Poemas -> Introspecção : 

Recado escrito na vidraça

 
Cai o silêncio!
Invade-me a existência esta sensação de raiva, que desprezo.
Queria sangrar-me em novo néctar transformado.
Mas aqui me encontro neste vale de escombros,
Nesta rua imunda de humana trampa e sonhos esventrados.
Não fui mais que um humano desvario em convulsão,
Uma vã ilusão que se desfez como a neve no primeiro sol de verão.
Ao menos ela alimenta plantas e flores.
Mas eu que fui o que não quis ser nada mais fiz que me afogar no próprio desalento.
Nasci despido e sujo e em pranto de previsão do que o futuro me reservou.
Iludi-me com o sorriso estendido e com o doce veneno,
Em taças de prata servido.
Embriaguei-me naquele vale de quente cheiro e insane repouso.
Tudo em vão, com em vão foram os quereres acalentados.
Tudo miseravelmente em vão, miseravelmente esquecido
Miseravelmente recordado e que me incendeia a alma e a física.
Dirão os mais doutos das humanas vontades, que fui filho de mim próprio.
Que nada tenho a reclamar e tudo devo aceitar
Com a plácida passividade do cordeiro de sacrifício.
Recuso pois vossas teorias e escárnio e riso de hienas sedentas de sangue.
Ergo-me lentamente acima das vossas cabeças ocas de esperança
Retiro-me debaixo desses vossos pés nus que me calcam.
E riu com o mesmo desprezo com que brindaram a minha queda.
Serei, não mais eu, o ignorante boneco que em vossas mãos serviu de gozo
Em vossas bocas serviu de alimento em rituais de canibalismo de sentimentos.
Não, não voltarei a vossos braços que me roubaram o sonho
E dele fizeram vosso troféu igual a tantos mais.
Serei, morto ou vivo, digno do abraço que para mim estará guardado
Para alem do espaço e para alem do tempo.
A vós, pseudo-santos cegos e mudos, a minha piedade!

 
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lprmiguel
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