Costumava dizer que era uma maneira que tinha de brincar com as palavras. Sem pingo de desprezo, era algo meu, que se reflete em muitos poemas que escrevi na adolescência e enquanto jovem-adulto (25-35 anos).
Mesmo nesse período não era igual. Aos 15 descobri a rima e um certo jeito que lhe tinha. Sob o jugo duma mãe afectuosa, mas superprotectora, surgiu a escrita, e a rimada, como forma de desabafo pessoal. Catártese talvez.
Nessa época nunca a vi como algo de preponderante na minha vida, embora da qual não sabia me livrar. Soube.

A rima era então a minha âncora. Sentia, rimava, escrevia.
Quando não rimava algo ia muito mal.

Em 2007 surgiu algo que me mudou a relação que tinha com a poesia. A exposição.
No jornal Destak li sobre a existência do Luso-poemas e, muito a medo, inscrevi-me. Foi a segunda revolução. A exposição. A leitura, que antes era diferente, mas que me levou a conhecer outros e as suas opiniões sobre o que escrevia (e escrevo) levaram-me a um auto-conhecimento e auto-confiança que me surpreederam. Continuo a achar o site como lugar de aprendizagem e de evolução.

Nos últimos anos algo mudou em mim.
Além dos meus filhos e do meu trabalho, que me providencia algum conforto, a escrita, sobretudo a poética, é o meu limite máximo de comunicação, fonte extrema de prazer (a que escrevo e a que leio), a arte completamente auto-suficiente, que tenho a responsabilidade pessoal de elevar, aprimorar, adorar.
Creio, hoje, que posso deixar uma pequeníssima marca nos poucos que me leem e apreciam, e isso é algo que me realiza, numa vida de poucos luxos.

Também, quem disse que luxos eram precisos para ser feliz?

Sei que personalizei muito neste repto, que este é um tema em aberto.
Devolvo-te a questão:
Para ti o que poesia é?

Abraço

Criado em: 3/5/2018 17:02
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Eugénio de Andrade

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Re: Um verso ou um poema?

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Aqui a alternativa baralha-me.
Acho contudo um tema adquado ao site.
Um poema costuma ter versos.
Um verso só, ainda que curto, pode ser um poema.
Embora posso seguir o seguinte raciocínio:
Será versejar sempre poesia?
Nem sempre.
Ou estarei a colocá-la a um patamar inalcansável, porque a respeito, admiro e até amo imenso?

Deve variar, respondendo à pergunta que ponho, com o sentir, interpretar, à sensibilidade, quer do leitor quer do autor.

Qualquer verso é poesia?

O que é poesia?


Criado em: 17/4/2018 17:07
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Re: Trégua

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1946
Proposta ridícula.
Não do fim da guerra. Não sou contra o não lermos quem não gostamos. E esperar que nos façam o mesmo.
Para mim chega a ser uma regra que me auto-imponho. Abro execpções e posso ler um texto de alguém que não gosto de ler se tiver um bom título, ou se aquelas primeiras linhas que surgem me despertarem muito o interesse.

Claro que, o ambiente que está, deve ser cansativo para os intervenientes.
Se fizerem algum distanciamento, podem achar a situação até esdrúxula.
Desculpa se não me coibi de dar a minha opinião.
Tenho gostado da nossa interacção.
Será que todos devemos deixar de comentar?
Haverá em cada um de nós um eloquente crítico literário?
Neste espaço e nesse campo admiro imenso um perfil. A Margô_T.
Duma intensidade e perspicácia ao nível de poucos.

De resto, um gosto, ou um sabes fazer melhor, ajudam-me. Por vezes motivam , outras ensinam e até ofendem.
O poema a seguir será sempre melhor...

Gostei da resposta do AZKE.


Criado em: 3/7/2017 5:31
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Re: A Música que nos inspira

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6/11/2007 15:11
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Criado em: 14/6/2017 9:47
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