Prosas Poéticas : 

Viagem para Paris

 
 


Com apenas dezassete anos, eu despedi-me da minha aldeia.
Levava comigo para recordar, os cantares ao desafio das mulheres camponesas, as brincadeiras da minha infância, o carinho de mãe e o exemplo de pai.
O facto de me vir a sentir só e estrangeiro não me assustava, uma vez que sabia estar numa cidade prometedora, maravilhosa, pelos seus esplendorosos prédios, com ruas cheias de luz, onde a vida seria afortunada.
O desejo de desertar, fora influenciado pelo meu pai anti-salazarista.
Estava no florescer da minha adolescência, numa tarde quente, com um sol a brilhar como que a preparar a minha despedida. Com a mala de cartão à porta de casa, eu olhava para tudo que me era familiar: a minha rua estava estranha, raramente passava um carro, havia silêncio e o sol parecia estar a queimar minha face pela última vez. Minha irmã, perturbada, despediu-se rapidamente e foi para a mestra. Fiquei eu e minha mãe à espera do táxi que entretanto chegou com o meu pai na companhia de um seu amigo e mais os seus dois filhos, também adolescentes.
Despedi-me de minha mãe e partimos em direcção à estação do Entroncamento. Comigo levava uma sentida lágrima salgada que minha mãe deixara cair sobre a minha face. Com o meu saudoso olhar me despedia das lindas casas, com seus belos jardins bem à portuguesa, onde vivia gente pobre e de pele queimada.
Fiquei durante toda a viagem pensando na minha mãe, na sua mágoa, triste destino de bruscamente ver partir seu filho, arrancado de seu regaço. Uma enorme perda, um pedaço do seu coração dilacerado que lhe sai a sangrar.
Já ao entardecer, chegara o comboio à estação do Entroncamento com destino a Paris. Muitos emigrantes, hesitantes, estavam no cais à espera de partir. Tristes rostos, cheios de ansiedade, desejosos de um futuro risonho...! Entretanto, chegou o doloroso momento de me despedir. Meu pai estava de rosto firme, frio e naquele momento comecei a sentir a separação, o desprendimento, a cada rápido minuto que passava.
Dentro do comboio à janela, observava o movimento no cais: meu pai pareceu-me preocupado, também o sol empalidecia e na sua face um avião a jacto desenhava-lhe uma lágrima…!
O apito suou e o comboio começava a deslizar, aumentando progressivamente sua velocidade e apitava, apitava, para que se abrissem alas, tinha pressa de chegar ao seu destino porque no seu interior escondia três fugitivos, independentemente de possuírem passaporte.
Através da janela observava os campos, as casas ainda portuguesas, movimentando-se em direcção contrária à minha, cujos acenos me pareciam ser dirigidos unicamente a nós, os fugitivos…!
Faltava uma hora para a meia-noite, quando chegamos à fronteira de Vilar Formoso; ouviam-se vozes longínquas vindas do cais, onde agitação preocupava-me… Num passo apressado, alguém que não era passageiro, entrou na carruagem, pediu os passaportes, arrancou-os das nossas mãos e com eles saiu. Naquele momento crescia-me um sentimento de insegurança; meu coração batia como o de um passarinho, preso na palma da minha mão. Longos foram os minutos de espera; havia um certo receio de algum problema que nos impedisse de seguir viagem; uma vez que estávamos no limite de idade para legalmente podermos ausentar do país.

Alguém entrou com os passaportes na mão, chamou pelos nossos nomes, entregou-os desejando-nos boa viagem. Fecharam-se as portas, o comboio apitou e reiniciou a sua marcha. Meu coração descomprimira-se e comecei a ver no meu horizonte a tão desejada liberdade. Rompera-se a muralha da minha prisão; abrira-se o véu celestial e no meu olhar começava a ver cintilantes estrelas. No outro lado da fronteira era outro país, onde se podia falar livremente e prosperar.
Para trás deixava o meu país oprimido, inculto e pobre, entregue ao seu fado e à sua fé na virgem Maria.
Já no mundo do meu sonho, adormeci embalado pelo suave movimento do comboio. Lembro-me de ter sonhado que minha mãe me procurava por toda a cidade de Paris, onde poderia estar perdido no labirinto das suas longas ruas e avenidas.
Quando acordei, reparei que estávamos parados num cais, cheio de estranha gente que falava a língua francesa, a mesma que na minha escola aprendera a pronunciar algumas palavras. Descobri numa das paredes umas letras que dizia: “Gare Biarritz”. Depreendera afinal que não estava longe da desejada chegada a Paris.
Ao longo da recta final, observava através da janela a extensa paisagem verdejante, ficando com a sensação de no meu país ter visto um filme a preto e branco e estar agora a ver outro a cores pelo contraste dos tapetes verdes e amarelos que se estendiam pelos vastos latifúndios, onde a terra não era lavrada pela força dos bois.
Já próximo de Paris, comecei avistar arranha-céus, adivinhando o gigantesco que era a capital francesa. Quando cheguei à Gare de Austerlitz, vi sair gente pobre mas robusta, predestinada, com a mala de cartão sobre o ombro, à procura de um táxi, de um familiar ou de um amigo.

Manuel Lucas

 
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Manuel Lucas
 
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