Prosas Poéticas : 

Nascido Tarde

 
 
Quando nasci tinha trinta e nove anos de idade. Poesia é o nome da minha mãe que me teve numa idade avançada. Como sabem, em idades avançadas não se devia ter filhos porque se corre o risco de malformações nos fetos.
A minha mãe foi avisada pelos médicos, mesmo assim correu o risco e eu nasci.
Quando passeio no jardim escuto as pombas que param para beber no lago do livro de histórias que leem, enquanto eu me escondo dos meus vizinhos que atiram pedras de papel branco, a mando das mães.
Escondo-me porque nasci tarde, com trinta e nove anos, e sinto vergonha dos outros que nasceram antes de mim.
Os pedúnculos das flores que tenho pelo corpo nasceram ocos. Um dia, cheia de curiosidade, quis saber se os das árvores também seriam iguais. Foi quando me acusaram de ter cortado as veias às árvores do parque e elas morreram. Tentei explicar-lhes que só as queria ver como eram por dentro, e depois ia cozê-las com linhas de costura da minha mãe. Mas ninguém me entendeu e consideraram o acto como um defeito de ter nascido tarde. Agora escondo-me por baixo da capa do livro, cheia de ervas, e fico ali até à noite quando sigo as estrelas dos lençóis da minha cama.
Também não poderei frequentar as escolas porque tenho idade avançada.A minha mãe ralha-me por eu ter nascido tarde mas eu não tenho culpa e ela sabe.Um dia tentei agradar-lhe e arranquei uma flor do meu corpo e dei-a para ela ficar feliz, mas ela pisou-a com o pé.
Os médicos dizem que não tenho cura, serei assim toda a vida: o ter nascido tarde.
Um Médico escreveu à minha mãe que eu podia fazer um tratamento intensivo para aprender a fazer poesia, que assim ia aliviar as minhas dores. Disse à minha mãe para me levar a uma clínica de livros e de leituras para fazer fisioterapia aos músculos das minhas flores; ao mesmo tempo que lia, levava choques eléctricos nos olhos e raios infra – vermelhos, por baixo da pele, no sangue.
Nunca mais fui ao tratamento! Mentia à minha mãe e fugia para o mar. Atirava areias à água com as gaivotas. Um dia a minha mãe desconfiou que não fazia os tratamentos e bateu-me, aqui nas costas, com uma pena, onde tenho a marca nas costelas.
Gostava de ter outra mãe que não fosse tão má.
Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar.Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens. É por isso que lhe trinco os bicos, para ir buscar o que ela tem dentro dela. Sei que lhe dói quando faço isso porque ela grita e não me dá mais.
Gostaria de ter nascido como os outros poetas, com sete ou com nove anos de idade, não mais nem menos.
A minha mãe não teve culpa de eu ter nascido tarde. Foi a bruxa que vive no monte, na casa dos partos que adormeceu durante trinta e nove anos. A minha mãe não queria acordá-la mas teve que o fazer porque já não podia estar grávida, mais tempo, porque o mar se soltou rebentado pelas pernas abaixo.
Foi por isso que eu só nasci aos trinta e nove anos.
Ana Maria Costa
30 de Março de 2007

 
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Ana Maria Costa
 
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Enviado por Tópico
NinaAraújo
Publicado: 31/08/2008 12:54  Atualizado: 31/08/2008 12:54
Da casa!
Usuário desde: 19/05/2008
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 264
 Re: Nascido Tarde p/ Ana Maria Costa
E ainda bem que voce nasceu no colo da Ana, poesia!!

"Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar.Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens"

estou encantada! Abraços,Nina.


Enviado por Tópico
Norberto Lopes
Publicado: 31/08/2008 13:21  Atualizado: 31/08/2008 13:21
Membro de honra
Usuário desde: 15/03/2008
Localidade: Lisboa
Mensagens: 896
 Re: Nascido Tarde
Olá, Ana Maria
Não faz mal que tenha nascido tarde;
O importante é que tenha nascido grande!
abraço


Enviado por Tópico
jessé barbosa de oli
Publicado: 31/08/2008 13:38  Atualizado: 31/08/2008 13:38
Da casa!
Usuário desde: 03/12/2007
Localidade: SALVADOR, Bahia
Mensagens: 334
 Re: Nascido Tarde
magnífica prosa! abordaste tua relação com a poesia de modo tão engenhoso, intimista, visceral
e, concomitantemente, feérico,
que perdi o fôlego de tão extático
que fiquei.
tens uma verve poética genial!
muito grato pelo convite.