Luso-Poemas
 
Textos : 

O SEM-ORELHAS

 
É assim porque é. Nasceu assim. Com aquele defeito horrível, cria impressão e nojo para alguns. Nasceu sem orelhas.
Agora imagina uma cabeça sem orelhas, sem onde teres amarrar a haste dos óculos, sem teres aqueles dois pedaços insignificantes de carne, que nas mulheres passam despercebidas porque cobrem-nas com os cabelos longos.

Estás a imaginar este homem, a caminhar pela rua, a ser olhado, a ser comentado, a ser motivo de riso para alguns badamecos.
Diz-me, aproxima-te, gostarias de andar pelas ruas assim, sem orelhas, só com um buraco de cada lado da cabeça, que é o que tem este homem? Olha que eu não. Não ter orelhas é quase como não ter boca para falar.
Se fosse não ter uma mão, sempre dá para disfarçar, metendo o punho da camisola que esconde o toco, dentro do bolso, fazer de conta que tem. Mas na verdade ela não está lá. Mas só tu sabes. Este caso é diferente. Podes colocar um chapéu que toda a gente vai reparar e dizer: olha aquele não tem orelhas.

E quando foste criança estás a ver o filme. Todos os amigos a reinar, a apontar o dedo e tu, a esconderes-te no fim da sala, tão calado que parece que nem ali estás.
Ficas feito anormal a fazer de conta que a vida não é nada contigo. A solidão a dizimar-te por completo. Ficar em casa o mais tempo possível, ter vontade de escarrar no espelho sempre que te vês. Porque és feio. Diferente. Não tens orelhas. Tens um buraco de cada lado na cabeça. E és capaz de chorar por ali. Não sei, nunca vi, estou a supor. Deixa-me supor que sou feliz. Tenho orelhas.

O homem é triste, tenta disfarçar mas é pior. Deixa crescer o cabelo como as mulheres e isso dá-lhe alguma vantagem. Tem dias que menos mal. Quando está vento é pior.
Levanta-se o cabelo e nota-se que não tem orelhas.
Por isso evitas sair de casa quando está vento, não é assim?
Conta-me.
Como é sair à rua e ser olhado de maneira incalculável.
Tanto que te olham que o teu rosto está gasto. Sei que ignoras porque tens uma força vinda de uma mulher que tu amas.
Mas ela não sabe que tu não tens orelhas e por isso ela passa-te bola. Ela pergunta porque é que não cortas o cabelo dos lados e tu mudas a conversa.

No outro dia ela quis te tocar e tu não deixaste. Iria saber logo ali, que tu não tens orelhas.
E podia dizer não, ou dar-lhe uma coisa má no estômago.
O teu medo é que estás a crescer e o cabelo vai começar a cair e depois não há como disfarçar verdadeiramente.
Os buracos vão ficar a apanhar ar, à vista de todos, na boca do mundo.
Serás falado pelo que não tem orelhas. És um caso de silêncio.
Fala.
A tua mãe já cá não está para te pentear como fazia dantes. Tão bem arranjadinho que criava suspeita pois não se notava aquele altinho no cabelo.

O pior foi quando os teus amigos souberam. Ainda que escondesses o não ter orelhas debaixo do cabelo eles sabiam que não tinhas.
E vinham quatro ou cinco amarrar em ti para confirmar.
E viam à força que tinhas um buraco de cada lado. E espreitavam lá para dentro, como se quisessem ver o que há em ti.
E tu choravas por não conseguires te defender. Eles eram quatro ou cinco. Ou talvez sonhasses com isso a noite inteira.
Agora estou confuso. Tens que me dizer.

Tu dizias aos amigos que elas iam crescer.
Foi o que o médico te disse, para te consolar. Depois soubeste que as orelhas não crescem como cresce as unhas e o cabelo.
Depois soubeste que as raparigas não gostam de rapazes que não têm orelhas. Desculpa eu estar sempre a dizer que não tens orelhas.

Não quero com isto te amedrontar. Pior é não ter alma, vai por mim. Agora és grande e estás a ficar careca.
A mulher que tu amas vai partir com certeza. Ela vai saber mais dia, menos dia.
Ou, espera lá, será que ela não sabe mesmo?
Ou será que ela também esconde alguma coisa?

Eis a questão: por muito ou quase nada sejam as dúvidas ou as certezas só o amor é que quebra as grandes muralhas.







meu blog:
www.teoriadoscalhaus.blogspot.com

minha casa (em obras):
www.flavio.blogtok.com

 
Autor
flavio silver
Autor
Textos deste autorMais textos
Rss do autorRss do autor
EstatísticasEstatísticas
 
Texto
Data
Leituras
1541
Favoritos
1
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
Enviar este texto a um amigoEnviar
Imprimir este textoImprimir
Salvar este texto como PDFCriar um pdf
19 pontos
11
0
1
Recentes
Jaime-Jaime
O mundo é pequeno
Política 7
poema e...
como se faz um país?
Aleatórios
Da fauna que me cresce nos dedos
Na arte o que é deformado tem mais valor
uma mulher assim...
apenas ler c\ 1,5 de alcool na mente
O Outono é uma música difícil
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
Alberto da fonseca
Publicado: 09/03/2010 14:01  Atualizado: 09/03/2010 14:01
Membro de honra
Usuário desde: 01/12/2007
Localidade: Natural de Sacavém,residente em Les Vans sul da Ardéche França
Mensagens: 7071
 Re: O SEM-ORELHAS
Só o amor é que não encontra defeitos no seu bem amado/a.

Gostei e reflectivo este texto Flávio

Aquele abraço

A. da fonseca

Enviado por Tópico
AnaMartins
Publicado: 09/03/2010 14:06  Atualizado: 09/03/2010 14:06
Colaborador
Usuário desde: 25/05/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 2220
 Re: O SEM-ORELHAS
Apanhaste-me! Contava com uma gargalhada no final da crónica ao jeito do "pezão" e o que arrancaste foi um sorriso enternecido.

Sim, tens toda a razão, o amor tudo aceita, porque tem olhar diferente.

Bom ler-te de novo!

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/03/2010 14:24  Atualizado: 09/03/2010 14:25
 Re: O SEM-ORELHAS
é meu amigo poeta, deixei-me guiar pelas suas palavras. se falasses, te ouviria, se mais ou menos por ter orelhas; não sei. mas foi muito bom esperar o final e saber da mensagem de amor que trouxeste no bojo da história. o amor só tem olhos para o que ele quer ver. isso; quando não é totalmente cego. maravilha.

fraterno abraço, amiguirmão Flavio

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/03/2010 14:44  Atualizado: 09/03/2010 14:48
 Re: O SEM-ORELHAS
Olá Flávio,

Decidi, por estes dias, passar a também ler e comentar (porque não!?)textos de prosa e não sómente poesia, como vinha fazendo há já muito tempo.
E deparo com este teu pequeno ensaio que me despertou a atenção.
Desde logo pela temática que rasga um caminho deferente para um verdade universalmente aceite.
Também porque entro em contacto, o que já não acontecia há muito tempo com o teu estilo límpido, de raciocínio fluente e leitura agradável. O que também só acontece porque a regra e a arte literária é asseada e devidamente cuidada.
Depois ainda porque o tema me sugere o grande Stendhal que genialmente o versa quando escreve ..." tomai um desses ramos secos...que no inverno se revestem de cristais de gelo...(cito de memória).
De facto o amor é cego e vê.

Abraço

Enviado por Tópico
luciusantonius
Publicado: 09/03/2010 14:44  Atualizado: 09/03/2010 14:44
Colaborador
Usuário desde: 01/09/2008
Localidade:
Mensagens: 669
 Re: O SEM-ORELHAS
Caro poeta
Tanta sabedoria em não muitas palavras! De facto, só essa coisa a que chamamos amor e quando é autêntica é capaz de passar por cima de um decepado do calibre do « homem sem orelhas». Muito imaginação e senso de humor.
Um abraço
Antonius

Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 09/03/2010 15:05  Atualizado: 09/03/2010 15:05
Membro de honra
Usuário desde: 31/03/2008
Localidade: Braga
Mensagens: 8102
 Re: O SEM-ORELHAS
Excelente Flávio e tão actual e presente em tantas situações.
Beijo

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/03/2010 15:13  Atualizado: 09/03/2010 15:13
 Re: O SEM-ORELHAS
O cabrão do texto, é como sempre. Com a tua marca, com a nossa amizade sem orelhas.
Agora o colocares em variadas situações o pronome antes do nome, põe-me doente.
Te isto, te aquilo...
Te deixa disso.
Abraço

Enviado por Tópico
Avozita
Publicado: 09/03/2010 15:22  Atualizado: 09/03/2010 15:22
Colaborador
Usuário desde: 08/07/2009
Localidade: Casal de Cambra - Lisboa
Mensagens: 4529
 Re: O SEM-ORELHAS
Depois de ler os comentários já postados,
limito-me a dizer:
" quem feio ama bonito lhe parece "
Parabens pelo texto.
Abraço
Antonieta

Enviado por Tópico
Alexis
Publicado: 09/03/2010 15:49  Atualizado: 09/03/2010 17:12
Colaborador
Usuário desde: 29/10/2008
Localidade: guimarães
Mensagens: 7238
 Re: O SEM-ORELHAS para flávio
dam it.detesto quando isto acontece.já tinha comentado e puf.foi ao ar.agora lá se foi a espontaneidade...
anyway:li o texto com prazer,as usually.a ver onde ías querer levar o leitor.ok.viva o amor que ultrapassa barreiras,as diferenças e etc e tal.mas o corpo (do texto) tinha pano para mangas...o que dizemos a nós próprios,o que os outros nos dizem,o que ouvimos ou deixamos de ouvir no meio disso tudo.sim,porque isto de não ter orelhas não impedia que o personagem ouvisse...e como.rs.

uma abraço e parabéns.pela tua infindável criatividade e inteligência.pela tua graça e talento.
obrigada por mais um.
kiss
alex

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/03/2010 17:29  Atualizado: 09/03/2010 17:29
 Re: O SEM-ORELHAS
Não há muito mais a dizer do teu texto.
Diria apenas que quando crescer quero escrever um texto assim.
Muito bom.
Deixo-te aqui apenas umas perguntas em relação à questão colocada pelo José Torres em colocares o pronome antes do nome:
- Fizeste-o propositadamente?
- Consideras uma escrita menor?
- Ou será uma questão de prazer na leitura?
- É tecnicamente errado?
Coloco-te estas questões apenas porque quando escrevo gosto imenso de colocar o pronome antes do nome. Sinto um prazer muito maior na leitura.
Mas a dúvida é madrasta e fico para aqui sempre um pouco dividido entre o prazer e o trabalho correcto.
( Gostaria mesmo que o maior número de colegas do Luso comentassem esta minha questão)
Abraço
JLL

Links patrocinados

Páginas em

Páginas sobre