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Reflexos na janela (Quase uma história pra crianças)

 
Reflexos na janela (Quase uma história pra crianças)

Lentamente, a madrugada desliza como se fora devorada pela luz, que a espreita. O céu se despe dos ornamentos, violáceos e cinzentos, e deixa-se iluminar com os primeiros raios, do sol da manhã.
Vencida pelo sono, recosta-se na poltrona, sem coragem de chegar até o quarto. Num último esforço esvazia a lixeira do notebook, sabe que outra vez, como em tantas noites atrás, não conseguiu escrever uma linha que a satisfizesse... Engraçado é que todas as idéias estão em sua mente, e dançam, numa coreografia intrincada e sem sentido.
Espicha-se, tentando sem muito êxito, aliviar a tensão, mas é inútil. Por experiência, entende que o sono se foi como um amante furtivo que foge, depois de uma noite de busca, sem prazer... No entanto, o corpo doído, não permite levantar-se.
Como uma gata, abraça-se aos joelhos, e fica observando as luzes multifacetadas que brincam no vidro de sua janela.
Vozes juvenis se misturam, aos ruídos de buzinas, e sons estridentes... O cheiro de café, vindo do apartamento vizinho, se infiltra pelas frestas de sua porta, mas nem mesmo isso, a anima a sair do casulo...
Há quase um ano, Noêmi pedira licença, não renumerada, no trabalho, para segundo ela, escrever um livro. Sempre achara que, seu salto literário não se dava, por falta de tempo...
Acostumada desde a infância, a ouvir que tinha talento, acreditou que escrever seria algo fácil. Agora sentia o tempo esvaindo-se, num ritmo constante, sem conseguir acompanhá-lo.
O tempo pensava: é algo tão abstrato como o pensamento; sentimos, mas não conseguimos apreende-lo. E para acompanhá-lo,assim como na música, precisamos de disciplina, sensibilidade e espaço.
As histórias estavam ali, prontas para saltar através das palavras, mas ela ainda não aprendera a obedecer às pausas, por isso tudo ficava embaralhado e preso, em sua própria mente.
Às vezes sentia que tinha pouca experiência, e escrevia, como se molhasse apenas as pontas dos dedos, com medo de entrar em águas mais profundas, para experimentar á vida. E mesmo quando decidia chegar mais perto, o fazia apenas, como expectadora. Sentia que retirava da vida apenas os reflexos, e nunca a luz.
Fechou os olhos, tentando ainda reter o sono que a rondava, e viu-se, menina ainda, inventando estórias, de monstros e princesas, que pareciam tão reais, que a fazia tremer de medo. Mais tarde, quando já descobrira os segredos das letras e lia escondido as leituras do pai,os monstros se transformaram em assassinos perigosos, e as princesas, em mocinhas desprotegidas. Com isso, já não conseguia dormir no escuro...
Sua mente, funcionava como uma velha tela de cinema, onde sozinha, assistia filmes, muitas vezes, macabros.
Aos dez anos, sonhava em ser poeta, e usava os cadernos escolares, para escrever sonetos rebuscados, onde falava de céus e brisas, quando na verdade, queria falar de sonhos e amor. Adolescente, não conseguia decidir, se o objeto de desejo era menino ou menina. Daí a ambigüidade dos escritos desta época.
Adulta, o medo da mediocridade a engessara. Mas, o desejo quase físico, de escrever a impelia a tentar, mesmo quando, como agora; tudo parecia inútil.
Mergulhou num sono agitado, e sonhou que como Alice, mergulhava pelo reflexo de um espelho e que este se transformava em um lago escuro. E quê, por mais que tentasse chegar à margem não conseguia, pois um homem fantasiado, de palhaço a empurrava para o fundo.
Cansada de lutar deixou-se cair e encontrou no Lago, uma raiz enorme coberta de musgos, que amparou sua queda. Afastou dos olhos, o cabelo, que grudava em seus olhos, e reparou que ao lado da raiz uma pedra, luzia como um diamante.
Não entedia, porque depois que parara de lutar, respirava tranquilamente, sob as águas, como se estivesse em terra firme. E como fazia em criança saiu vasculhando o que tinha a sua volta...
Pequenos seixos coloridos formavam um jogo de amarelinha e ela resolveu voltar à infância, saltando numa perna só até a "lua". Ao fazer a virada para retornar ao ponto inicial, escorregou, batendo com a cabeça numa pedra. Ao abrir os olhos, o Lago tinha sumido. Ela agora estava numa gruta de pedras esverdeadas, e uma menina debruçava-se sobre ela, afagando-lhe os cabelos.
- Você ta bem? - Perguntou.
- Sim. Mas quem é você?
- Não se lembra? A fada Joaninha. – Respondeu a menina.
- Ah! Lembro sim, mas você nunca mais veio brincar comigo, reclamou chorosa.
-É que você cresceu, e quando as crianças crescem, esquecem de mim.
-Desculpe, foi sem querer.
-Porque veio aqui? -Perguntou a Fada Menina.
-Não sei, acho que foi por não saber mais contar estórias.
-Bobagem, você sempre foi a rainha das palavras.
- Noêmi, sorriu.
- É já faz muito tempo... Não sei quem poderia me ajudar a reinar outra vez sobre elas...
-Venha ,vou ajudar.
Noêmi levantou ainda tonta, e seguiu a fadinha. Entraram numa floresta e passaram por pássaros que falavam entre si e flores que disputavam cores.
- Temos que voltar ao lago. – Falou a fada a Joaninha.
- Não por favor eu tenho medo.
- Precisamos buscar o cristal que está no fundo, e não precisa ter medo,estarei com você.
-Chegando à margem do lago, o palhaço veio correndo, tentando empurrá-las, mas antes que chegasse perto, elas mergulharam de mãos dadas para o fundo do lago.
Lá estava a grande raiz, e ao lado o cristal. Mas quando Noêmi tentou pegá-la, um peixe gigante com cara de monstro, montado por um anão a enfrentou.
Noêmi recuou assustada, enquanto a fadinha pegava, o cristal.
O anão gritou enfurecido e reparando melhor, Noêmi, percebeu que era sua colega de turma que sempre fazia questão de ridicularizá-la, quando lia suas estórias, para as outras crianças.
Por um instante ficou sem ação como acontecia na infância. Mas logo a fada Joaninha a puxou pelo braço.
-Vamos embora. – Gritou.
Ao chegar a margem, a fadinha, entregou o cristal, para Noêmi. – Cuide dele.
-Como faço isso?
- Nunca deixe de contar suas histórias, elas dão brilho ao seu cristal.
Porém, tome cuidado com o homem vestido de palhaço, ele vai fazer tudo para enterrá-lo, outra vez.
Venha, precisamos passar no roseiral da princesa adormecida.
- Por que não posso voltar logo pra casa, seria mais seguro.
-Não, ela precisa de você para cumprir o seu próprio destino.
- Logo chegaram ao roseiral e ali uma menina jazia adormecida...
Estarrecida, Noêmi gritou. - Esta sou Eu.
- Rápido invente uma estória. – A fada Joaninha falou nervosa. – O homem palhaço já está vindo.
- Era uma vez, uma menina que não brincava de bonecas, ela só sabia contar estórias...
-Dona Noêmi, acorde! É melhor ir para cama e largue este computador, pelo amor de Deus.
- Noêmi acordou e desta vez teve certeza: iria escrever...


Jacydenatal
31/01/2012










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Jacydenatal
 
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