Comentário a "Trincheiras" de AliceMaya

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6/11/2007 15:11
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Parte dois de dois

Guerra de trincheiras é um tipo de guerra terrestre, utilizando linhas ocupadas consistidas principalmente de trincheiras, onde as tropas que lá estão desfrutam de uma posição bem protegida contra ataques de projécteis balísticos inimigos, como armas de fogo pequenas e artilharias. A área entre as duas linhas de trincheiras era conhecida como "no man's land" (terra de ninguém) e era a região mais exposta ao fogo inimigo. Ataques, bem sucedidos ou não, normalmente resultavam em perdas humanas terríveis. (fonte Wikipédia).
Foi usada na Primeira guerra Mundial.
Com o avanço da tecnologia, começou a entrar em desuso.

Além de já conhecer o conceito, ter ouvido falar no mesmo, visto em filmes e documentários.

Visualmente, ter corredores de terra cavada num campo de batalha, faz-me pensar nas linhas bem tortas com que Deus escreve.
A palavra Trincheiras fez-me lembrar o verbo trinchar, essa forma de preparar a carne para ser comida. Não serão os soldados na frente de batalha, quase soterrados nessas “...Trincheiras...”, carne para canhão?
Depois o caos da guerra mantém-se no conceito. A terra preparada (usarão uma régua?), o pó no tempo seco, a lama na chuva, a morte o tempo todo.

Hades, Marte, ou Seth, devem achar uma coisa do demo.

As trinchas, são pincéis um pouco mais largos. Cobrem uma superfície maior do que outros mais finos de cerda. Dá jeito para dar cor a uma tela, muro, ou folha de papel. A terra de encarnada-sangue.
Mas tenho de fugir do título, e nem sequer reparar no plural. À partida, esse detalhe apenas determina que são todas e não apenas uma em especial.

A forma deste poema é muito especial.
A estrutura é um conjunto de dois sonetos mal mascarados.
Em alexandrinos, a rima varia nos dois. No primeiro a rima é interpolada e emparelhada num esquema clássico ABBAABBACDCECE. No segundo a rima é cruzada, assim, ABABCDECDE.
Do primeiro para o segundo, o B, o C, e o D também se repetem.
As silabas tónica a meio verso não foram uma preocupação.
Esta forma clássica e antiga, já é demonstrativa de algo que todas as guerras têm: planeamento. Uma suposta organização ( um conjunto de quatro quadras (oito) e dois tercetos (quatro) parece aquela lógica de: um conjunto de soldados é um pelotão, um conjunto de pelotões é uma companhia, um conjunto de companhias é um batalhão.
As rimas são classificações sem hierarquias, mas, contudo: praça, cabo, segundo furriel, furriel, segundo sargento, primeiro sargento,sargento ajudante, alferes, tenente, capitão, major, coronel, general.
Até ao general, é tudo carne para canhão.
Esquerda, volver!
Mas, depois, o poema, imageticamente tornou-se guerra.
A trincheira é aberta ou subterrânea, mas rompe o solo.
Os versos deste poema são propositadamente rompidos por traços completamente inoportunos que interrompem a leitura fazendo o leitor procurar algum sentido neles. Pausando. Pensando se acabará um raciocínio, ou se não estará lá à toa. E se tal for, porquê?
Na primeira quadra, estes traços estão no primeiro e no quarto versos.
Começam e acabam o composto (chamemos assim). O primeiro, separa o singular do plural do verbo chover. Pode ser a imagem de um pingo linear de chuva. Ou uma implicação meio óbvia para o leitor. Depois de quatro “...chove...” (que canseira) finalmente há uma interrupção, para ainda mais. O segundo traço separa as “...certezas\não-ilesas...” de “... filhas da guerra...”. O sinal matemático de implicação também serviria. Ou de igual.
Estes traços também podem sugerir quebras de verso.
É o que me parece na segunda estrofe.
Na terceira, já fico com a impressão de serem vírgulas que vêm desde cima, como se do tecto da guerra.
Muitas hipóteses, que podem ser coisa nenhuma.
O que trazem ao texto é a verdade da guerra: o caos. A desorganização total. Uma clivagem das regras (neste caso escritas), dos mandamentos.
Não matarás.
Não cobiçarás a mulher do teu próximo (lembrando-me da liberalização das violações pré acordo de Genebra).
Foi o meu primeiro motivo para vir ao comentário. A desorganização e o raio dos traços, ou se calhar, os supracitados traços, como raios. Castigo divino.

A escrita também é de guerra.
É pouco adjectivada e sem floreados.
Cada palavra parece que foi escolhida a dedo para magoar. Ou criar desconforto no leitor.
Verdades cruas, vestidas de águas, como a chuva e as lágrimas e de “...mágoas...”. “...presas...” sem surpresa nem “...certezas...”. As “ ...nódoas...” o sujo, da falta de paridade e fraternidade. Além de “...impuras...”.
Pois, na guerra, a pureza, que se perde ao longo da vida, vai-se em três tempos.

A riqueza vocabular, neste poema (disso não há dúvidas, para mim que é um enorme poema) surge em nomes e verbos. Forçando a ação a quem lê.
Não há beleza na guerra.
É “...onde inválidos se esticam sem léguas...” - que verso!
Ou trechos improváveis e bem conseguidos como “... uma garrafa de ar lento...”.
Como não custará o tempo a passar nas Trincheiras?

Quanto custa uma vida?

Em primeiro lugar, custa o futuro.
Albert Einstein, na primeira infância, foi um aluno mediano.
Sabemos lá, se uma vida que se ceifa por capricho não seria o prémio Nobel da física ou da medicina?
Quem sabe se não escreveria o mais belo poema?

Depois custa o passado.
Trinta anos de alimentos, de professores a ensinar a ler e escrever, de pais a comprar roupas e dar carinho.
É difícil de contabilizar.
Não creio no espírito nem em alma, mas, para quem acredita, quanto vale a própria alma, ou a dos outros?
A carne e os ossos, ainda vá que não vá, é como no talho, mas, e as boas ações?
A amizade que cada um traz consigo, para dar, ou até vender? Quanto Custa?

Além disso, surgem várias figuras de estilo ao longo dos sonetos.
É fácil de detectar a aliteração como em “... lívidos | livres de vontades...”, os Li e os Vs.

Metáforas sobre metáforas sobre metáforas.

Há ainda as ditas figuras, mas as ausentes.
Neste poema não há eufemismos. Nada foi suavizado.

Resta-me dizer que tenho um projecto com sonetos de guerra.
Estes caberiam lá, só que são melhores.
A devida vénia e inveja.

Abraço.

Trincheiras


chove, chove, chove, chove | chovem águas
tentando limpar de nódoas presas
pessoas impuras e sem certezas
não-ilesas | filhas da guerra e de mágoas

guerra ominosa invisível às tréguas
roubas no sol | dia claro defesas
longe de balizas e redes mesas
onde inválidos se esticam sem léguas

uma peste | uma febre | um suportável
impossível nefasto do no tempo
curto | restam olhos interminável

uma farda | uma garrafa de ar lento
um arfar inconsciente quebrável
e outro corpo surge no mesmo assento

lívidos | livres de vontades prévias
num cárcere de motivos surpresas
pesam-lhes menos os freios das rédeas
com luzes e sons de extremas levezas

sobe-se lentidão | sôfregos | éguas
sopram fogos vermelhos de turquesas
sopram balões de cor | fogem | e levem-nas
além do horizonte das miudezas

querem pegar a música alugável
dormir esquecendo as marcas lamento
perder queimaduras secas de arrojos

não sabem do mal do irremediável
incógnito desígnio sem tento
solo fértil | alma cativa em tojos

Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=371433 © Luso-Poemas







Criado em: 1/3 23:51
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Re: Comentário a "Trincheiras" de AliceMaya p/ Rogério Beça
Super Participativo
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2/2 22:23
Mensagens: 167
Estimado Rogério:

Afinal, sempre havia Parte 2 de 2. Avaliação errada da minha parte.

Oportunamente, responderei ao teu Comentário, agradecendo-o desde já. Como disse a HC uma vez, vou ter de pensar no que vou responder.
É difícil responder a tão elogioso texto. Nem sei se assim o merecia.

Abraço Maya!

Criado em: 3/3 11:34
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Re: Comentário a "Trincheiras" de AliceMaya
Super Participativo
Membro desde:
2/2 22:23
Mensagens: 167
.
Olá, Rogério.

Vais desculpar, mas eu vou comentar o teu comentário e o meu texto. Não de forma exaustiva, como tão bem fizeste e fazes, mas de modo a que se possa melhor explorar e aproveitar este Espaço. O problema é que tendo a escrever longos textos.
Claro que agradeço tudo o que escreveste, já antes o disse. É muita bondade tua, e é sem falsas humildades que agradeço, sinceramente. Tens, logo no início, a devida vénia.

O título: Trincheiras. No plural: são todas, mas é como se fossem uma porque poderão ser todas iguais. Achei muito interessante o que fizeste com a palavra e as associações que fizeste às trinchas de cortar e de pintar. No fundo, farão o mesmo do que as minhas “Trincheiras” do título. Já lá chego.

Em relação à estrutura do texto / poema, é como mais gosto de escrever; sonetos, mas com estrutura diferente. Por exemplo, um tradicional (2 quadras e 2 tercetos, por exemplo) e um inglês, seguido de um tradicional (igual ou não ao primeiro).
Não sou uma purista da língua quando escrevo. Pelo contrário, gosto de explorar desenhos e imagens nas palavras e na pontuação; na forma como se apresenta o poema. Misturar tempos verbais diferentes na mesma frase. E por aí fora.
Aqui, assume-se logo que as trincheiras de que falo, e o poema portanto, serão as da I Guerra Mundial, assim chamada até. Guerra das Trincheiras. Ora, acontece que, embora usando várias vezes a palavra guerra e outras que possam conduzir até ela, não era na guerra que estava a pensar quando escrevi isto (foi há cerca de 4 anos e aí, felizmente, só havia pandemia (!!)).
Mas, lá está, o texto passa a ser do leitor a partir do momento em que o autor o deixa. E, assim, cada um que lê, lerá de forma diferente ou igual. Mas todas são aceitáveis.

Mais à frente, a propósito dos traços dizes que as trincheiras rompem o solo. Exato. Essas valas, comidas à terra, feitas para abrigar homens com medo, feridos, com fome e sede, sono e frio, e acolher os mortos… essas valas foram pensadas por mim como sendo sempre à superfície. No solo e não abaixo dele. Valas no solo! Valas à superfície. De que serviriam numa guerra?
Mas as minhas valas, ou trincheiras, são como os nossos caminhos, as nossas vidas, os nossos destinos, mesmo que sejam muros que nos cobrem e protegem, mas dos quais queremos fugir. O raio dos traços, ou os traços do raio, pretendem simbolizar isso mesmo: muros, paragens obrigatórias como dizes, porquê parar aqui, para quê, agora?, não entendo, etc. em suma, muito do que nos perguntamos pela vida fora, todos os dias talvez.

Repara no poema. Experimenta retirar os traços e colocar vírgulas, ou mesmo nada. O poema e as palavras libertam-se. Há mais espaço, liberdade, e a visão fica menos cheia. O texto fica mais limpo aberto, digamos assim. Parece que se alarga o horizonte, o campo de visão.
E isso eu não queria: queria, precisamente, o contrário. Como se fosse um sistema fechado, de onde dificilmente se sai, mas facilmente se entra. Encerrando ali um passado e um futuro, sem presente porque abstrato – daí a ausência de “lindas” imagens. É até meu hábito, julgo eu, escrever assim: feio, triste, mau, melancólico, deprimente, rude. Tento, pelo menos. Porque são essas as sensações e os sentimentos que mais nos ensinam. A beleza a caminhar numa passadeira vermelha durante toda a vida, sem nunca cair ou escorregar, é apenas uma coisa chata. Para mim, atenção. Porque respeito aquilo de que outros gostam, tal como gosto, exigindo por vezes, que respeitem o que me representa (supostamente). Não é o caso dos poemas, obviamente.
Gosto do que gosto. Não gosto do que não gosto. E, tem vezes, que gosto do que não gosto. Ou, outras, não gosto daquilo de que gosto. E é desta forma que se vão erguendo trincheiras. Mesmo que não as vejamos.

Obrigada.
Abraço Maya

Criado em: 6/3 21:34
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Re: Comentário a "Trincheiras" de AliceMaya

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1940
Olá Maya,

Permite-me o contraditório.
Começando, desculpo-te na condição de que, quando surgir um comentário que aches que devas fazer a qualquer texto, ou poema, participes neste espaço.
O espaço crítico precisa de mais participantes.
E poemas a serem pensados e pensamentos a serem contestados, ou apoiados.
Admito não ser a melhor pessoa a dar a opinião sobre a opinião. Geralmente, não alimento um comentário a um poema meu. Mas ainda vou a tempo de mudar.

Interessante chegar à conclusão de que fui muito mais literal do que foi a intenção do autor.
O facto da metáfora ser muito forte e simbólica é muito bom.
Ainda bem que a descreveste.

Em relação às trincheira superficiais, elas são-nos em oposição aos buracos, quase túneis, subterrâneos, que servem as outras "a céu aberto" de suporte, de armazenamento, por exemplo, ou reunião.

Acerca do teu estilo, parece que o soneto é o máximo a que vais em termos formais.
Tudo mais, é quase o oposto: livre.
E bom.

Acerca de te prolongares, não me queixo, faço o mesmo.

Gostei da expressão "sistema fechado". Objectivo cumprido, compreendi o que referiste.

Não acho que escrevas feio.
Pode ser o teu ponto de partida, mas o resto, tens de deixar para quem te lê.
Como eu.

Abraço

Criado em: 8/3 9:32
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