Poemas : 

Trincheiras

 
Open in new window
Garis Edelweiss - "Blue Girl: Garden of Eyes"


chove, chove, chove, chove | chovem águas
tentando limpar de nódoas presas
pessoas impuras e sem certezas
não-ilesas | filhas da guerra e de mágoas

guerra ominosa invisível às tréguas
roubas no sol | dia claro defesas
longe de balizas e redes mesas
onde inválidos se esticam sem léguas

uma peste | uma febre | um suportável
impossível nefasto do no tempo
curto | restam olhos interminável

uma farda | uma garrafa de ar lento
um arfar inconsciente quebrável
e outro corpo surge no mesmo assento

lívidos | livres de vontades prévias
num cárcere de motivos surpresas
pesam-lhes menos os freios das rédeas
com luzes e sons de extremas levezas

sobe-se lentidão | sôfregos | éguas
sopram fogos vermelhos de turquesas
sopram balões de cor | fogem | e levem-nas
além do horizonte das miudezas

querem pegar a música alugável
dormir esquecendo as marcas lamento
perder queimaduras secas de arrojos

não sabem do mal do irremediável
incógnito desígnio sem tento
solo fértil | alma cativa em tojos


e sou do sítio das borboletas monarcas azuis

 
Autor
AliceMaya
Autor
 
Texto
Data
Leituras
376
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
23 pontos
9
3
1
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Paulo-Galvão
Publicado: 14/02/2024 11:41  Atualizado: 14/02/2024 11:41
Usuário desde: 12/12/2011
Localidade: Lagos
Mensagens: 1176
 Re: Trincheiras
Olá Alice,
Parabéns!
Este texto é assombroso. Afinal todos nós estamos entrincheirados à mercê de antas guerras, talvez as que nós mesmos despoletamos. Foi assim que li.

Abraço

Paulo


Enviado por Tópico
Alpha
Publicado: 14/02/2024 23:38  Atualizado: 14/02/2024 23:38
Membro de honra
Usuário desde: 14/04/2015
Localidade:
Mensagens: 1911
 Re: Trincheiras
Olá AliceMaya


Nos tojos de espinhos mordazes
Onde entranhas se vão aninhar
Em que só as mentes audazes
Serão capazes, de as libertar!

As mágoas e as nódoas jamais se deixarão lavar por mais fortes que sejam as enxurradas. Não há trincheiras que estejam imunes aos sofrimentos. Todas as veredas são de tal maneira íngremes que cortam a esperança, pois esta está para além da perspetiva do tempo e do espaço.
São infindáveis as trincheiras, onde almas sofredoras clamam sua libertação de todos os tipos de opressão. As trincheiras são punhais cravados no peito onde a vida se esvai!

Cordiais saudações.




Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 18/02/2024 00:21  Atualizado: 18/02/2024 23:41
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 1942
 Re: Trincheiras
Trincheira imperial


Fomos mandados a cavar covas,
na linha de fogo inimiga,
de picareta, à moda antiga
e pá, como se fossem covas novas.

E esse equador, de que não há provas,
fez dum batalhão nova formiga,
que escava, na lama que a abriga,
desertos em que não há desovas.

Chove, chove artilharia pesada,
uma cidade caiu, mil mortos
e feridos que ninguém procura.

O silêncio que se faz na estrada
de buracos feitos todos tortos,
cavámos a nossa sepultura.


de cheiramázedo
(Parte 1 de 2)


Enviado por Tópico
Rogério Beça
Publicado: 01/03/2024 23:54  Atualizado: 03/03/2024 15:20
Usuário desde: 06/11/2007
Localidade:
Mensagens: 1942
 Re: Trincheiras
Parte dois de dois

Guerra de trincheiras é um tipo de guerra terrestre, utilizando linhas ocupadas consistidas principalmente de trincheiras, onde as tropas que lá estão desfrutam de uma posição bem protegida contra ataques de projécteis balísticos inimigos, como armas de fogo pequenas e artilharias. A área entre as duas linhas de trincheiras era conhecida como "no man's land" (terra de ninguém) e era a região mais exposta ao fogo inimigo. Ataques, bem sucedidos ou não, normalmente resultavam em perdas humanas terríveis. (fonte Wikipédia).
Foi usada na Primeira guerra Mundial.
Com o avanço da tecnologia, começou a entrar em desuso.

Além de já conhecer o conceito, ter ouvido falar no mesmo, visto em filmes e documentários.

Visualmente, ter corredores de terra cavada num campo de batalha, faz-me pensar nas linhas bem tortas com que Deus escreve.
A palavra Trincheiras fez-me lembrar o verbo trinchar, essa forma de preparar a carne para ser comida. Não serão os soldados na frente de batalha, quase soterrados nessas “...Trincheiras...”, carne para canhão?
Depois o caos da guerra mantém-se no conceito. A terra preparada (usarão uma régua?), o pó no tempo seco, a lama na chuva, a morte o tempo todo.

Hades, Marte, ou Seth, devem achar uma coisa do demo.

As trinchas, são pincéis um pouco mais largos. Cobrem uma superfície maior do que outros mais finos de cerda. Dá jeito para dar cor a uma tela, muro, ou folha de papel. A terra de encarnada-sangue.
Mas tenho de fugir do título, e nem sequer reparar no plural. À partida, esse detalhe apenas determina que são todas e não apenas uma em especial.

A forma deste poema é muito especial.
A estrutura é um conjunto de dois sonetos mal mascarados.
Em alexandrinos, a rima varia nos dois. No primeiro a rima é interpolada e emparelhada num esquema clássico ABBAABBACDCECE. No segundo a rima é cruzada, assim, ABABCDECDE.
Do primeiro para o segundo, o B, o C, e o D também se repetem.
As silabas tónica a meio verso não foram uma preocupação.
Esta forma clássica e antiga, já é demonstrativa de algo que todas as guerras têm: planeamento. Uma suposta organização ( um conjunto de quatro quadras (oito) e dois tercetos (quatro)) parece aquela lógica de: um conjunto de soldados é um pelotão, um conjunto de pelotões é uma companhia, um conjunto de companhias é um batalhão.
As rimas são classificações sem hierarquias, mas, contudo: praça, cabo, segundo furriel, furriel, segundo sargento, primeiro sargento,sargento ajudante, alferes, tenente, capitão, major, coronel, general.
Até ao general, é tudo carne para canhão.
Esquerda, volver!
Mas, depois, o poema, imageticamente tornou-se guerra.
A trincheira é aberta ou subterrânea, mas rompe o solo.
Os versos deste poema são propositadamente rompidos por traços completamente inoportunos que interrompem a leitura fazendo o leitor procurar algum sentido neles. Pausando. Pensando se acabará um raciocínio, ou se não estará lá à toa. E se tal for, porquê?
Na primeira quadra, estes traços estão no primeiro e no quarto versos.
Começam e acabam o composto (chamemos assim). O primeiro, separa o singular do plural do verbo chover. Pode ser a imagem de um pingo linear de chuva. Ou uma implicação meio óbvia para o leitor. Depois de quatro “...chove...” (que canseira) finalmente há uma interrupção, para ainda mais. O segundo traço separa as “...certezas\não-ilesas...” de “... filhas da guerra...”. O sinal matemático de implicação também serviria. Ou de igual.
Estes traços também podem sugerir quebras de verso.
É o que me parece na segunda estrofe.
Na terceira, já fico com a impressão de serem vírgulas que vêm desde cima, como se do tecto da guerra.
Muitas hipóteses, que podem ser coisa nenhuma.
O que trazem ao texto é a verdade da guerra: o caos. A desorganização total. Uma clivagem das regras (neste caso escritas), dos mandamentos.
Não matarás.
Não cobiçarás a mulher do teu próximo (lembrando-me da liberalização das violações pré acordo de Genebra).
Foi o meu primeiro motivo para vir ao comentário. A desorganização e o raio dos traços, ou se calhar, os supracitados traços, como raios. Castigo divino.

A escrita também é de guerra.
É pouco adjectivada e sem floreados.
Cada palavra parece que foi escolhida a dedo para magoar. Ou criar desconforto no leitor.
Verdades cruas, vestidas de águas, como a chuva e as lágrimas e de “...mágoas...”. “...presas...” sem surpresa nem “...certezas...”. As “ ...nódoas...” o sujo, da falta de paridade e fraternidade. Além de “...impuras...”.
Pois, na guerra, a pureza, que se perde ao longo da vida, vai-se em três tempos.

A riqueza vocabular, neste poema (disso não há dúvidas, para mim que é um enorme poema) surge em nomes e verbos. Forçando a ação a quem lê.
Não há beleza na guerra.
É “...onde inválidos se esticam sem léguas...” - que verso!
Ou trechos improváveis e bem conseguidos como “... uma garrafa de ar lento...”.
Como não custará o tempo a passar nas Trincheiras?

Quanto custa uma vida?

Em primeiro lugar, custa o futuro.
Albert Einstein, na primeira infância, foi um aluno mediano.
Sabemos lá, se uma vida que se ceifa por capricho não seria o prémio Nobel da física ou da medicina?
Quem sabe se não escreveria o mais belo poema?

Depois custa o passado.
Trinta anos de alimentos, de professores a ensinar a ler e escrever, de pais a comprar roupas e dar carinho.
É difícil de contabilizar.
Não creio no espírito nem em alma, mas, para quem acredita, quanto vale a própria alma, ou a dos outros?
A carne e os ossos, ainda vá que não vá, é como no talho, mas, e as boas ações?
A amizade que cada um traz consigo, para dar, ou até vender? Quanto Custa?

Além disso, surgem várias figuras de estilo ao longo dos sonetos.
É fácil de detectar a aliteração, como em “... lívidos | livres de vontades...”, os Li e os Vs.

Metáforas sobre metáforas sobre metáforas.

Há ainda as ditas figuras, mas as ausentes.
Neste poema não há eufemismos. Nada foi suavizado.

Resta-me dizer que tenho um projecto com sonetos de guerra.
Estes caberiam lá, só que são melhores.
A devida vénia e inveja.

Abraço.