Prosas Poéticas : 

A FAMÍLIA 33 (parte 5)

 
, do mesmo jeito que haviam dias melhores e dias piores, haviam também os dias muito melhores e os dias muito piores, muitas vezes ele discutia inutilmente, defendia valores humildes mas com uma tenacidade que instigava rancor aos genitores, Lauro se resumiu a comer e dormir, ir à faculdade, e ponto. Ao menos num sentido de usufruir ou aproveitar dos benefícios que o conforto daquela vida familiar tão antitética provinham. Nunca tivera uma mesada mas também agora não pediria mais nada, estaria ralando peito pra viver aquilo que queria chamar de sua liberdade, mas a simpatia do rapaz e talvez algum brio pra assuntos pesados em seus vários sentidos ajudaram-no a rapidamente escalar as pontes tão frágeis de evolução social.
Aos poucos a vida o acalmava, com outra mãe postiça ou uma gata circense que o alegrava como poucas outras coisas. Ficou compreendido que aquela seria sua escola ideal, a família complicada. Não que seus parentes fossem realmente pessoas ruins, até muito pelo contrário. Também não eram pessoas propriamente amarguradas ou mesmo pouco sociáveis, mas em família tudo é diferente, os defeitos ficam debaixo da lupa secular e parece que só se pode enxergar os pontos fracos, futucá-los. Mas se ele soubesse lidar com tudo aquilo em casa, certamente estaria mais que preparado pra dar ao mundo as fuças a bater, certamente que o tato com tal estirpe seria um treino espiritual ideal pra desafios posteriores, esfinges psicológicas dos dias intragáveis do pensador, ou do vagabundo, como se preferir chamar.
Mas toda maledicência se arrefecia num suspiro e este dom ele cultivava. A saliva juvenil era doce, já livre das toxinas funéreas da dieta carnívora, entre holísticas pagãs e receitas com leite condensado nutria aquele humor sarcástico e humilde de quem prefere pagar pra ver.
Num dia houve uma briga terrível, a mãe de Lauro encalistrou com ele fumando no quarto achando que é casa da mãe joana, ela pegou ele pelo colarinho no meio da cozinha e apertou com tudo, queria machucar mas não sabia bater no filho crescido. Não porque tivesse medo, tinha era amor. Ele, pra não socar a cara dela, de raiva, socou a porta de vidro que dava pro quintal e abriu um rasgo em vê no palma direita. O sangue escorria e a briga virou ternura. Levaram-no ao hospital, a avó e a tia. A mãe ficou em casa. A gargantilha de ouro que a avó tinha dado se partiu, a única coisa dessas a que Lauro jamais deu valor. Se isto simbolizava coisas além da capacidade de se simbolizar algo, então tudo fazia sentido. Se não, era só o que não se podia evitar, caminhos que temos que seguir dando as costas às vezes a quem não gostaríamos de dar as costas.
O mundo seguia rodopiando. Thomas se tornou enfim a prioridade e aos poucos Renato e Aline ficavam no passado. Mantinham algum contato mas aos poucos rarefeito, breves conversas quando se batiam nalgum canto bem musicado da metrópole. Lauro sonhava em poder tocar, tocar sem incomodar ninguém. Prejudicava um pouco seus tímpanos brincando de montagens eletrônicas aos fones de ouvido madrugada adentro. Não podia dizer que era nota qual, nem sabia o menor acorde ou escala. Mas brincava de fazer música e boa música em boa parte, fundamental, é pura brincadeira. Ele conseguiu sincretizar suas técnicas.
Agora quando dançava, contava a estória onomatopéica do silêncio dos instrumentistas em linguagem de sinais estapafúrdios, agora quando escrevia, dançava as ondas da comoção do oceano de infindos detalhes aglutinados, agora quando tocava dançava o hálito de seu espírito e conseguia não pensar em nada e assim realizar a perfeição, a precisão furiosa ao improviso.
O zoroastra guiava seus passos, leituras esparsas e demasiado predestinadas, ele escrevia mais sobre o que caminhara, era um leitor apaixonado mas que só encontrava o gozo de épocas em épocas. Buscava os supremos enigmas. As grandes charadas do mundo, ainda irresolvidas, e sonhava dá-las nova vida, transitar bandeirante pelos corações das dádivas herdadas por todas as tradições. Lauro considerou sua vida, até então sem trabalho remunerado apropriado, como uma oportunidade a algo grandioso. Queria ser um verdadeiro filósofo contemporâneo e abraçava a certeza de sucesso que a dança circular prometia.
‘O pensamento mais especial com certeza não seria meu... seria muito mais da vida que meu...’
E matutavam o irretocável de todo existir, entre compassos velozes e solos retorcidos de pianos elétricos criam compor o novo vinho campeão, o episódio inédito tão aguardado. Thomas havia nascido cego mas graças à tecnologia alcançara a visão, mais de uma dúzia de cirurgias entre o primeiro e o vigésimo anos de vida e ele tinha dezesseis graus mistos em cada olho. Além de tocar alguns instrumentos com maestria, podia ler e usar o computador com o uso de uma lente de aumento virtual, por vezes até uma não virtual. Era um gênio cujo pai também era um músico famoso, a coisa estava mais que na genética, era a fenética toda. Ídolos o elogiavam desde pequerrucho, era um mimado, respeitado compositor em muitos lares em roda do globo.
E Lauro pegou o cometa pela cauda, aprendeu tanto quanto pôde, ajudava também com o que podia, afanava azeites e etcéteras da despensa e deixava a vida ser o que ela tinha de ser. Era um inconseqüente em muitos sentidos, mas as intenções gritavam nuas, esperneavam um esforço por harmonia na luz dos olhos dele. E fazia os outros sentirem-se criança de novo, e talvez também por isso fosse sempre repreendido pelas travessuras amorais. Naturalmente que eventualmente, com sorte a bem dizer, o indivíduo vai aplicando as lições que a vida empurra, estroncha. Muitos até são obrigados a bater cabeça mas muitos dos que batem cabeça fazem por escolha própria. Íntima e pessoal, mas apressada, as pessoas não param pra sentir o tudo sem fim que está bem em torno.
‘Se quer aprender o que é a verdade, vai ter que saber se decepcionar, muito bem, vai ter que saber que é quase todo dia ter que desistir de um monte de sonhos viajados demais...’
A mãe de Thomas falava muito de deus, lia pra ele a bíblia praticamente todos os dias, e apesar dum ceticismo arraigado em Lauro, pela primeira vez ele também orava, de seu jeito muito pessoal, mas com insistência de Thomas, chegava lá. Uma vez viajaram a campos do jordão, os três e uma pequena sobrinha de Thomas, de pouco mais de quatro anos. Numa das noites ele insistiu com Lauro que conversasse com deus, ali junto dele, os dois sozinhos num descampado livre, mas que simplesmente falasse com o criador, sob o breu e as estrelas. Mas Lauro teve pudor, suas dúvidas e também suas miseráveis certezas o impediram do diálogo testemunhado por Thomas. Mas depois sua escrita se transformou, se tornou busca e discussão constantes sobre a existência mais ou menos improvável duma suprema onisciência que nos acudisse.
Thomas ainda levaria anos e anos pra pisar em seu primeiro festival, em sua primeira festa de música eletrônica, afinal. Mas Lauro era o elo, o termômetro da dançabilidade das batidas, das graves linhas. No comum dos dias espiralava ao centro do quarto e trazia recortes bem sacados pro estúdio do amigo. Magnânimo estúdio caseiro de um, e quarto sem cama, de outro, que só assim pra se ter o espaço possível pra bailar no cômodo. Repousava de barriga arriba, como mumificado, às vezes tinha sonhos lúcidos, conquistas astrais abissais, usava duma barra de ferro à porta do banheiro de sua suíte e ali se aprimorava como morcego humano, como um que aprende a pisar no teto. E assim era, de pontacabeça esticando-se como ginasta olímpico com as solas viradas ao alto e apoiado sobre a testa e ombros, alcançava de pé cheio a tinta branca do teto e seu concreto intocado.
Engatinhavam na grande paciência, na grande saúde que aquela usurpação violenta da inovação certamente traria, se seus dias não cessassem abruptamente nalgum acidente trágico demais, fora de lugar. Eram infantes pela primeira vez outra vez pintando em papel branco com as tintas nos dedos, metiam as palmas pelas paletas e tamborilavam as formas e fôrmas da vida que os alentava. Como a tarde em que pela primeira cavalgara no sítio dum antigo amigo de seu avô, pirralho desbravando a conexão com o equino e galopando à sorte, como em cinema. Um dia que foram mil anos em um, o grande meiodia da criança e sua eternidade particular, peculiar. Não eram suficientes de si, mas sabiam preencher todas as lacunas da inanição com a mais sólida imaginação.
‘A grande verdade é que o amor tem pressa...’

 
Autor
alikafinotti
 
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