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O AUTO DO PADRE ANTÔNIO

 
O AUTO DO PADRE ANTÔNIO

Esta história poderia ter como título “O conto do vigário”. Claro, é um bom nome, mas poderia iludir que se trata de uma falcatrua, de um embuste ou uma fábula, o que não é verdade. É simplesmente um causo que aconteceu com um padre.
O nome dele era Antônio, e tal qual o santo, tinha uma satisfação enorme em realizar matrimônios. Ele também era considerado um casamenteiro, por sua quase fixação em não aceitar que alguém pudesse ficar solteiro (a) por muito tempo.
Foi o que aconteceu com Rosalinda. E também com Anastácia, rosa, Matilde... Com muitas casadoiras da cidade. Mas sua grande preocupação era mesmo com Rosa, que além de linda no nome, o era em pessoa. Isso (a sua beleza, e outros dotes essenciais para uma futura esposa) o vigário Antônio não podia admitir serem desperdiçados com a solteirice.
E foram muitos Josés, Pedros e Raimundos que o pobre pároco tentou colocar no caminho de Rosalinda. Todos bons rapazes, bons cristãos e bons filhos de Deus prontos para obedecer ao “crescei e multiplicai” que estava nas primeiras diretrizes do padre.
Mas a linda Rosa não queria saber de casamento, não tão já.
Um dia, dizem que foi na semana posterior ao carnaval, depois da missa dominical, onde padre Antônio, mais uma vez, salientou em seu sermão que o destino do ser humano é garantir a espécie, fazendo que seus filhos continuem procriando com temor a Deus, que Rosalinda foi convidada pelo sacristão para ir até a sacristia. Hi! Pensou a bela jovem, lá vem Seu Padre, outra vez, com seus conselhos casadouros.
Dito e feito. O sacerdote iniciou aquela lengalenga que todas as garotas da cidade conheciam: casar, casar, casar... Que coisa não? Até que ele falou de um tal Tibúrcio, filho do Coronel Fagundes, que estava voltando de seus estudos na capital.
“Tibúrcio” Valha-me Deus. Isso lá é nome de candidato a marido?
Mas a Rosa bela sabia que mais cedo ou mais tarde, preferencialmente mais tarde, seu pai também a forçaria ao enlace matrimonial. E isso ela não poderia evitar. Foi aí que teve a idéia de concordar com o padre. Poderia mostrar boa vontade. Aceitou que ele marcasse um encontro. Mas teria que ser em sua casa, com a presença de toda família. Assim foi combinado.
As irmãs e amigas da Lindarosa estavam todas em frente a casa dela, antecipando suas invejas pela sorte que teria a moçoila por ser apresentada a tão bom partido.
O pretendente chegou cedo, iludido pelas palavras que o reverendo repassou ao seu pai, e de tudo que diziam sobre a beleza da moça; estava ansioso em conhecer tamanha beldade. Não se desiludiu. Não até que ouviu as primeiras palavras da linda donzela.
Claro que não foi uma conversa de primeira vista. Ela levou muito tempo para se recobrar da impressão que teve ao ver chegar aquela carruagem negra puxada por quatro cavalos tão pretos quanto.
O moço que desceu do veículo fazia jus ao transporte. Até a camisa que acompanhava seu terno era escura a ponto de se confundir a uma só peça da vestimenta. Exceto a capa, que tinha um forro tão rubro quanto as chamas do inferno de onde parecia ter saído.
O pai da donzela, que já havia visitado a capital, achou o visitante normal. Talvez um pouco excêntrico, mas normal. Rosalinda é que teve uma opinião só sua. Despejou sobre o recém chegado, enquanto ele ultrapassava o umbral:
— O senhor é um bruxo?
Claro que “Don” Tibúrcio não esperava uma abordagem tão direta. Mas conseguiu se recompor.
— Sim. Como a senhorita percebeu?
— Pelamordedeus! O senhor foi estudar o quê, na capital?
— Minha filha. Não seja inconveniente com o moço.
— Não se preocupe senhor. Estou acostumado com críticas.
— Não o critico senhor. Muito pelo contrário. Estou impressionada. É fantástico.
— Minha filha. Veja como fala. Controle-se.
Foi o que Rosalinda fez. Segurou-se até a visita ir embora, com a promessa de voltar em breve. Mas só se conteve até o meio da manhã seguinte, quando encontrou o vigário.
Derramou todas as suas esperanças em cima do presbítero. Com todos os detalhes. Aí o pároco foi à loucura.
— Como é que é? Um bruxo?
— É, ele passou anos estudando ocultismo, bruxarias e todo tipo de religião.
— Meu Deus do céu — o vigário se benzeu, várias vezes — esse menino ficou maluco.
— Maluco nada. Ele é maravilhoso. O senhor precisa ver como ele fala bonito.
— Deus me livre, minha filha. Deus me livre. — padre Antônio sacudiu a cabeça — você não pode mais ver esse rapaz. Ele está endiabrado.
— Mas ele é tudo que uma moça sonha: É bonito, inteligente e rico.
— Por favor, controle-se. Ele se transformou num ateu.
— E daí? Ele é lindo.
— Você está é louca. Eu nunca vou permitir seu casamento com um herege.
E assim foi por um bom tempo. Rosalinda fascinada pelo bruxo e o padre casamenteiro se maldizendo por ter aproximado os dois.
Quando por fim chegou aos ouvidos do reverendo que o filho do coronel iria desposar a bela Linda em uma cerimônia profana, inventada por ele mesmo, o discípulo do santo não pode se conter e perdeu as estribeiras.
— Vou impedir essa união, nem que tenha que ir até o inferno.
E quase que foi. Na fazenda do coronel estavam construindo um templo dedicado a algum deus que com certeza não era o do bom reverendo. O pai do novo feiticeiro não teve coragem de impedir o filho único em mais essa extravagância.
— Deixe assim padre. Essa juventude inventa essas modas com a mesma facilidade que se esquece delas.
E lá se foi o sacerdote cuspindo fogo pelas ventas. Ele não podia aceitar uma infiltração ímpia dessas. Não na sua paróquia. Mas teve que engolir os pedidos da linda Rosa.
— Pô seu padre. O Tit-mekong disse que não dá nada, a gente pode casar em quantas igrejas quiser.
— Titi o quê?
— Tit-mekong. É o seu nome agora. Significa filho do rio que nasce no Tibete.
— Era o que me faltava. Um filhinho de papai que pensa que é um bruxo tibetano. Que salada! O seu pai não vai permitir uma loucura dessas.
Mas o jovem Tibúrcio, Titi, ou fosse lá como se chamasse; bruxo, bispo ou ateu, não deixava de ser um bom partido. E foi dessa maneira que o pai de Rosalinda viu a questão.
Quando soube da opinião do velho, o Antoniano rodou a saia, quer dizer, a batina. Foi falar com Tibúrcio, com o Titi, com o... Ele foi procurar o noivo-bruxo.
A capela, ou templo, estava quase pronta. Toda pintada de preto. Depois de fazer o sinal da cruz trocentas vezes, o padre se dirigiu ao avarandado onde pai e filho o esperavam.
Nem as recordações do padre sobre o batizado, a escola dominical e a crisma do menino Tibúrcio, tampouco a vez em que o já rapazote fazia questão de ser o coroinha oficial de todas as missas dominicais fez o noivo-bruxo se reconverter.
Meia hora depois, a charrete do pároco voltou para a cidade, com um homem de Deus chicoteando o cavalo como se fosse o capeta em pessoa. E ficou o resto da semana com a igreja fechada.
Foi um longo tempo até terminar a quaresma. Até pareceu que o Tit-mekong sincronizou sua seita com o calendário católico. Marcou seu casamento com a Rosalinda para o começo de maio. Dia dois. O primeiro domingo do mês das noivas. Quando soube, o vigário teve um arrepio percorrendo toda sua coluna. Puts, pensou, e agora? Quem poderá me ajudar a salvar a menina desta enrascada?
— Eu! — disse uma voz atrás da estátua de Santo Antônio — Estou aqui para lhe ajudar.
— Quem disse isso? — O padreco quase engoliu em seco, com o susto que tomou. Seria o milagre que ele esperava? Ler seus pensamentos já era um bom cartão de visitas.
— Eu disse isso. — A voz respondeu suave, como se fosse mesmo a estátua.
— Eu, quem? — Reperguntou o pároco, encarando o santo.
— Eu, o marido do Tib.
Claro que o nosso bom paroquiano se fez de desentendido.
— Marido? Marido de quem?
E eis que surgiu como por encanto, ou gesto teatral, detrás da grande imagem do santo, um moço loiro, olhos azuis, e tudo que uma boa aparição miraculosa deveria ter no semblante.
— Eu sou Gi, o rejeitado.
— Rejeitado por quem? — O Antoniano não poderia aceitar uma desunião, fosse qual fosse.
— Ora, pelo Tib, o Tibúrcio, claro.
Claro. O padre sentiu um estalido na cachola. Então... O tal de Titi, Tibúrcio, o noivo da Rosalinda, o tal rapaz que ele empurrou para ela, foi casado com outro... Com um homem?
Ai meu Deus do céu.
Isso sim foi uma reviravolta daquelas. Padre Antônio fazia de tudo por casamentos, mas o que ouviria do moço com cara de anjo não estava no seu catecismo. Convidou a aparição para ocupar o banco da primeira fila.
— Vamos sentar meu filho. Acho que não estou entendendo. Quem é você?
— Eu já disse. Sou aquele que viveu maritalmente (e feliz) durante três anos com o Tibúrcio, lá na capital.
E o estranho com cara de querubim deu ao padre toda a munição que ele precisava para deter o avanço do Titi em sua paróquia (no fundo, o sacerdote tinha um medo danado de que algum outro tipo de culto pudesse se instalar em sua cidade).
Foi com o loirinho choroso à tiracolo que padre Antonio invadiu a capela, ou templo da fazenda do Coronel Fagundes.
O jovem Tibúrcio não teve outra saída além de admitir o seu (sua) marido (esposa) para a comunidade.
O pai do noivo, mesmo lamentando, ainda pensou na possibilidade de realizarem o casamento com a Linda rosa, afinal... Mas ela, claro, não se conformou com a opção nada ortodoxa das atividades sexuais do seu ex-quase-futuro marido e disse que o Titi, o Tib, o... O ex-noivo estaria muito bem com o anjo loiro, eles se mereciam. E ponto final na história.
Bem, o casamento esperado não se realizou, mas a festa para os dois (duas) noivos (noivas) fez a cidade toda bailar no domingão regado a muito incenso e danças tibetanas que o novo casal da nova igreja mostrou para os maravilhados párocos provinciais do padre Antônio, que quase rasgou suas vestes sacerdotais ao ver sua igreja vazia durante sua santa missa dominical.
Mas aí, o casamenteiro padre lembrou-se do Frederico, o filho do Capitão Dionízio, que estava para voltar de seus estudos na Europa. Dessa vez ele tinha que acertar. Afinal, Rosalinda além de bela no nome, o era também em pessoa.

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Ricardo Porto

 
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