Crónicas : 

Botafora

 
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«Botafora» (1944)
(crónica n.º7)
Enchia-se a Ribeira de gente de todos os tamanhos e feitios e o estaleiro era um mar colorido feito de lenços, de chapéus de palha e de bonés.
Nessa tarde, não havia escola e todos nós, lá íamos rua fora de bandeirinha na mão, em fila com a professora Dona Lóquinha ao lado, direitos ao estaleiro. Ia acontecer o acto mais solene do ano: «Botafora».
Demoradamente, os carpinteiros, os calafates, os operários de construção naval, os mareantes, tinham vindo a construir no estaleiro, o barco, para nós, o mais maravilhoso do mundo!
Olhávamos, de baixo, de pés próximos da água ribeirinha. Víamos, no alto, aquele monstro enorme rodeado de cordas, de homens, de ruidosa confusão.
De repente a confusão esfumava-se e fazia-se um silêncio expectante. Paravam os risos e as falas. Alguém muito ilustre na vila subia ao ponto mais alto da nau e pronunciava algumas palavras circunstanciais… Um discurso longo, cheio de louvores e referências a alguém ou alguns que planearam e construíram o barco… Talvez o orador fosse o Senhor Presidente da Câmara, Padre Manuel de Sá Pereira ou o capitão da Marinha ou simplesmente o construtor Senhor Isolino… suponho.
Terminado o discurso, o ruído das palmas e dos “vivas”, enchia o recinto, inundava de alegria a zona ribeirinha.
O Senhor Arcipreste estendia a mão aspergindo a água benta… Estava benzido o barco! Havia sempre um momento em que a banda musical de S. Paio de Antas se fazia ouvir em silêncio de ouro e tocava o Hino Nacional. Então, alguma dama escolhida, representava as mulheres de Esposende, atirava uma garrafa de champanhe contra o casco do barco e a seguir, a sirene dos Bombeiros Voluntários começava a tocar numa saudação de alerta e de regozijo. O sino da Igreja Matriz, ali perto, espalhava no ar badaladas de júbilo. – Era então o espanto total: As cordas que sustinham o barco iam alargando, soltavam-se das amarras, levantava-se a ancora, e os mareantes empurravam com força o gigante, que deslizava suavemente em direcção à água para nossa admiração!
Logo que o costado tocava na água lodosa fazia ouvir um ronco prolongado, triunfante que se estendia por cima de toda a Ribeira, pejada de gente… Nós, crianças, de bandeirinha na mão gritávamos entusiasmados: - Botafora! Botafora! Botafora!...
Víamos o monstro de madeira sulcar as águas em direcção à doca, enfeitado de bandeirinhas multicolores, o povo a dispersar com cara alegre e nós regressávamos à Escola, a entregar as bandeirinhas e, depois, a casa. Nesse dia não houvera aulas, mas, a bandeirinha ficava na Escola… para uma outra comemoração seguinte.
A lição fora dada ao ar livre, diante das águas do Cávado e do mar, rostos ao vento e mãos ao sol empunhando a bandeirinha, a saudar o barco construído, a louvar os construtores de tal monstro e os mareantes corajosos que sulcariam as ondas alterosas, em busca… em busca, muitas vezes, do pão e de nenhuma alegria. Tempos difíceis, esses!
Recordo tudo com nostalgia: onde está a Ribeira de meu tempo de criança? Que fizeram do estaleiro?
Tantas saudades do “Botafora”, Meu Deus!
Maria Helena Amaro
Braga, 1993 – (retirada de um conjunto de crónicas sobre Esposende – “As gentes da minha terra” – iniciadas em 1993.)
Inéditas.
• A autora não segue o acordo ortográfico.



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Autor
amacsequeira
 
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