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Um novo começo

 
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Era mais um Domingo de Outono em Toupia.As folhas bailavam nos braços dum vento húmido e frio que era prenúncio de piores dias.
Toupia era uma típica cidade suburbana nas margens duma qualquer capital dita dos países <em>desenvolvidos</em>.
O desenvolvimento estava patente no rosto macilento e absorto dos passantes.Apesar dos movimentos serem muitos e intensos uma neblina de apatia cobria o lugar fazendo lembrar uma mantinha sobre os joelhos duma <em>respeitável</em> senhora.
O progresso estava bem visivel a cada piscar de olhos e a sociedade entrava pelos orifícios dentro.O fumo dos carros,os multiplos sons robóticos que regiam vidas que se criam humanas,as toneladas diárias de lixo produzido sem nenhuma satisfação ou proveito aparente,as relações criadas sem nunca serem vividas,a tecnologia de ponta a manter-nos em pontas,tudo parecia correr segundo o plano.
Mas acreditando nos governantes de Toupia,pessoas sérias, cinzentas.Que tinham dito de tudo e feito o menos possível para chegar onde estavam. Ao fim e ao cabo as pessoas certas para os cargos,esses ainda assim estavam preocupados.
Segundo rezam as lendas houve alguém que teve a infeliz idéia de financiar um estudo independente acerca da qualidade de vida naquela região. E para espanto de todos,menos das agências funerárias que prosperavam na área, Toupia era o concelho com a maior taxa de suicídio do país e pior ainda de todo o hemisfério norte.
Escusado será dizer que caiu o carmo e a trindade.E Toupia de quem ninguém queria ouvir falar.Talvez devido ao altíssimo desemprego,criminalidade,ou taxa de suicídio...Passou a estar na ordem do dia das figuras á frente do poder.As conversas fizeram-se.As medidas tomaram-se.Houve apertos de mão,fotos e sorrisinhos.
As verbas foram disponibilizadas e as melhorias implementadas.
Mas ainda assim, depois de muitos milhões investidos, o povo continuava a matar-se.
Uns injectavam-se com medicamentos que era suposto curar.Outros com o alcool com que era suposto divertirem-se, bebiam até até lhes rebentar o fígado ou até matarem algum pobre coitado na estrada.Outros,mais que muitos,comiam os piores venenos do mercado e acabavam cheios de doenças que ainda não vinham nos manuais da altura.A morte estava em cada esquina e o panorama parecia não melhorar.<br />
Com o Outono a terminar e a nostalgia natalícia á porta os homens cinzentos coçavam o ralo queixo em fingida preocupação.
Á volta de uma mesa grande demais para tão pouco trabalho esgotaram-se idéias já esgotadas. Até que Tiago Sonho, o mais novo membro daquela assembleia apresentou uma idéia dele,nova e não lida de qualquer manual.Foi o espanto e para alguns o terror.
Para aqueles que teêm mais investido é sempre dificil ver a livre iniciativa acontecer.Mas ainda assim a idéia foi apresentada.
Estava nessa altura muito em voga um músico saltimbanco dos tempos modernos.Que com o seu laptop midi wi-fi etc etc corria o mundo a actuar em praças, bares, praias, casas particulares,eventos,festas e onde mais a sua alma de cigano o levasse.Por incrível que pareça ,devido ao fantástico avanço tecnológico da altura, as suas actuações eram sempre transmitidas em tempo real e online para toda a internet.
Devido a isto e ainda mais ao seu grande talento e sensibilidade musical ele já tinha uma larga legião de fãs espalhados pelos quatro cantos do planeta.
E a idéia em causa era esta.Encomendar ao artista em questão, Kurt Vian de seu nome, uma peça musical de Natal que conseguisse levantar o moral da população.Obra essa que seria tocada na melhor sala de espectáculos da cidade durante a quadra, recebendo cada agregado familiar do concelho um convite colectivo para assistir á mesma.
Tiago Sonho esperava com isto aproximar as familías com a ida a um evento musical fora da rotina e relativo á quadra.Tinha ainda um secreta esperança,pois era confesso fã do artista,de que a obra fosse tão bela que aquando da sua audição pudesse haver uma epifania colectiva que quebrasse a cortina de apatia que á tanto tempo pairava por aqui.
A idéia foi recebida com incredulidade e bocejos.Mas, talvez por ser a única ideia e por á partida ser algo financeiramente muito comportável, foi aprovada a dita.
Contactou-se o artista que nessa altura estava na parte de baixo do mundo.Fizeram-se os necessários acertos e o artista parou tudo e sentiu a grandeza da tarefa perante ele.Algo muito superior a ele lhe dizia que Aquela era a oportunidade duma vida.
Kurt era um dos muitos escapistas que preferiram viver a diferença a se tornarem em cinzentos produtos sociais.
O típico filho único dum casal de classe média alta que sempre confundiu o Ter com o Ser.O pai, engenheiro informático consagrado nos meios virtuais, sempre disposto a perder umas horas com qualquer equipamento mas com grandes dificuldades em ouvir alguém por mais de uns minutos.
A mãe,um verdadeiro exemplo para todas as senhoras que vão ao cabeleireiro todas as semanas, vocacionada professora que julgava que todos gostavam de ler revistas cor-de-rosa.A mãe tinha um estranho poder, ao mínimo sinal de perigo desaparecia sem deixar rasto.Apesar de não sair do lugar,tornava-se de tal modo etérea que qualquer forma de violência parecia não reagir a ela.
Neste lar que nunca o foi a vida poderia ter sido doce.Curioso ver como três seres que partiram dum mesmo ponto se afastaram tanto entre si.As relações nessa altura nada mais eram que o cavar de fossos e construir de barricadas entre os envolvidos.
Por isto e por muito mais,Kurt sempre foi uma sombra do que poderia ser.O facto de ser sobredotado sempre o distanciou ainda mais dos que o rodeavam.O facto de já ler e escrever aos quatro anos sem ninguém o ter ensinado,parece que aprendeu pelo computador,pareceu natural ao pai e assustou a mãe.
Quando recebeu o primeiro computador, aos sete anos, foi como se um novo mundo lhe fosse entregue.Ele abriu a caixa de Pandora sofregamente e com o filtro da inocência a protegê-lo absorveu tudo em que os seu olhos e ouvidos pousaram.
Apesar de não saber como ele entendeu a diferença entre os caminhos.Apesar de nunca ter comido a maçã ele entendeu a diferença e viu o quão bom era estar nú.
Mergulhou de cabeça naquela janela virtual e devorou o mundo possível.Entendeu que nunca podendo fugir aos factos podia sempre não deixar que isso condicionasse o seu Ser.
Desde o princípio acreditou na música acima de tudo.Dizem que durante dez anos não tirou os auscultadores dos ouvidos.E nunca ouviu duas vezes a mesma música.
Aos dezassete anos já tinha acabado os estudos possiveis,tirando um lindo canudo em qualquer coisa relacionada com computadores. Apesar de já ter um belo emprego, resultado dos contactos do pai e das suas altas notas,resolveu aproveitar o dinheiro que o pai lhe tinha dado para comprar um carro,prenda de final de curso,para ir viajar coisa que á muito deseja mas que sempre lhe tinha sido vedada pelos zelosos pais.O pai triste pelo não carro lá se conformou com o sim á viagem.
De mochila ás costas lá foi ele.Costas voltadas ao lar e a ânsia de poder Ser melhor.Cada passo desfazia mais e mais a cortina de apatia.Os seus olhos brilhavam e parecia que o Paraíso era mesmo ali.A alguns quilómetros da sua cidade, onde um rio chegava ao mar,a natureza resplandecia e ele sentiu-se pela primeira vez em Paz.
Sentou-se encostado a uma árvore,que para ele sempre ali haveria de Ser, e deixou-se esvaziar de dezassete anos de experiências.
Sentiu que tinha chegado a casa. Ali sozinho,encostado a um pinheiro sentiu-se pela primeira vez em familía. Os cheiros e sons do mar juntamente com o calor do sol faziam-lhe querer ser cego e viver para sempre feliz.
Imóvel,escutando somente.Tudo foi revisto na sua mente.As peças encaixaram e ele ficou triste por momentos ao não entender algo maior que ele.A tristeza somente abriu a porta para a música entrar.A música entrou e ficou para sempre.
Apesar de apenas ouvir os naturais sons do paradisíaco local fragmentos de todas as suas recordações musicais começaram a aflorar a sua mente.Espantosas texturas musicais nasciam,mutavam e morriam sem sair da sua mente.Os cheiros,sons,texturas e luminosidades do meio envolvente traziam-lhe musicas que á muito viviam dentro dele. Uma consciência superior veio vogando nas asas das mil músicas alheias e pousou sobre Vian.
A Luz que brilhou nele quebrou toda e qualquer resistência ao que se estava a passar e Vian aceitou que nunca poderia voltar atrás.
O desprendimento seria a sua vida e o Amor o seu alvo.
Enquanto tudo isto acontecia, a musica continuava a nascer na sua mente.Um ânsia de criar e de partilhar a cria nascia rebelde no seu intímo.
Respirando fundo e sentido o agri-doce do mar e resina de pinheiro,levantou-se ligeiro mas sem pressa e voltou á casa materna pela ultima vez.
Os pais receberam-no com susto e desdém.As parcas palavras do pai soaram tão ocas quanto as muitas da mãe.
Entrou no seu quarto,despiu-se, tomou um rejuvenescedor banho e preparou-se para o jantar. Á mesa tentou explicar aos pais que os amava e que algo se tinha passado durantes as férias.
Ambas as coisas passaram ao lado dos destinatários acabando por ficarem cravadas na parede da sala de jantar.Ainda hoje lá estão,julgo eu.
O jantar decorreu lento e automático e por mais que Vian quisesse, a couraça dos pais não era algo que ele pudesse quebrar.A comida aquecida no micro-ondas pela tão carinhosa mãe soube-lhe a lágrimas de impotência e levantou-se da mesa com a certeza de ter sido aquela a sua derradeira refeição com aquela família.
Voltou ao seu quarto,que tendo sido o seu mundo durante tantos anos hoje lhe parecia ridiculamente pequeno, e sentiu o próximo passo.
Desfez a sua mochila e tornou a refaze-la de imediato.
Arrumou cuidadosamente o seu computador portátil,que levava no seu interior toda a música que ele tinha ouvido devidamente organizada alfabeticamente.Duas mudas de roupa,uma toalha,alguns livros que merecia ter á mão e uma bolsa com os seus produtos de higiene foi tudo o que foi aconchegar o portátil na já usada mochila.
Kurt admirou-se com aquilo que tinha reunido em quase dezoito anos de vida.Era tão pouco mas ainda assim desnecessário.
Quando os actos ja eram passado sentou-se e reparou que nem por momentos a música se havia calado.Parecia que o mundo tinha uma banda sonora permanente que só agora se deixava ouvir.
Cada estímulo sensorial recebido acordava musicas na sua mente, que apesar de nenhum treino musical recebido,a todas encadeava de maneira natural e inconsciente.
Esta descoberta fez com que um largo sorriso se abrisse no seu rosto e não mais o largasse.Naquele momento fez algo novo.
Tirou o computador da mochila,ligou-o e descarregou da net um programa básico de mixagem e produção musical.
Passada menos de uma hora toda a sua existência fazia sentido.
Tudo aquilo que ele havia lido,visto e ouvido se mesclava sem acção do pensamento e surgia novo e revigorado em forma de delicadas,complexas e potentes criações musicais.
Nessa mesma noite criou a sua primeira obra.Deixou-a como prenda de despedida aos seus pais que a esqueceram dentro duma gaveta sem nunca a terem ouvido.Foi somente após a sua morte que alguém a descobriu e editou fazendo dela o clássico que é hoje.
Partiu antes do raiar do sol e sem mais olhar para trás e sem quaisquer traumas com estátuas de sal seguiu o seu caminho.
Caminhou pelo mundo como uma sombra.Vendo,ouvindo,cheirando,tocando.Mas não alterando nunca a vida de outros.Apenas falava quando com ele falavam e a música era a sua fala.
Quando se sentava em algum sítio que julgasse ser especial,ligava o portátil e a música nascia nova e fresca.Os sons do local misturavam-se com os sons vindos da máquina e tudo se sentia o mais natural possível.
Os locais eram incapazes de ficar impassiveis e a música tinha os efeitos mais inesperados e diversos nos ouvintes.Alguns eram incapazes de continuar o que estavam a fazer e tinham que se sentar e desfrutar o momento,acho que deviam ser aqueles que mantinham viva a criança dentro deles,pois as crianças,essas ao ouvir as primeiras notas de qualquer obra do artista em causa paravam e exibiam o seu mais angelical sorriso.
Outros havia que ficavam fisicamente doentes,diziam eles que era como se um bicho lhes tivesse a comer as tripas, e por isso tinham que se refugiar em casa bem longe de qualquer melodia.
Por isto e mais Kurt Vian era encarado com o misto de respeito e temor que é votado áqueles que não entende-mos.Mas a verdade é uma a sua obra musical já tocava muitos e foi o principio de algo maior.
A determinada altura resolveu transmitir a sua musica online para que pudesse tocar a mais.Equipou o seu computador com material topo de gama e aproveitando os muitos satélites que poluiam a atmosfera terrestre passou a difundir as suas actuações/criações sempre em directo para o mundo.Foi uma decisão tomada sem grande pensar que em nada alterou os seus passos.
Estava o musico em pleno deserto a tocar para camelos e outros seres considerados menos nobres quando recebeu o chamado email.Apesar de o seu Natal já ter sido á algum tempo atrás e ele não o comemorar publicamente a idéia de associar o Belo ao Natal era algo que lhe era muito querido.
A partir do momento em que sentiu isso a obra começou a surgir fácil e intuitiva na sua cabeça. O Tempo e Espaço desfizeram-se nas suas hábeis e antigas mãos e na cena a seguir o Natal já estava á porta.
Tiago Sonho andava a dois palmos do chão, tal era a sua alegria e ansiedade.Apesar dos muitos anos institucionalizado,família,escola,religião,etc.,ele tinha preservado o seu coração da maldade e Sonho era algo que ele queria manter vivo.
Apesar da sua experiência e ego o aconselharem a ter cuidado com o seu envolvimento em tal quimera musical ele investiu tudo o que tinha desde a primeira hora. Acedeu a todos os desejos do artista, e eles tinham sido da mais variada ordem, com a mesma presteza e empenho.
Supervisionou pessoalmente a recuperação dos Jardins Da Esperança,belo local que nesse tempo se tinha tornado abrigo para gente que precisava de privacidade e ausência de lei para as suas actividades.Kurt tinha exigido que o espectáculo fosse realizado aí e que não houvesse nenhum tipo de limitações á circulação de pessoas a qualquer ponto da sua actuação.
Foi o responsável por toda a logística e promoção do evento, que afinal era seu filho, e por ai a coisa não falhou.
Podemos até dizer que foi um sucesso estrondoso e até de inesperada escala.
Kurt chegou no dia 24 de manhã.Quando alguém perguntou,Quem é aquele gadelhudo a queimar incenso no palco?Ainda vai fazer merda!Só ai Tiago reparou que a vedeta, que não o queria ser, já havia chegado e o concerto estava prestes a começar.
Antes que ele pudesse fazer as devidas apresentações já Vian soava através das muitas e potentes colunas dissimuladas no meio da luxuriante vegetação.
Foi um susto inesquécivel para a maioria dos presentes, segundo dizem parece que a Terra começou a cantar e o Tempo se desfez em sinais que todos pareciam compreender.
Houve de tudo um pouco mas o respeito, desprendimento e tolerância assentaram arraiais enquanto a musica se fez ouvir.
A paz foi muita,a alegria deixou de ser um desejo,os olhos cerraram-se e as mãos descobriam um mundo novo que sempre lá esteve,tão cego quanto belo e tão virgem quanto corrupto.
O melhor e o pior viveram de mãos dadas como se irmãos fossem, e em muitos casos eram-no.O deboche partilhou o leito com a sublime epifânia e a mesma deu-se durante suado orgasmo.
As mais podres bebedeiras alimentaram a mente de lúcidos profetas.Que neles,nos borrachos, viram a divina providência e tomaram mentais notas para resoluções futuras.
Kurt tocou até á manhã de dia 26,mais de quarenta horas seguidas durante as quais apenas abandonou o palco três vezes para as naturais necessidades.
Dizem que mais de onze milhões de pessoas passaram pelos Jardins da Esperança durante esses três dias.Todos esses foram transformados de maneira irreparável e a vida tal como a conheciam mudou para sempre.Foi o princípio do Fim.
Durante todo o tempo da actuação Tiago Sonho permaneceu nas traseiras sombrias do palco.Embeiçado e extasiado pela musica.Comendo e bebendo a espaços.Fumando e tentando não respirar na esperança de se poder prover apenas de musica.
Estar ali naquele momento reconciliou-o com a Vida e com a Morte em simultâneo.Tudo lhe fez sentido e apesar do desespero que advém da clarividência ele conseguiu sorrir numa paz sem esperança.
No final,inesperado mas natural, do concerto, Tiago conseguiu trocar algumas palavras,parcas e sem especial significado,com o artista e pagou-lhe uma ninharia no dinheiro mais sólido da altura.
No dia seguinte Tiago constatou que o fenómeno era mundial e Toupia estava nas primeiras páginas de todos os grandes jornais e no horário nobre de todas as televisões.
O que tinha sido uma idéia de recurso,um devaneio pessoal,um suicídio politico,uma perfeita patetice,passara a ser obra do génio dum cinzento gabinete.Em breve advogados punham as suas sujas garras no assunto.
A questão era melindrosa.Toda a obra de Kurt Vian era protegida por direitos de autor que estavam na posse do mesmo.Para ele nunca havia sido hipótese fazer qualquer negócio com a sua arte por isso nunca havia trocado uma só palavra com os mercenários,ou mecenas como queiram,da arte.
Por outro lado o facto de a obra haver sido encomendada e de facto,ainda que irrisoriamente,paga pela autarquia de Toupia levantava um precedente legal que valia a pena explorar.
E como em explorar são os cinzentos homens peritos assim o fizeram.
Em breve, e com a devida proteção legal,estava editado um primeiro CD duplo duma colecção que se esperava de doze volumes,entre cd's e dvd's.
A aceitação foi generalizada e o capital abateu-se sobre Toupia.Todos faziam o dinheiro que queriam e havia um frenesim mariano no lugar.Já alguns anunciavam o nascimento da nova Jerusálem no local onde o artista/profeta havia actuado.
Enquanto isto acontecia,rápido,oculto e oleado pelo útil capital,Kurt descobria novos sítios,caminhos,musicas,pessoas,cheiros.Enfim fazia aquilo que podia.Dizem que chovia e que estava a tocar para macacos quando descobriu a patranha.
Enquanto tocava,em directo para o mundo através do seu portátil,talvez para símios, reparou que tinha correio virtual.
Ao abrir a caixa reparou que tinha centenas de mensagens.
O susto passou a apreensão e de seguida a horror.
Ao fazer uma pesquisa na rede virtual constatou com um nó na garganta que existiam treze milhões de entradas com o seu nome.
Existia um site com o seu nome,propriedade intelectual da autarquia de Toupia, que disponibilizava a sua actuação em video após o registo e pagamento duma pequena franquia.
O seu nome,obra,passado,presente e futuro eram alvo de debate especulatório além da mais selvagem imaginação.
Haviam surgido igrejas em seu nome.E enquanto alguns o viam como o Anti-Cristo,um sinal dos últimos dias,a outros bastava-lhes tocar-lhe na túnica para se salvarem.
Ele sentiu o peso dos outros nos seus ombros.Os olhos abertos.A boca torcida num esgar indolor.A cegueira do momento.O grito surdo de quem sufoca.A musica que teima em continuar a fluir.
A respiração suspensa e uma vontade de não Ser para sempre.
Mas a musica não parou.A linha não se quebrou e quase todos olhavam para o futuro.E nesse momento o futuro mais vendável tinha o seu nome tatuado.
Enquanto tudo se passava dentro dele a sua musica continuava a circular velozmente pelos etéreos canais virtuais ou nem tanto.
Os Ouvidos do mundo estavam nele.Existia uma tal expectativa,ansiedade e frenesim em relação á sua próxima obra que no momento em que ele entrou on-line a palavra passou a correr,rápida como betinho na Damaia,e em breve milhões estavam ligados a ouvir aquilo que tanto ansiavam.
A musica era bela,profunda e triste.Isso posso eu atestar.
Nessa data vivia eu num lar ali para os lados do Principe Real no que foi um dia a capital dum pais.Já la estava fazia um ano e só queria morrer depressa.Tinha o fígado desfeito após uma vida cheia de saborosos excessos.
Para bem dos meus pecados a menina,bela e cheirosa menina,que me fazia a higiene,pois já nem a mim me bastava,era uma nova convertida a Kurt Vian.
E foi assim que sem espanto mas sim suave conforto comecei a ouvir o som a sair do computador estacionado na secretária das meninas,que graças á falta de espaço era paredes meia com o meu morno leito de morte.
Uma calma e bem-estar irreal inundaram-me.Senti que tudo me abandonava.As dores,as mágoas,os desejos,o passado,o futuro,a memória,a doença,eu próprio saí de mim para me dar espaço para Ser.
Não sei quanto tempo durou a musica mas, apesar de não terem passado mais que horas,não reconheci o mundo em que despertei.
Na sala ao lado jaziam dois corpos no chão.A bela menina,que ainda cheirava como bem como sempre,havia escorregado da cadeira e exibindo uma expressão monalísica segurava um frasco de comprimidos.Babando os jovens artelhos a velha Ester,que sempre havia estado no quarto em frente ao meu,mostrava ainda pedaços de comprimidos semi-mastigados por entre os seus esparsos dentes.
Admirado com a minha ligeireza de movimentos e súbita ausência de dores aproximei-me delas e confirmei o que já sabia.Estavam ambas mortas.Na sala de convívio o cenário era algo diferente, se na poltrona por debaixo da televisão se via um desiludido pai/filho exibindo um sorriso estático e algo azulado enquanto uma seringa e um garrote meio apertado lhe pendiam do braço,no chão um pequeno anjo ruivo,a Laura,que vocês tão bem conhecem,brincava inocentemente fazendo lindas pinturas com a tinta tão rubra e brilhante que teimava em escorrer dos pulsos da sua adormecida mãe.
Sem pressas nem atrasos agarrei na criança e sai dali para encontrar algo ainda mais global e perturbador.
As ruas estavam semi-desertas.Alguns tão poucos e perdidos quanto eu avançavam a medo num mundo que lhes havia trocado as regras.
Os mortos suplantavam em muito os vivos.Nas calçadas em frente aos grandes edificíos de escritórios os corpos amontoavam-se. Quebrados,sangrando,alguns gemendo ainda.Um cheiro quente e doentio pairava no ar e os animais pareciam demais.Cães,gatos e mais pássaros que nunca povoavam as ruas do que havia sido uma grande cidade.O trânsito,que era uma das doenças dessa época,havia simplesmente desaparecido e milhares de carcaças metálicas,reluzentes e por vezes recheadas com frescos cadáveres enfeitavam os pavimentos.
Descobrindo este novo mundo com a Laura em meus ombros brincando com os meus ralos cabelos pareceu-me uma brincadeira de criança.
As lojas continuavam de portas abertas mas lá dentro os cenários eram tudo menos comerciais.
Na entrada duma fluorescente e demasiado grande superficie comercial encostam-se dezenas de cadáveres todos eles baleados na cabeça.Na boca,nos olhos,debaixo dos queixos.As variações são muitas e todas parecem ter tido o efeito desejado.Reparo que meia duzia de pistolas estão caidas no chão,vazias de balas,e que no fundo da pilha de corpos aparecem algumas fardas policiais e outras que tais.
Um penetrante cheiro a suicídio penetrou-me e senti-o a ser arrancada de mim pelos dedos finos de Laura no meu cabelo.
As armas tinham sido cuidadosamente partilhadas para que todos pudessem ter o fim que queriam.Com ordem e respeito como sempre devia ser.Assim indiciavam as armas e cartucheiras vazias junto da pequena colina de cadáveres.
No vão da escada ao lado alguém sai de baixo do quente abrigo de cartão.A garrafa verde,réstea de esperança talvez,vem colada na mão sinistra e os olhos estranham o cenário de morte.Coça os traiçoeiros ditos e abre a garrafa de onde bebe um generoso gole de bons-dias.Perguntei-lhe o que se passou e a ofensa saiu lesta acompanhada dum leve travo a vinho azedo.Quero lá ele saber dessa merda?Não querem lá ver?
Afastei-me pois a ausência de respostas nunca facilitou o fazer das perguntas.
Olhei para cima e Laura parecia abanar a cabeça ao som duma melodia impossível e devorar com os olhos todos os horrores destas vidas.
Os meus pés caminharam leves,guiados pelos meus olhos,aos quais basta a luz do sol ou o fugidio brilho das estrelas,os quais acabam sempre por chegar.
Á medida que fui caminhando reparei que apenas a Natureza corria normal o seu caminho e parecia mais selvagem que nunca.Em alguns pontos já verdes e viçosos caules rompiam alcatrões e rasgavam cimentos antigos.
Por outro aquilo que era a menina de muitos e bons olhos havia-se esvaido em nada ou quase nada e todas as estruturas humanas se haviam desmoronado.Enquanto via todas as estruturas abandonadas e bens julgados básicos,electricidade e água canalizada entre outros,inexistentes,deduzi que sociedades,religiões,culturas,fronteiras,paises,linguagens orais,Leis e Morais,filosofias comerciais ou existenciais,governos,seitas,ideologias,associações comerciais e outras que tais tudo desaparecera naquele dia.
Sei hoje,pois á data estava ainda a viver a coisa,que a quase totalidade da população mundial se suicidou enquanto ouvia em directo a actuação de Kurt Vian após ele ter descoberto a traição a que fora sujeito.A musica trouxe um tipo de clarividência doentia a todos que a ouviram.Áqueles que nada desejavam ou temiam,era este o meu caso nessa data,hoje quero muito e bom graças a Kurt,a esses a musica trouxe uma estranha Paz e vontade de Ser diferente.E continuam vivendo a sua Vida e dando testemunho daquilo que viveram e São.
Aos outros,aos que tinham e queriam mais.Aos que viviam no terror de perder o que não precisam.Aos que viviam as vidas dos outros.Aos que tinham o dinheiro como pai e senhor.Aos que faziam da mentira almofada.Aos que agradaram a todos e mais alguns.Aos que por princípio nunca quiseram agradar a ninguém.A todos esses a solução apareceu límpida e clara.O fim dos problemas individuais de cada um será o fim de todos os problemas gerais.E o fim dos problemas individuais tira todo o sentido das vidas neles baseadas.Sem nada para sofrer não há nada para viver!
Gritaram e escreveram alguns pelas paredes antes de acertarem pela primeira vez na vida.E defendendo a sua posição individual perante familia,amigos e relações cada um desses se matou da melhor maneira possível.Muitas vezes em silêncio,outras em lágrimas e gritos.Muitas solitárias outras em familia.Mas todos um por um tombaram ao peso que haviam colocado sobre si própios.
Ficaram os bebés e muitas crianças pequenas e alguns que por um motivo ou outro estavam desligados do desejo e da vontade.
Fomo-nos juntando e hoje já somos algus milhares nestas paragens e concerteza muitos milhares em muitas outras pastagens espalhadas por este planeta que não sendo muito grande não é nada pequeno.
Quando cheguei a esta costa já cá estava o Pai Tomás, que é como quem diz esse gadelhas que ai esta a fumar desse lado da fogueira,enquanto partilhavamos o primeiro de muitos peixes ele contou-me o seu lado da estória onde fiquei a saber que o Tiago Sonho ainda tentou usar o canal de televisão de Toupia para dissuadir as pessoas de idéias suicidas mas a sua falta de sucesso e de electricidade para as transmissões acabou por o levar ao mesmo fim.
De Kurt Vian nunca mais ninguém ouviu falar mas felizmente a musica sempre continuou dentro de nós e por certo ele continua por ai fazendo o que sempre fez.
Afinal ele só estava a fazer o melhor que sabia.
Mas ainda assim é com nostalgia que recordo os tempos em que dormia quente,doente e sozinho,olhando apaticamente qualquer canal na saudosa televisão naquele lar no Principe Real.
Talvez seja o peso de ter somente uma fogueira e tantos olhos colocados mim quando os queria colocar em alguém.
Ou talvez seja a minha eterna insatisfação que sempre deseja um novo começo mas sempre evita o necessário fim.


A necessidade estará em escrever ou em ser lido?
Somos o que somos ou somos o queremos ser?
Será a contemplação inimiga da acção?
Estas e outras, muitas, dúvidas me levam a escrever na ânsia de me conhecer melhor e talvez conhecer outros.

 
Autor
Paulolx
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