Comentário a "No Vale de Gimmerton", de Gyl
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"No Vale de Gimmerton", de Gyl

Uma cascata sonora
No vale de Gimmerton
Reverbera na pele rochosa
Uma lamúria de som.

Viola um reino xiita
Que prima por volição
Da água que dali evola
Da ave que dali volita.

Opróbrio servil inocula
Inócuos ósculos fugidios
Campestres galos no cio
Naquilo que não coagula.

Um verso vistoso e verídico
Percorre a planície e planilha
Cozendo a carranca do cínico
Nos sisos mortais da matilha.

O ocaso laranja o alpendre
O monte de Vênus que cobre
Desliza suave no ventre
Nos seios rosados que morre.

Um terço daquilo que faço
Recai sobre a planta mofina
Nos olhos daquela menina
Que me recusou um abraço.

Desfiz do giz e disfarço
Naquilo que à noite eu fazia
À espera do rei de Antioquia
Que um dia foi preso no mastro.

Não diga o que digo, meu caro
Que a festa não tem primazia
No raio do sol que eu me calo
Na réstia dessa... Poesia!


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Percurso de leitura nº 18 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

O título do poema parte da referência a uma localidade da famosa obra "O Monte dos Vendavais", de Emily Brontë ("O Morro dos Ventos Uivantes" é o título das edições brasileiras). É curiosa a escolha do vale em vez do monte. Já não me recordo do romance o suficiente para assinalar algum simbolismo inerente a este espaço em particular. Todavia, essa dualidade vale/monte sugere-me outros contrastes, como terra/céu ou corporeidade/espiritualidade, algo que se vai confirmar em certos momentos do texto.

A primeira pista aparece ainda na quadra inicial, enquanto escutamos o correr da água (a "cascata sonora", numa "lamúria de som") que provém de uma "pele rochosa". Pouco a pouco vai-se revelando um retrato, lembrando o efeito "mosaico": a partir de várias imagens, monta-se uma figura alegórica, neste caso uma mulher, caracterizada de forma sensual pelos sentidos da audição e do tato, apresentados simbolicamente no som da água que corre. Esta "pele rochosa", voltará a aparecer na segunda quadra, desta vez sob a forma do advérbio "dali".

Mas atentemos, antes, no primeiro verso da segunda estrofe. Sobre o xiismo, uma pesquisa simples dir-vos-á que se trata de uma das divisões do islamismo (a outra é o sunismo). Os xiitas estão conotados com uma interpretação mais rígida do Alcorão e com o desejo de poder político, embora haja muitos fiéis desta ala que sejam moderados. No poema, a referência está ligada à violência que, por sua vez, se associa ao desejo que incide sobre a água e a ave.

Estamos, julgo eu, perante a ebulição do amor, em toda a sua crueza (e também pureza e espiritualidade, há que dizê-lo), combinando-se com os elementos primordiais da terra, da água e do ar. E o fogo? Que é dele? Sempre implícito, está claramente sugerido na sensualidade das combinações sonoras do poema, sobretudo nas aliterações em "v" e em "l" ("viola", "volição", "dali", "evola", "ave", "volita") — o primeiro associado aos lábios e o outro à língua.

A aliteração é efetivamente um dos recursos mais importantes neste poema, embora nem sempre se consiga desfazer a ambiguidade da sua interpretação (e ainda bem que é assim). Na terceira quadra, por exemplo, a sonoridade continua a ser importante, nomeadamente com a assonância em "o", que marca um ritmo ondulante, quase como se fosse um trava-línguas.

Mas, neste passo do texto, o que mais me atrai é o contraste entre o tom latinizante do vocabulário ("opróbrio", "inocula", "inócuos", "ósculos") e, por outro lado, imagens muito concretas e extremamente fortes, quase gráficas (os "galos no cio").

O ímpeto brutal da atração contrasta, assim, com a escravidão a que está sujeito o "eu" — encerrado num "opróbrio servil", que faz lembrar Camões: "é querer estar preso por vontade; / é servir a quem vence, o vencedor". Perante esta torrente de sentimentos, o sujeito poético reage com "inócuos ósculos", beijos inofensivos.

Já agora, aproveito para deixar aqui uma curiosidade, sobre a distinção que se fazia, em latim, entre "osculum", "basium" e "suavium". O primeiro seria um beijo casto, entre amigos (até porque "osculum" nasce como diminutivo da palavra "boca", que em latim se designava "os"). O segundo era um beijo nos lábios de boca fechada (utilizado mesmo em cumprimentos familiares) e o terceiro, sim, era o beijo sensual dos amantes.

Esta sequência imponente de palavras de inspiração latina dá lugar ao momento pitoresco dos "campestres galos no cio / naquilo que não coagula". Um momento de puro frenesim declaradamente sexual, que corta com o tom solene dos dois versos anteriores.

Na quarta e na quinta estrofes, voltamos à alegoria da mulher como espaço, o local em que se vagueia sob a forma de poesia. Percorremos, com o poeta, a planície que desarma os cinismos, a "carranca" daqueles que desdenham os sentimentos e que, por isso, merecem os "sisos mortais da matilha". Note-se a ambivalência de "siso", designação de um tipo de dentição, mas também sinónimo de bom senso, maturidade. Efetivamente, o amor pode ser o espaço em que nos abandonamos completamente aos sentimentos/sentidos, ou o espaço onde nos encontramos com nós mesmos e amadurecemos.

Esta ideia de maturidade parece estar sugerida no "ocaso" que "laranja o alpendre", que lhe dá cor e intensidade. A experiência plena do prazer — por vezes, atingida apenas numa fase tardia da vida — exige tempo, persistência, conquista de uma sabedoria que destrinça o ouro do ouropel. É essa aprendizagem amadurecida de fruir o prazer que permite transformar a chegada às zonas mais íntimas num momento de transcendência, a "petite mort" com que se encerra a quinta estrofe.

Toda esta efabulação poética encontra na sexta estrofe o seu motivo: a recusa de um abraço feminino. Teria sido esse o ponto de partida para a elaborada construção a que assistimos.

Quanto ao rei a que Gyl faz referência, parece ser Antíoco IV Epifânio, considerado louco pelas suas excentricidades como governante, mas também no domínio sexual: por exemplo, criou escândalo a sua relação homossexual com o jovem ator e atleta Gádio. A escolha do episódio histórico do mastro (humilhação a que o rei foi sujeito depois de uma derrota contra os romanos) talvez também contenha, por detrás, uma sardónica sugestão sexual…

O poema chega ao fim com o silêncio do poeta que, depois de transformar a recusa da donzela em fonte de inspiração, dá por terminada a sua missão, sabendo que, no fundo, o mais importante é o poema que criou, esse "raio de sol" que nos oferece através da sua visão transformadora da realidade, que surge aos nossos olhos como especial, por mais trivial que seja a sua origem.

Criado em: 26/7/2023 18:51
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Re: Comentário a "No Vale de Gimmerton", de Gyl

Membro desde:
7/8/2009 23:29
De Brasil
Mensagens: 16075
É com prazer e com satisfação que venho até aqui agradecer o olhar percustrador e boníssimo do amigo poeta Benjamín. Dissecou o texto de forma tal que um legista não faria melhor. Queria, antes de tudo, parabenizar ao poeta pela iniciativa incentivadora de jogar um facho de luz sobre os textos dos aspirantes ( classe a qual me incluo ) e dos poetas desta casa, que outra está desde quando o Jorge Santos tomou a dianteira da administração. Estou muito satisfeito com o rumo que o site está tomando. A poesia, enfim, está prevalecendo. Assim que deve ser. Agradecido pelo belíssimo comentário. Por um breve instante senti-me um poeta. Obrigado por me proporcionar este momento.

Criado em: 29/7/2023 0:15
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Re: Comentário a "No Vale de Gimmerton", de Gyl/benjamin
Administrador
Membro desde:
15/2/2007 12:46
De Porto
Mensagens: 3598
olá Gyl, olá benjamin

posso dizer de peito aberto o quanto estou envaidecida pelo dois.

data venia

atenciosamente
HC


Criado em: 31/7/2023 16:32
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