Crónicas : 

O jogo do ano

 
Estava para começar a partida no campinho situado ao lado da Rua Guaramembé no Jardim Umarizal, uma pequena vila do Estado de São Paulo, ainda com muitos terrenos vazios, quer dizer sem moradias construídas. De um lado estavam os temidos jogadores mirins da rua Itamanduaba e do outro os desafiantes, todos moradores dos arredores do campinho. Chamavam de campinho em razão das dimensões reduzidas do local de jogo. Na verdade eram apenas dois terrenos juntos que foram carpidos pelos garotos num exemplo de trabalho comunitário. Ele era caído para o lado esquerdo em relação ao time que jogava do lado de baixo atacando para cima e para o lado direito para o time que jogava do lado de cima atacando para baixo. Traves? Redes? De maneira alguma. Geralmente os gols eram construídos com base em duas pedras e calculados, a medida entre elas por meio da quantidade de passos de um único jogador para que ninguém reclamasse de que os gols tinham medidas diferentes. Todos participavam das decisões; às vezes seis ou sete pés era a medida dos gols, literalmente falando. Às vezes alguém se arriscava a criar alguma maneira de fazer os gols com madeiras em pé, mas era fato raro. O campinho era circundado em um lado pela Rua Guaramenbé e os outros três lados por terrenos tomados pelo mato. Sendo que em um deles havia um caminhozinho que descia até um barranco de uns dois metros de altura que dava de frente para a rua de baixo. Do lado de baixo, não muito longe havia uma casa toda fechada. Então os jogadores de ambos os times sabiam que deveriam evitar chutar a bola de jeito a cair naquela casa, pois o proprietário costumava não devolvê-la ou de jeito a descer pelo caminhozinho que levava para a rua de baixo. A bola... Às vezes era de capotão... Se bem que não era aconselhável em razão de facilitar que qualquer um a chutasse onde não era devido fazê-lo. O mais provável mesmo era o jogo transcorrer com bolas pequenas de borracha, o que facilitava o jogo rasteiro e principalmente porque ninguém tinha dinheiro para comprar bola melhor.
Domingo... Quase duas da tarde. Os dois times já se encontravam em campo e prontos para a partida, porém havia ainda algumas pendências a serem resolvidas antes de começar o jogo.
―Boca! Olha só a flâmula (objeto decorado ou com logotipos, feito de tecido e com uma cordinha de um lado a outro para ser pendurado nas paredes para fazer propaganda de empresas e instituições) que eles trouxeram? É bem menor do que a nossa. Falou o Baiano com cara de poucos amigos.
Boca nem bem acabou de ouvir a reclamação de Baiano e chamou o capitão do outro time, Ivan o terrível para uma conversa, pois o jogo valia, além da dignidade do grupo, a flâmula do adversário que era uma espécie de troféu.
―E aí Ivan, deste jeito não dá! Olha o tamanho da nossa flâmula e olha só a de vocês! Desse jeito vocês terão de colocar duas flâmulas desse tamanho para valer pela nossa.
Ivan chamou o pessoal do time dele para conversar e colocar a reclamação dos adversários e após muita conversa e reclamações, o irmão do Ivan foi buscar outra flâmula e logo retornou. Tudo estava pronto para o início da partida, porém ainda havia outro problema a ser resolvido; quem apitaria o jogo? Os dois times estavam completos e só havia um jogador que ficaria na reserva do time de baixo; o Carioca.
―O Carioca apita. Falou o Tita que também fazia parte do time da rua Itamanduaba.
―Mas ele é do time de vocês e vai roubar! Falou Adãozinho que fazia parte do time do campo.
―Vocês têm outro para apitar? Questionou Tita que gostava de uma boa discussão.
―Não!
―Então... É melhor começar o jogo.
A bola foi colocada no centro do campo. O esquadrão da Rua Itamanduaba era formado por: Boca, Baiano, Betão, Gil Negrão, Niquinho, Tita e Rabiola. O esquadrão dos arredores do campo por: Ivan o terrível, Adãozinho, Adelino, Adilson, Paiê, Cláudionor, Marcola e Bolacha. Como era de costume, cada jogador jogava no gol durante dois gols feitos pelo próprio time ou pelo adversário. Tita começou em um dos gols e marcola no outro.
Os capitães; Ivan e Boca se encontraram no meio do campo e tiraram par ou ímpar para decidir quem tinha o direito de escolher o lado do campo para começar a partida e qual time tinha o direito de dar o pontapé inicial. Chuteira? De maneira alguma. Ninguém tinha esse luxo. No pé de alguns dava para ver o Ki-chute pretinho e no de outros o conhecido Bamba ou outro calçado similar. Apenas Rabiola jogava descalço, porque não gostava de colocar qualquer coisa no pé. Foi decidido o Time da Itamanduaba sairia com a bola e o desafiante escolheu o campo de baixo por causa do vento a favor.
O jogo começou amarrado. Todas bolas eram divididas e a bola nos pés da equipe da Itamanduaba caminhava de pé em pé até chegar nos pés de Rabiola. Rabiola ao invés de jogar para o time, só queria dar chapéus. Ele tinha o jeito dele de fazer isso e só ele conseguia, puxava a bola com o lado de fora do pé contra o próprio corpo ela subia e passava por cima do adversário, só que para o time não adiantava nada e logo os adversários perceberam e toda vez que a bola ia para ele, eles corriam para cima dele em dois ou três e tomavam-na. Não deu outra, todo o restante do mesmo time reclamava do parceiro: “passa a bola Rabiola”, “pô Rabiola! Assim não dá!” “Desse jeito, vamos perder!”. Enquanto as reclamações ocorriam, Ivan o terrível aproveitou as bolas tomadas de Rabiola e marcou dois a zero. Quando os nervos já estavam ficando à flor da pele no time da Itamanduaba, eis que Deus pareceu olhar por eles; Rabiola conseguiu dar um chapéu no Claudionor dentro da área e Claudionor para não levar desaforo para casa pegou a bola com a mão.
―Pênaltiiiii!!! Gritaram os companheiros de Rabiola. Carioca apitou um pouco tardio, mas não havia como não marcar, principalmente para os próprios companheiros.
Rabiola, contra a vontade dos amigos, pegou a bola e colocou-a debaixo do braço, dizendo por meio de gestos: “eu vou bater... Deixa que eu faço.” Colocou a bola no local da marca de pênalti, ficou de costas para a bola, dizendo que bateria de virada e sem olhar para o gol que era defendido naquele momento por Adelino. Este ato, mesmo antes da batida do pênalti já deixara todos os companheiros irritados: “onde já se vira alguém bater um pênalti sem olhar para o gol e o goleiro”, mas vindo de Rabiola tudo era possível. Porém, quando Carioca apitou para bater o pênalti, Rabiola fez cara de mau e virou-se já usando todo o impulso possível para bater forte na bola e colocá-la no canto do goleiro, mas pegou mal na bola e por estar decalco arrancou uma tampa do dedão do pé direito. A bola não entrou e o sangue correu. Todos olharam para ele e ele segurava o pé no alto com a mão e gemia de dor. Moral da história, ele teve que sair e desfalcar o time no restante da partida. Ainda bem que tinha o Carioca para substituí-lo. Aliás todo o time deu graças a Deus pela troca, pois agora poderiam recuperar o tempo perdido. Só ficou uma questão: Quem iria apitar? Ninguém... Os próprios jogadores usariam sua honestidade para dizer quando havia faltas, era escanteio ou bola fora. A partir daí o jogo esquentou. Algumas faltas eram indiscutíveis, mas outras nem tanto.
O jogo transcorria sob tensão constante, nem mesmo a contagem dos gols eram a mesma para ambos o time; para o esquadrão da Itamanduaba o resultado estava em cinco a cinco, para o time local era cinco a quatro para eles. O jogo havia sido estabelecido que viraria a seis e terminaria em doze gols. O time da casa fez o sexto gol novamente com Ivan o Terrível e o jogo virou. Os times mudaram de lado. Os desafiantes estavam na frente e já se sentiam com uma mão na flâmula adversária. A partir deste momento toda bola dividida era razão de discussão. Gil negrão virou um leão na defesa e chutava a bola pra qualquer lado contanto que defendesse sua equipe. Boca assumiu a marcação de Ivan o terrível e o fazia homem a homem no campo todo. Tita marcou Adãozinho o craque adversário dando botinadas o tempo todo. Tantas botinadas deu que o adversário diminuiu o ritmo de jogo. Muitos gols saíram de ambos os lados. Pelas contas do time da Itamanduaba estava onze a dez para eles e para o time da casa onze a onze. Foi neste momento que aconteceu a jogada mais polêmica de todas; Boca jogou a bola para Tita, que driblou Paiê pela esquerda e cruzou para Betão que conseguiu tocar no canto do goleiro adversário que no momento era o Bolacha, mas o goleiro como um gato conseguiu pegar a bola em cima da linha. Quer dizer, aparentemente em cima da linha. Para o time da casa foi antes da linha e para o time da Itamanduaba o gol havia acontecido. Com esse gol o time da Itamanduaba faria doze gols e seria o vencedor. A discussão começou perto do gol com Tita e Bolacha. Não demorou muito e Tita agarrou Bolacha pelo pescoço e rolaram pelo chão. Todos os integrantes de ambos os times se pegaram e a briga se generalizou. Enquanto todos brigavam , Carioca se livrou da briga correu pegou todas as flâmulas e gritou para os companheiros: “Pessoal, peguei as flâmulas!!!!” Dito isso saiu correndo descendo a ladeira em direção à Itamanduaba. Paiê que tinha esse nome por gritar pelo pai toda vez que acontecia alguma coisa, fez jus ao nome: “paiê... Paiê” Gritou muito com aquela voz que parecia até de tenor italiano e logo o pai chegou com o fusca azul e apaziguou a briga entre os times. As flâmulas já eram. O jogo? Não havia mais condições de recomeçar. O jeito foi dar por terminado. Todos foram para suas casas. Alguns contando vantagens e outros revoltados pelo resultado, mas cá para nós foi um grande jogo.

 
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Xaradaa
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