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Carta aos Mortos

 
Carta aos Mortos
 
Cemitério de Évora,
04 de Junho de 2016 ...

... de tarde.


Vós, Mortos que aqui estais, dormidos, em repouso, em vossas camas de silencio e quietude, quanto vos invejo, quanto vos desejo, procuro e acaricio em meus sonhos mais profundos! Despertai neste momento e ouvi o que tenho para dizer!

Aqui, sentado, no cruzeiro do cemitério, miro-vos e procuro entender como será tal repouso. Estou ainda do lado oposto, do lado daqueles que vos choram, arrepiados de saudade. E como será estar do vosso lado?! Acaso querereis vós ser chorados?! Não será morrer um novo nascimento?! E quantas diferenças (tantas) há entre nascer para viver (temporariamente) e "nascer" (morte) para morrer (para sempre), ou deverei chamar-lhe (à Morte) um nascimento para a verdadeira Vida?!

As Escrituras Sagradas dizem: "Lembra-te que és pó e que ao pó hás-de tornar!" Mas e o que é a vida (no corpo) mais do que pó também? Pó vivo na realidade! Pó que fala, pó que vê, pó que ouve, pensa e escreve. Não pode o Ser humano transformar-se (com a morte) em pó, sem que o não seja, antes de o ser, em vida! Aquilo que é, já tem que ter sido antes (de modo diferente é certo), senão, não seria o que é, mas sim outra coisa. "Pó, cinza e nada", dizia Florbela Espanca! Pó que anda, cinza que ama, nada que sente!

Também vós, Mortos que aqui estais, por quem nós, vivos, tanto esperais, sois "pó, cinza e nada!" Mas sois um pó diferente. Pó que não anda, cinza que não ama, nada que não sente! Mas que já andou, já amou, já sentiu ... sois pó estático, incólume, parado. Pó caído na forma do sem forma, na quietude do silencio, em covas ou jazigos de solidão! E a nossa solidão? A solidão dos vivos que, por vezes, mais que mortos, nos parecem? Não serão tumbas os seus corpos, onde Almas que, ainda pensam, estão vazias e caladas?! Vós Mortos, ao menos, estais postos em sossego! Nós vivos, não! Há gritos que nos "rasgam" por dentro e nos ferem sem piedade.

Há entre nós (vivos e mortos) uma linha frágil, ténue, que nos une e nos separa. Mas só vós, Mortos que aqui estais, podeis romper esse silencio e falar do segredo que é a Morte. Porque Vós, já fostes vivos e agora estais Mortos, eu apenas sou um vivo, um miserável vivo, não toquei ainda esse mistério! Mas algo vos impede de falar aqui e agora!!! O que é? O que vos impede ó Mortos de falar se já falaram? Dizei-me, Francisco de Calça e Pina! Falai, vós, ó Barreiros Torres de Vaz Freire, família de Francisco Braz da Silva, família Gouvêa, Rato Santana e tantos, tantos que hoje, pó dormido, lento e arrefecido, repousa neste chão! Falai! Dizei! Rasgai esse silencio! Rompei essa linha que nos une e nos separa no alto da madrugada ...

A Morte é esposa do Tempo. O Tempo é filho da Solidão (viúva de seu esposo) que, certa vez, desposou o Mistério (agora morto), e o Mistério, nasceu um dia da Mente de Deus.

A Vida é filha "condenada" da Morte e do Tempo (mortal e imortal em simultâneo), neta da Solidão e do Mistério, criada por Deus, desde toda a Eternidade. A Morte não tem Linhagem! Por isso, a Vida e a Morte estão para sempre entrelaçadas, unidas e separadas, por um Tempo, mais curto ou mais distante, o Tempo de cada um, num processo de Solidão, interno e pessoal, vivido no Mistério, dia-a-dia, cada instante, neste Palco-de-silencio criado por Deus!

E Deus? De onde veio? Quem é? Se é humano e também morre, pode ajudar-nos nesta demanda, se o não é, não morre e, por isso, não importa, nada acrescenta a esta dissertação, pois nunca saberá o que é morrer, nunca no-la explicará em totalidade, porque nunca morreu! Mas dizeis: E Cristo?! E eu respondo com outra questão: Era Divino ou humano?! Eterno ou mortal?! Os dois?! Muito fala a Cristandade e arredores deste assunto sem nada esclarecer em concreto e profundidade! Eu sou Cristão mas deixei de ouvir as conversas arrogantes e intelectuais sem espinha dorsal, dos Teólogos deste Mundo! Fantasias atrás de fantasias que professam inenarráveis fanatismos!

Mas podeis perguntar ainda: Se Deus sabe tudo e criou a vida, não terá igualmente criado a Morte, já que, vida e Morte, são duas faces da mesma moeda?! E tendes razão. Eu acredito que Deus criou a vida e a morte mas, "aninhou-se", segundo a sua própria escolha e vontade, do lado da Vida (Eterna). Por isso, Deus, nunca morreu nem morrerá! Que sorte a sua! Ou não ...

Se para que tudo mude é preciso que algo não mude, e isso que não muda é a Vida, dizem os orientais, então, para que tudo morra será igualmente preciso que algo não morra, e isso é Deus, digo eu! No fundo Deus e a Vida são a mesma coisa!

Ainda que muito se conheça daquilo que se crie, saber-se-á em verdadeira e profunda realidade, sem nunca o ter experimentado?! Só Vós que, vivestes num corpo, agora mortos, podeis falar da Morte. Deus só pode falar-nos do processo, porque o criou, mas nunca o experimentou. Tirando Cristo, obviamente, de quem confusamente se fala! Que dizem que morreu, mas depois, afinal, não morreu, porque era Deus, e era Eterno! E muita confusão ronda ainda este Mistério (nascido certa vez da Mente de Deus como dissemos atrás!) E atenção que eu sou um crente que o professa (Cristo)! Muitas conversas põem os Teólogos, sobre a Morte, na boca de Deus. Ironias e contra-sensos! Promessas falsas que, certa vez, puseram os Mortos, acabados de morrer, perdidos, sem caminho, na presença de Yung que, os instruiu para a Luz com os Sete Sermões que lhes dedicou. Sobre a Morte, só Vós, Mortos, que já fostes vivos, como eu, podeis falar. Assim, deixemos Deus fora deste assunto. Já basta que vocês não me respondam. Não preciso de mais ninguém (Deus) para ajudar neste cáustico Mistério!

Há aqui uma paz que avassala os Corações. Porque fogem os vivos dos Mortos, se, os Mortos, mais que os vivos, estão em Paz (os seus corpos pelo menos, as suas Almas não sei, já nem sei se as há!) Paz que os vivos não encontram nem pressentem! Eles sem dor nem doenças, nós gemendo e chorando, eles vivos para sempre, nós morrendo dia-a-dia, fazendo guerras e contendas. Pobres miseráveis que somos, nós, homens mortais que, nos comportamos como Deuses!

O Sol bate nas lousas, a sombra dos ciprestes desenha métopas no chão, há flores ao vento, um cheiro a rosmaninho, alfazema e alecrim, tanta malvasia pelo ar, cheira a terra seca, é Verão. Se viemos do pó e vamos para o pó, o que somos nós mais do que pó, questionou-se, certa vez, o Padre António Vieira, na Igreja de Santo António dos Portugueses em Roma, no sermão que fez em Quarta-Feira de Cinzas! "Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris!" (Homem, lembra-te que és pó e que ao pó hás-de tornar!) Oiço o pó de cada sepultura clamando aos gritos: *"Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este Eu, e não outro, é o que há-de morrer! Depois vem a Eternidade ..." E afinal o que temer?! A vida até ao pó ou a vida depois do pó?! Temer a vida que morre (sobre a Terra) ou a morte que dá vida (eternidade da Alma)?! Aqui, neste mundo de vivos-mortos, ao menos sabemos com o que contar, e depois, havendo eternidade, aonde iremos, como será esse mundo de Mortos-vivos?! Eis a questão que é anterior à própria humanidade e à qual nunca se deu resposta!

*"Não é terrível a morte pela vida que acaba mas pela eternidade que começa!" Mas se a Alma é eterna, tão eterna é depois do corpo morrer, como no corpo que vai morrendo, dia-a-dia, em vida ... Então não estaremos nós já na vida eterna?! Aqui e agora?! Afinal, nós não vamos para vida eterna! Nós já estamos na vida eterna! Eis a grande chave desta dissertação que, busca compreender, o intervalo entre a vida e a Morte! Afinal, esse intervalo, chama-se eternidade, e é, uma constante! A eternidade, tal como Deus, é anterior a Si mesma ... Una, Indivisa, Eterna e Incriada, os atributos da Vida, os atributos de Deus. Humor negro, contradição ou ironia do destino, vós, Mortos, já fostes como eu, vivos, mas eu, vivo, nunca fui como vós, mortos. Vós não tornareis a ser como eu, porém, eu, serei um dia como vós!

*Padre António Vieira IN Sermão de Quarta-Feira de Cinzas.

A vida nada mais é que um intervalo entre o pó de onde viemos e pó para onde vamos, logo, é igualmente um tempo de pó. Um instante diferente entre pó e pó nessa viagem circular de pó a pó! O copo que é copo, quando cai ao chão e se despedaça em mil pedaços, não deixa de ser copo. Todas as partes que o compunham estão lá, a forma, é outra, apenas. Então deixou de ser copo só por ter outra forma? Não tem utilidade, é verdade, no entanto, a matéria está lá, toda. É assim com a Morte! A pessoa que vai a sepultar é a mesma que antes acariciava seus parentes. Então deixou de ser pessoa só por estar morta?! Não tem "utilidade", é verdade, mas diferente do copo que se partiu, a pessoa que vai a sepultar, tem a mesma forma física, está inteira! Mas algo lhe falta! Então o que é? A Vida! Dizem uns! A Alma dizem outros! E o que são a vida ou a Alma?! Um suspiro? Um Espírito? O quê? O que é se não se vê? E para onde vai?...

As pessoas são muito mais do que os corpos mortos que vão a sepultar por falta de "utilidade" e que apodrecem em jazigos ou em tumbas rasteiras! Elas são aquilo que que diziam, que pensavam, que faziam, e isso, não morre nunca, nem tem como ser sepultado ... vós estais mortos mas vivos também! Porque enquanto alguém vos recordar estareis vivos ainda que estejais mortos. Porém, os que vos recordam, um dia, também morrerão, e deixará de haver quem vos lembre! E aí? Morrereis finalmente?! Não! As vossas tumbas cobertas de epitáfios de saudade estarão lá para vos testemunhar. E ainda que não haja quem vos recorde de modo natural, por vossas campas, passarão séculos e séculos de gentes que, lerão vossos nomes, gravados nas pedras que, vos pesam sobre os corpos. E estareis vivos na mesma, na boca e no pensamento de quem os vossos nomes pronunciar! "Aqui jaz fulano de tal ... quem seria?! Que história terá sido a sua?! Que bonito era! Terá morrido de quê?! ..."

E assim é! O Tempo é contra a Matéria mas a favor da consciência. Quantos mais ciclos de tempo vivermos mais decaídos ficam os nossos corpos, mas, mais madura pode ficar a nossa consciência (dependendo da forma como se vive a vida). Aqui, no cemitério, até as pedras e as inscrições, o Tempo, esposo da Morte, apagará. Mas o que dizer daqueles que, nem a Morte nem o Tempo, apagarão?! Vejam-se os grandes artistas: cantores, poetas, actores ... a Vida foi-lhes mais "mortal" do que, a Morte e o Tempo que os imortalizou! Vós, Mortos, sois o pó da Morte, mas já fostes como eu, o pó da vida! Então, não serei eu pó também, mesmo ainda antes de morrer?! Quem de vós me falará deste mistério?! Quem?! Quando?! Como?! ...

Há neste espaço um silencio aterrador. Há Sol, vento, pessoas a passar, que me olham com desprezo, indiferença e estranheza. Não entendem o que faço aqui, encostado a uma cruz, no cruzeiro de um cemitério, cheio de livros e papeis, de caneta em riste. Digo-lhes que falo convosco, ou que, tento, pelo menos?! Melhor não! Diriam: está louco! Isso que, talvez, quem me lê neste momento, independentemente do tempo que já tenha passado, diz também! E não serei eu um louco na verdade?! E o que é a verdade? Qual é a verdade? A verdade de uns é a mentira de outros. E vice versa. E tudo é relativo neste mundo de matéria. E aí onde vocês estão? Será igual? Será diferente? Não oiço nada, Só silencio, vazio e solidão ... mas estou em paz como a paz de um cemitério! Sinto-me bem entre os mortos como se fosse um deles! Talvez porque já esteja morto em vida!

Sempre me senti assim! Morto! Sem esperança! Depois de morto será diferente (espero e acredito!)! A tarde cai no horizonte, a noite aproxima-se. Dentro em breve fecharão o cemitério. Não tive resposta dos Mortos. De repente, um funcionário (parece pela roupa), aproxima-se de mim:

- Olhe, desculpe, o cemitério vai fechar. Fica ou vai?!!!

- Terei que ir, certamente, respondi. Mas sou-lhe franco, precisava ficar e até ficaria se deixasse! ...

- Como calcula não posso deixa-lo ficar. À noite, aqui, tudo é diferente! Dou-lhe mais dez minuto.! Vou ali abaixo arrumar as ferramentas...

E aquele homem desapareceu entre os ciprestes e os jazigos, como uma sombra, um de vós, morto! Arrepiei-me! De repente, fixei um ponto, uma chama, uma luz no interior de um dos jazigos que flamejava ao longe! Emudeci de espanto! Já estava de pé, pronto para sair e voltei a sentar-me, siderado. Pensei em aproximar-me mas tive receio que aquilo não fosse nada, que desaparecesse. Optei por aguardar, sentado, no mesmo sitio, junto à cruz. O entardecer desvanecia a passos largos. A noite caia rapidamente sobre o espaço. Ali, só eu, ninguém mais, já tocava o sino que anuncia o fecho do cemitério. E eu, paralisado, escrevi, ditado por uma voz que se apoderou da minha mente:


INSCRIPÇÃO AOS VIVOS:

Nós Mortos enterrados
neste chão feito de pó
já tivemos um passado
fomos vivos como vós!

Já fizemos da vaidade
certo grito moribundo
mas talvez a eternidade
seja mais que um triste mundo!

Aonde vais ó caminhante
aonde vais tão apressado
não prossigas mais avante
também tu estás condenado!

Por aí tantos passaram
foram muitos, tanta gente
só à Morte se aninharam
nenhum ficou lá para sempre!

Parece longe a vossa Morte
também a nossa parecia
num instante vai-se a sorte
e lá morrem qualquer dia!

Mas acreditem que morrer
não é tão mau como se diz
é mais simples que viver
à deriva por aí!

Nós Mortos que aqui estamos
neste pó em solidão,
por vós, vivos, esperamos,
algum dia neste chão!

dos Mortos


E a luz apagou-se! A voz calou-se! O sino também! Ainda gritei pedindo que esperasse, mas em vão, evaporou-se! E, ao fundo, surgiu entre a névoa, o "funcionário" do cemitério, com um carrinho de mão, passou por mim e disse:

- Agora tem que sair! Rapidamente! ...

Não percebi o "rapidamente", mas segui-o até à porta, por entre os túmulos. Já era noite, não tinha percebido muito bem quanto tempo tinha passado entre a primeira abordagem dele e aquela chegada! Estranhamente sentia que todo o tempo que ali tinha estado estava entre esses dois tempos. Mas era impossível!
Saí pelo portão, ouvi as grades a fechar e quando olhei para traz não vi ninguém. O portão tinha sido fechado por dentro! Loucura! Puramente loucura! Só podia! Um sonho ou fantasia! Não percebia nada do que tinha acontecido ali!

Olhei os mortos um ultimo instante, por entre as grades do portão, cobertos pela morte, e recordei aquela frase intemporal que atravessou a noite-dos-Tempos:

"SIC TRANSIT GLÓRIA MUNDI ..."

Que quer dizer, Assim Passa a Glória deste Mundo!

Na esperança de "adormecer" um dia, em Paz, nos braços da Morte, aí onde se vive a verdadeira vida, despeço-me,

ainda vivo,
Richard Mary Bay

P.S./ A Morte é a outra face da Vida ... não é o fim ... é o Principio!


Richard Mary Bay
"o Último Romântico"

 
Autor
SirRichard
 
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