Contos : 

O Triunfo de Emília (Completo)

 
O Triunfo de Emília
Um dia falava eu da Madeira à 4ª classe...
O tema tinha surgido num caderno de redação de António Branco... Eu sei que é um tanto difícil falarmos a crianças de coisas que nunca vimos...
É como um míope falar de horizontes nítidos a um cego... Mas fiz-me forte e falei. Fui buscar aos pontos recônditos da minha memória leituras ocasionalmente feitas, documentários filmados, crónicas turísticas e juntando tudo às explicações que aparecem nos compêndios escolares, eu disse maravilhas da ilha, do seu clima, das suas paisagens, da sua frescura...
Chamei-lhe até a «Pérola do Oceano»... como ouço chamar...
As pequenas ouviam-me de olhos abertos um tanto suspensas da exposição tão prolongada... Fotografias... pérolas... preciosidade... origem... Ilha de Sonho... Esgotei tudo. Se fosse compêndio teria ficado esfarrapado...
Depois...
- Emília, és capaz agora de fazer uma bela redação sobre a nossa Ilha da Madeira?
- ...
Então... Olha, vais dizer-me, assim, de repente, antes de escreveres o que ficaste a pensar sobre tudo o que expliquei... Quero ver se realmente compreendeste...
A pequena olhou-me, com aqueles grandes olhos redondos cor de azeitona madura... (E que olhar parado, Meu Deus!). Num murmúrio (é de poucas falas esta Emília...) tentou alinhavar um pouco estropiadamente uma redação oral... Toda eu cá por dentro pulava de contente... Meu Deus: a pequena tinha compreendido, ela que era tão difícil em coisas de compreensão... Eu devia sorrir e isso parece que a ajudava, pois, ia dizendo coisas e mais coisas e mais coisas sobre a Madeira...
Exultei! (Vitória! Vitória ! Vitória!)
Nisto...
- Muito bem... muito bem... Muito bem!
Emília, tens mais alguma coisa a dizer para pores na tua redação?
- A Madeira é tão importante que «inté le chamam a parola do Ociano...»
Silêncio brusco... e logo uma revoada de gargalhadas na classe... Que fazer? Os olhos parados da Emília tornaram-se mais fundos, imprecisos, quase húmidos...
- Então, meninas? Nunca se enganaram? Não viram que Emília queria dizer «Pérola» e não «Parola»? E que a língua lhe fugiu e não pronunciou bem Oceano? ...
As outras olharam-se comprometidas e alguns joelhos tocaram-se debaixo das carteiras...
A Emília, essa olhou para mim e naquele modo muito seu, sorriu-se, os olhos mais profundos e rasgados. (Que olhar parado, Meu Deus!)
Senti-me em paz e devolvi-lhe o sorriso...
- Vamos então à redação?
... ... ... ... ... ... ... ... ...
Sabem o que saiu à Emília na prova oral da 4ª classe?
Isso mesmo: A Madeira!
No fim da prova o júri cumprimentou-me:
- A colega parece que fez poetas as suas pequenas... Aquela miúda, de carinha tão pouco esperta, expôs-me um autêntico tratado sobre a Madeira... E sabe? Fiquei tão encantada que não lhe perguntei mais nada... Olhe, que até me disse que a Madeira era tão linda, tão preciosa pelo seu clima e beleza natural que até lhe chamavam a Pérola do Oceano... E como ela acentuou estas últimas palavras! Parecia o remate de um discurso...
Não tive a coragem de contar... Fiquei a saborear o triunfo de Emília...
O meu olhar cruzou-se com o dela... Sorrimos as duas.
... ... ... ... ... ...

Ainda hoje quando se cruza comigo na estrada coalhada de Sol a Emília sorri de olhos parados...
E eu... recordo.
«Parola do Ociano»...
Como as crianças são, Meu Deus!

Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973, p. 187-188.
Data da conclusão da edição no blogue – 05 fevereiro de 2015
http://mariahelenaamaro.blogspot.pt
 
Autor
amacsequeira
 
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