O Amor Quando Se Revela |
em 20/06/2007 13:40:00 (86088 leituras) |
O amor, quando se revela, não se sabe revelar. Sabe bem olhar p'ra ela, mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente não sabe o que há de dizer. Fala: parece que mente. Cala: parece esquecer.
Ah, mas se ela adivinhasse, se pudesse ouvir o olhar, e se um olhar lhe bastasse pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala; quem quer dizer quanto sente fica sem alma nem fala, fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe o que não lhe ouso contar, já não terei que falar-lhe porque lhe estou a falar...
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A Cidade No Mar |
em 20/06/2007 13:40:00 (7462 leituras) |
Olhai! a Morte edificou seu trono numa estranha cidade solitária por entre as sombras do longínquo oeste. Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores, foram todos buscar repouso eterno. Seus monumentos, catedrais e torres (torres que o tempo rói e não vacilam!) em nada se parecem com os humanos. E em volta, pelos ventos olvidadas, olhando o firmamento, silenciosas e calmas, dormem águas melancólicas.
Ah! luz nenhuma cai do céu sagrado sobre a cidade, em sua imensa noite. Mas um clarão que vem do oceano lívido invade dos torreões, silentemente, e sobe, iluminando capitéis, pórticos régios, cúpulas e cimos, templos e babilônicas muralhas; sobe aos arcos templos magníficos, sem conta, onde os frios se enroscam e entretecem de vinhedos, violetas, sempre-vivas.
Olhando o firmamento, silenciosas, calmas, dormem as águias melancólicas. Torreões e sombras tanto se confundem que é tudo como solto nos espaços. E a Morte, do alto de soberba torre, contempla, gigantesca, o panorama. Lá, os sepulcros e os templos se escancaram mesmo ao nível das águas luminosas; mas não pode a riqueza portenhosa dos ídolos com olhos de diamante, nem das jóias que riem sobre os mortos, tirar as vagas de seu leito imóvel; pois, ai! nem leve movimento ondula esse imenso deserto cristalino! Nem ondas falam de possíveis ventos sobre mares distantes, mais felizes; ondas nào contam que existiram ventos em mar de menos espantosa calma.
Mas, vede! Um frêmito percorre os ares. Uma onda... Fez-se ali um movimento! e dir-se-ia que as torres vacilaram e afundaram de leve na água turva, abrindo com seus cumes, debilmente, um vazio nos céus enevoados. As ondas têm, agora, luz mais rubra, as horas fluem, lânguidas e fracas. E quando, entre gemidos sobre-humanos, a cidade submersa for fixar-se no fundo, o Inferno, erguido de mil tronos, curvar-se-á, reverente.
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Claro-escuro |
em 19/06/2007 11:50:00 (7390 leituras) |
Dia da vida Noite da morte... O verso E o reverso Da medalha. E não há desespero que nos valha, Nem crença, Nem descrença, Nem filosofia. Esta brutalidade, e nada mais: Sol e sombra - o binómio dos mortais.
Só que o sol vem primeiro, E a sombra depois... E à luz do sol é tudo o que sabemos: Juventude, Beleza, Poesia, E amor - Amargo fruto que na sepultura, Em vez de apodrecer, ganha doçura.
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Mais alto |
em 18/06/2007 17:00:00 (3518 leituras) |
Mais alto, sim! mais alto, mais além Do sonho, onde morar a dor da vida, Até sair de mim! Ser a Perdida, A que se não encontra! Aquela a quem O mundo nao conhece por Alguém! Ser orgulho, ser águia na subida, Até chegar a ser, entontecida, Aquela que sonhou o meu desdém!
Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível Turris Ebúrnea erguida nos espaços, A rutilante luz dum impossível!
Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber O mal da vida dentro dos meus braços, Dos meus divinos braços de Mulher!
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Vidro côncavo |
em 17/06/2007 20:40:00 (4021 leituras) |
Tenho sofrido poesia como quem anda no mar. Um enjoo. Uma agonia. Sabor a sal. Maresia. Vidro côncavo a boiar.
Dói esta corda vibrante. A corda que o barco prende à fria argola do cais. Se vem onda que a levante vem logo outra que a distende. Não tem descanso jamais.
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Soneto de despedida |
em 16/06/2007 17:10:00 (25847 leituras) |
Uma lua no céu apareceu Cheia e branca; foi quando, emocionada A mulher a meu lado estremeceu E se entregou sem que eu dissesse nada.
Larguei-as pela jovem madrugada Ambas cheias e brancas e sem véu Perdida uma, a outra abandonada Uma nua na terra, outra no céu.
Mas não partira delas; a mais louca Apaixonou-me o pensamento; dei-o Feliz - eu de amor pouco e vida pouca
Mas que tinha deixado em meu enleio Um sorriso de carne em sua boca Uma gota de leite no seu seio
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Voz que se cala |
em 16/06/2007 17:00:00 (5690 leituras) |
Amo as pedras, os astros e o luar Que beija as ervas do atalho escuro, Amo as águas de anil e o doce olhar Dos animais, divinamente puro.
Amo a hera, que entende a voz do muro E dos sapos, o brando tilintar De cristais que se afagam devagar, E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam De corações que sentem e não falam, Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós! Soluço imenso, eterno, que é a voz Do nosso grande e mísero Destino!...
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Meus versos lavro-os ao rubro |
em 15/06/2007 11:24:54 (3602 leituras) |
Meus versos lavro-os ao rubro nesta página de terra que abro em lábios. Descubro- -lhe a voz que no fundo encerra
Os versos que faço sou-os A relha rasga-me a vida e amarra os sonhos de voos que eu tinha à terra ferida
Poema que mais que escrevo devo-te em vida. No húmus a regos simples eu levo os meus desvairados rumos
Mas mais que poema meu (que eu nunca soube palavra) isto que dispo sou eu Poeta não escrevas lavra
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Ternura |
em 11/06/2007 21:30:00 (6696 leituras) |
Eu te peço perdão por te amar de repente Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos Das horas que passei à sombra dos teus gestos Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos Das noites que vivi acalentado Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente. E posso te dizer que o grande afeto que te deixo Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias E só te pede que te repouses quieta, muito quieta E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
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Eu queria trazer-te uns versos muito lindos |
em 10/06/2007 23:50:00 (10059 leituras) |
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos colhidos no mais íntimo de mim... Suas palavras seriam as mais simples do mundo, porém não sei que luz as iluminaria que terias de fechar teus olhos para as ouvir... Sim! Uma luz que viria de dentro delas, como essa que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel! Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento da Poesia... como uma pobre lanterna que incendiou!
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Green God |
em 06/06/2007 01:10:00 (5429 leituras) |
Trazia consigo a graça das fontes quando anoitece. Era o corpo como um rio em sereno desafio com as margens quando desce.
Andava como quem passa sem ter tempo de parar. Ervas nasciam dos passos, cresciam troncos dos braços quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança. E desfolhava ao dançar o corpo, que lhe tremia num ritmo que ele sabia que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho, porque era um deus que passava. Alheio a tudo o que via, enleado na melodia de uma flauta que tocava.
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Vida e Obra |
em 04/06/2007 23:30:00 (14939 leituras) |
Escritor português, natural de Vila do Conde, onde viveu até completar o quinto ano do liceu, após o que continuou a estudar no Porto. José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, publicou, em Vila do Conde, nos jornais O Democrático e República, os seus primeiros versos. Aos 18 anos, foi para Coimbra, onde se licenciou em Filologia Românica (1925), com a tese «As Correntes e As Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa». Esta foi pouco apreciada, sobretudo pela valorização que nela fazia de dois poetas então quase desconhecidos, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Esta tese, refundida, veio a ser publicada com o título Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa (1941). Com Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões fundou, em 1927, a revista Presença (cujo primeiro número saiu a 10 de Março, vindo a publicar-se, embora sem regularidade, durante treze anos), que marcou o segundo modernismo português e de que Régio foi o principal impulsionador e ideólogo. Para além da sua colaboração assídua nesta revista, deixou também textos dispersos por publicações como a Seara Nova, Ler, O Comércio do Porto e o Diário de Notícias. No mesmo ano iniciou a sua vida profissional como professor de liceu, primeiro no Porto (apenas alguns meses) e, a partir de 1928, em Portalegre, onde permaneceu mais de trinta anos. Só em 1967 regressou a Vila do Conde, onde morreu dois anos mais tarde. Participou activamente na vida pública, fazendo parte da comissão concelhia de Vila do Conde do Movimento de Unidade Democrática (MUD), apoiando o general Nórton de Matos na sua candidatura à Presidência da República e, mais tarde, a candidatura do general Humberto Delgado. Integrou ainda a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), nas eleições de 1969. Como escritor, José Régio dedicou-se ao romance, ao teatro, à poesia e ao ensaio. Centrais, na sua obra, são as problemáticas do conflito entre Deus e o Homem, o indivíduo e a sociedade, numa análise crítica das relações humanas e da solidão, do dilaceramento interior perante a relação entre o espírito e a carne e a ânsia humana do absoluto. Levando a cabo uma auto-análise e uma introspecção constantes, a sua obra é fortemente marcada pelo tom psicologista e, simultaneamente, por um misticismo inquieto que se revela em motivos como o angelismo ou a redenção no sofrimento. A sua poesia, de grande tensão lírica e dramática, apresenta-se frequentemente como uma espécie de diálogo entre níveis diferentes da consciência. A mesma intensidade psicológica, aliada a um sentido de crítica social, tem lugar na ficção. Como ensaísta, dedicou-se ao estudo de autores como Camões, Raul Brandão e Florbela Espanca. Na revista Presença, assinou um editorial («Literatura Viva») que constituiu uma espécie de manifesto dos autores ligados a este órgão do segundo modernismo português, defendendo a necessidade de uma arte viva, e não livresca, que reflectisse a profundidade e a originalidade virgens dos seus autores.
Estreou-se, em 1926, com o volume de poesia Poemas de Deus e do Diabo, a que se seguiram Biografia (1929, poesia), Jogo da Cabra-Cega (1934, primeiro romance), As Encruzilhadas de Deus (1936, livro de poesia e tido como a sua obra-prima), Primeiro Volume de Teatro: Jacob e o Anjo e Três Máscaras (1940), Davam Grandes Passeios aos Domingos (novela publicada em 1941 e incluída, em 1946, em Histórias de Mulheres), Fado (1941, livro de poesia com desenhos do irmão Júlio, principal ilustrador da sua obra), O Príncipe Com Orelhas de Burro (1942, romance), A Velha Casa (obra inacabada, mas de que chegaram a sair os volumes Uma Gota de Sangue, em 1945, As Raízes do Futuro, em 1947, Os Avisos do Destino, em 1953, As Monstruosidades Vulgares, em 1960, e As Vidas São Vidas, em 1966), Mas Deus É Grande, (1945, poesia), Benilde ou a Virgem-Mãe (1947, peça de teatro adaptada ao cinema, em 1974, por Manuel de Oliveira), El-Rei Sebastião (1949, «poema espectacular em 3 actos»), A Salvação do Mundo (1954, tragicomédia em três actos), A Chaga do Lado (1954, sátiras e epigramas), Três Peças em Um Acto: Três Máscaras, O Meu Caso e Mário ou Eu Próprio-O Outro (1957), O Filho do Homem (1961), Há Mais Mundos (1962, livro de contos, pelo qual recebeu o Grande Prémio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores), Cântico Suspenso (1968, poesia) e, a título póstumo, Música Ligeira (1970, poesia), Colheita da Tarde (1971, poesia) e Confissão Dum Homem Religioso (1971, obra de reflexão). Na sua obra ensaística, destacam-se ainda os Três Ensaios Sobre Arte (1967), que reúnem textos publicados anteriormente, e Páginas de Doutrina e Crítica da Presença, recolha feita por Alberto Serpa, relativamente à colaboração de Régio na Presença (1977). Partilhou ainda, com o irmão Júlio, o gosto pelas artes plásticas, tendo chegado a desenhar uma capa para a Presença e feito os oito desenhos que, a partir da 5ª edição, ilustram os Poemas de Deus e do Diabo. É considerado, por alguns, como um dos vultos mais significativos da moderna literatura portuguesa. Recebeu, em 1961, o prémio Diário de Notícias e, postumamente, em 1970, o Prémio Nacional de Poesia, pelo conjunto da sua obra poética. As suas casas de Vila do Conde e de Portalegre são hoje museus.
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Pequeno Poema |
em 04/06/2007 20:10:47 (16155 leituras) |
Quando eu nasci, ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias, nem o Sol escureceu, nem houve Estrelas a mais... Somente, esquecida das dores, a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci, não houve nada de novo senão eu.
As nuvens não se espantaram, não enlouqueceu ninguém...
Pra que o dia fosse enorme, bastava toda a ternura que olhava nos olhos de minha Mãe... |
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Interrogação |
em 04/06/2007 11:39:21 (6038 leituras) |
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar, Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo; E apesar disso, crê! nunca pensei num lar Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito. E nunca te escrevi nenhuns versos românticos. Nem depois de acordar te procurei no leito Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo A tua cor sadia, o teu sorriso terno... Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio Da luz crepuscular, que enerva, que provoca. Eu não demoro o olhar na curva do teu seio Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo... Eu não sei que mudança a minha alma pressente... Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço, Que adoecia talvez de te saber doente.
Camilo Pessanha
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Biografia |
em 04/06/2007 11:37:59 (12859 leituras) |
Camilo de Almeida Pessanha nasceu no dia 7 de setembro de 1867 na cidade de Coimbra em Portugal. Após formar-se em Direito foi para Macau, na China, onde exerceu a função de Professor. Acometido de Tuberculose e, segundo alguns estudiosos, viciado em ópio, o que contribuía para o agravamento da doença, retornou várias vezes para a Portugal para tratar da sua saúde.
Essas viagens de pouco valeram, uma vez que o poeta faleceu em 1º de março de 1926 em Macau. Camilo Pesanha que é, sem sombra de dúvidas, o maior e mais autêntico poeta Simbolista português foi fortemente influenciado pela poesia de do poeta frances Verlaine.
Sua poesia, que influenciou vários poetas modernistas, como por exemplo Fernando Pessoa, mostra o mundo sob a ótica da ilusão, da dor e do pessimismo. O exílio do mundo e a desilusão em relação à Pátria também estão presentes em sua obra e passam a impressão de desintegração do seu ser. A sua obra mais famosa é " Clepsidra", relógio de água, que contém poemas com musicalidade marcante e temas até certo ponto dramáticos.
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Faz-me o favor... |
em 03/06/2007 19:50:00 (6263 leituras) |
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Supor o que dirá Tua boca velada É ouvir-te já.
É ouvir-te melhor Do que o dirias. O que és não vem à flor Das caras e dos dias.
Tu és melhor -- muito melhor! Do que tu. Não digas nada. Sê Alma do corpo nu Que do espelho se vê.
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Esoteria |
em 03/06/2007 12:00:00 (2853 leituras) |
Tenho mais que fazer que reler-me. Reler-me custa. É pensar prisioneiro. Nenhuma, cadeia nenhuma serve ao pensamento livre E a cadeia que em nós pomos na cabeça é a pior, é a pior de todas. Já alguém alguma vez viu no ar um pássaro voando com as suas próprias asas? não, isso é engano. O pássaro que voa, voa ajudado pelo vento. E faz de conta que asas não tem. O ar o ajuda? Talvez… o ar o ajuda… Se o pássaro, porém, quiser voar duas vezes: não voa, não voa!, com as dele mesmo asas. Dele é e não é o voo que lhe pertence. E irrepetível é o ar que o move. Dentro de si circula. |
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Biografia |
em 03/06/2007 11:49:43 (4882 leituras) |
Raul Maria de Carvalho nasceu em Alvito, Baixo Alentejo, a 4 de Setembro de 1920. As memórias da infância passadas nesse local manifestam-se em todos os seus livros de cunho autobiográfico. Chegou a Lisboa na década de 40 e tornou-se frequentador do café Martinho da Arcada, contactando com personalidades do meio literário.
Preocupado com a condição dos mais desfavorecidos, assumiu algumas afinidades com os neo-realistas. Conjugou esta preocupação com a aprendizagem de uma liberdade surrealista. Foi colaborador das revistas Távola Redonda, Cadernos de Poesia e Árvore, de que foi co-director (1951-1953).
Em 1956 foi premiado com o «Prémio Simon Bolívar», no Concurso Internacional de Poetas de Siena, em Itália.
Morreu a 3 de Setembro de 1984, no Hospital de São João, no Porto.
Algumas obras:
As Sombras e as Vozes (1949)
Poesia 1949-1958 (1965)
Tudo é Visão (1970)
A Casa Abandonada (1977)
Elsinore (1980)
Um mesmo livro (1984) |
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Elogio da Dialéctica |
em 03/06/2007 01:50:00 (5408 leituras) |
A injustiça avança hoje a passo firme Os tiranos fazem planos para dez mil anos O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são Nenhuma voz além da dos que mandam E em todos os mercados proclama a exploração; isto é apenas o meu começo
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem Aquilo que nòs queremos nunca mais o alcançaremos
Quem ainda está vivo não diga: nunca O que é seguro não é seguro As coisas não continuarão a ser como são Depois de falarem os dominantes Falarão os dominados Quem pois ousa dizer: nunca De quem depende que a opressão prossiga? De nòs De quem depende que ela acabe? Também de nòs O que é esmagado que se levante! O que está perdido, lute! O que sabe ao que se chegou, que há aì que o retenha E nunca será: ainda hoje Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã
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Álcool |
em 02/06/2007 19:14:55 (5595 leituras) |
Que droga foi a que me inoculei? Ópio de inferno em vez de paraiso? ... Que sortilégio a mim próprio lancei? Como é que em dor genial eu me eternizo?
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu, Foi álcool mais raro e penetrante: E só de mim que ando delirante- Manhã tão forte que me anoiteceu. |
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Uma Voz na Pedra |
em 02/06/2007 16:30:00 (3668 leituras) |
Não sei se respondo ou se pergunto. Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra. Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho. De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante. A minha tristeza é a da sede e a da chama. Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio. O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono. Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente. Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim. Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido. Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença. Não sou a destruição cega nem a esperança impossível. Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.
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Se As Minhas Mãos Pudessem Desfolhar |
em 02/06/2007 14:10:00 (7697 leituras) |
Eu pronuncio teu nome nas noites escuras, quando vêm os astros beber na lua e dormem nas ramagens das frondes ocultas. E eu me sinto oco de paixão e de música. Louco relógio que canta mortas horas antigas.
Eu pronuncio teu nome, nesta noite escura, e teu nome me soa mais distante que nunca. Mais distante que todas as estrelas e mais dolente que a mansa chuva.
Amar-te-ei como então alguma vez? Que culpa tem meu coração? Se a névoa se esfuma, que outra paixão me espera? Será tranqüila e pura? Se meus dedos pudessem desfolhar a lua!! |
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Penélope |
em 02/06/2007 13:10:00 (6764 leituras) |
mais do que um sonho: comoção! sinto-me tonto, enternecido, quando, de noite, as minhas mãos são o teu único vestido.
e recompões com essa veste, que eu, sem saber, tinha tecido, todo o pudor que desfizeste como uma teia sem sentido; todo o pudor que desfizeste a meu pedido.
mas nesse manto que desfias, e que depois voltas a pôr, eu reconheço os melhores dias do nosso amor.
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Coração Sem Imagens |
em 02/06/2007 13:08:53 (6261 leituras) |
Deito fora as imagens, Sem ti para que me servem as imagens?
Preciso habituar-me a substituir-te pelo vento, que está em toda a parte e cuja direcção é igualmente passageira e verídica.
Preciso habituar-me ao eco dos teus passos numa casa deserta, ao trémulo vigor de todos os teus gestos invisíveis, à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve a não ser eu.
Serei feliz sem as imagens. As imagens não dão felicidade a ninguém.
Era mais difícil perder-te, e, no entanto, perdi-te.
Era mais difícil inventar-te, e eu te inventei.
Posso passar sem as imagens assim como posso passar sem ti.
E hei-de ser feliz ainda que isso não seja ser feliz. |
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Serenata |
em 02/06/2007 13:00:00 (9399 leituras) |
Permita que eu feche os meus olhos, pois é muito longe e tão tarde! Pensei que era apenas demora, e cantando pus-me a esperar-te.
Permite que agora emudeça: que me conforme em ser sozinha. Há uma doce luz no silencio, e a dor é de origem divina.
Permite que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.
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Na Cadeia |
em 02/06/2007 12:45:52 (5050 leituras) |
na cadeia os bandidos presos! o seu ar de contemplativos! que é das feras de olhos acesos?! pobres dos seus olhos cativos
passeiam mudos entre as grades, parecem peixes num aquário. - campo florido das saudades, porque rebentas tumultuário?
serenos... serenos... serenos... trouxe-os algemados a escolta. - estranha taça de venenos meu coração sempre em revolta.
coração, quietinho... quietinho... porque te insurges e blasfemas? pschiu... não batas... devagarinho... olha os soldados, as algemas! |
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Gota de água |
em 01/06/2007 20:50:00 (5355 leituras) |
Eu, quando choro, não choro eu. Chora aquilo que nos homens em todo o tempo sofreu. As lágrimas são as minhas mas o choro não é meu.
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Poema do alegre desespero |
em 01/06/2007 20:40:00 (6448 leituras) |
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal ninguém se lembre de certo Fernão barbudo que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores que tirou um retrato toda vestida de veludo sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto (o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império) com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil, e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito, e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil, e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras, que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras, e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio, e o resto tudo por aí fora, e a Guerra dos Cem Anos, e a Invencível Armada, e as campanhas de Napoleão, e a bomba de hidrogénio, e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império, mais faraó menos faraó, será tudo um vastíssimo cemitério, cacos, cinzas e pó.
Compreende-se. Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
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Acordar, viver |
em 30/05/2007 18:02:04 (10650 leituras) |
Como acordar sem sofrimento? Recomeçar sem horror? O sono transportou-me àquele reino onde não existe vida e eu quedo inerte sem paixão.
Como repetir, dia seguinte após dia seguinte, a fábula inconclusa, suportar a semelhança das coisas ásperas de amanhã com as coisas ásperas de hoje?
Como proteger-me das feridas que rasga em mim o acontecimento, qualquer acontecimento que lembra a Terra e sua púrpura demente? E mais aquela ferida que me inflijo a cada hora, algoz do inocente que não sou?
Ninguém responde, a vida é pétrea.
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Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa! |
em 26/05/2007 23:01:44 (8837 leituras) |
Ah! Se acontecesse enfim qualquer coisa!
Se de repente saísse da terra um braço e atirasse uma rosa para o espaço!
Mas não.
Lá está o sol do costume com a exactidão duma bola de lume desenhada a compasso...
...sol que à noite continua a andar em redor nas entranhas da lua - que é sol com bolor...
e desde que nasci, haja paz ou guerra, nunca vi outra coisa.
Ah! Como queres que acredite em ti - braço que hás-de romper a terra e atirar uma rosa?
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Os Sinos |
em 20/06/2007 13:40:00 (13052 leituras) |
I
Escuta: nos renós tilintam sinos argentinos! Ah! que de mundo de alegria o som cantante prenuncia! Como tinem, lindo, lindo, no ar da noite fria e bela! Vão tinindo e o céu inteiro se constela, florescente, refulgindo com deleites cristalinos! Dão ao Tempo uma cadência tão constante como um rúnico descante, com os tintinabulares, pequeninos sons, bem finos, que nascendo vão dos sinos, sim, dos sinos, sim, dos sinos, saltitantes, bimbalhantes, dentre os sinos.
II
Escuta: em núpcias vão cantando os sinos, áureos sinos! Quantos mundos de ventura seu tanger nos prefigura! No ar da noite, embalsamado, como entoam seu enlevo abençoado! Tons dourados, lentas notas concordantes... E tão límpido poema aí flutua para as rolas que o escutam, divagantes, vendo a lua! Volumoso, vem das celas retumbantes todo um jorro de eufonia que se amplia, "O futuro é belo e bom!" - clama o som, que arrebata, com em êxtases divinos, no balanço repicante que lá soa, que tão bem, tão bem ecoa na vibrante voz dos sinos, sinos, sinos, carrilhões e sinos, sinos, no rimado, consonante som dos sinos.
III
Escuta: em longo alarma bradam sinos, brônzeos sinos! Ah! que história de agonia, turbulenta, se anuncia! Treme a noite, com pavor, quando os ouve em seu bramido assustador. Tanto é o medo que, incapazes de falar, se limitam a gritar, em tons frouxos, desiguais, clamorosos, apelando por clemência ao surdo fogo, contendendo loucamente com o frenesi do fogo, que se lança bem mais alto, que em desejo audaz estua de, no empenho resoluto de algum salto (sim! agora ou nunca mais!), alcançar a fronte pálida da lua! Oh! os sinos, sinos, sinos! De que lenda pavorosa, de alarmar, falam tanto? Clangorantes, ululantes, graves, finos, quanto espanto vertem, quanto, no fremente seio do ar! E por eles bem a gente sabe - ouvindo seu tinido, seu bramido - se o perigo é vindo ou findo. Bem distintamente o ouvido reconhece pela luta, na disputa, se o perigo morre ou cresce, pela ampliante ou descrescente voz colérica dos sinos, badalante voz dos sinos, sim, dos sinos, sim, dos sinos, do clamor e do clangor que vêm dos sinos!
IV
Escuta: dobram, lentamente, os sinos, férreos sinos! Ah! que mundo pensares tão solenes põem nos ares! Na silente noite fria, quando a alma se arrepia à ameaça desse canto melancólico de espanto! Pois em cada som saído da garganta enferrujada há um gemido! E os sineiros (ah! essa gente que, habitando o campanário solitário, vai dobrando, badalando a redobrada voz monótona e envolvente...), quão ufanos ficam eles, quando vão tombar pedras sobre o humano coração! Nem mulher nem homem são, nem são feras: nada mais do que seres fantasmais. E é seu Rei quem assim tange, é quem tange, e dobra, e tange. E reboa triunfal, do sino, a loa! E seu peito de ventura se intumesce com os hinos funerários lá dos sinos; dança, ulula, e bem parece ter o Tempo num compasso tão constante qual de rúnico descante, pelos hinos lá dos sinos! Ah! dos sinos! Leva o Tempo num compasso tão constante como em rúnico descante, pela pulsação dos sinos, a plangente voz dos sinos, pelo soluçar dos sinos! Leva o Tempo num compasso tão constante, que a dobrar se sente, ovante, bem feliz esse rúnico descante, com o reboar que vem dos sinos, a gemente voz dos sinos, o clamor que sai dos sinos, a alucinação dos sinos, o angustioso, lamentoso, lutuoso som dos sinos!
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As Duas Velhinhas |
em 19/06/2007 13:00:00 (27886 leituras) |
Duas velhinhas muito bonitas, Mariana e Marina, estão sentadas na varanda: Marina e Mariana.
Elas usam batas de fitas, Mariana e Marina, e penteados de tranças: Marina e Mariana.
Tomam chocolate, as velhinhas, Mariana e Marina, em xícaras de porcelana: Marina e Mariana.
Uma diz:"Como a tarde é linda, não é, Marina?" A outra diz: "Como as ondas dançam, não é Mariana?"
"Ontem, eu era pequenina", diz Marina. Ontem, nós éramos crianças", diz Mariana.
E levam à boca as xicrinhas, Mariana e Marina, as xicrinhas de porcelana: Marina e Mariana.
Tomam chocolate, as velhinhas, Mariana e Marina, em xícaras de porcelana: Marina e Mariana.
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Languidez |
em 18/06/2007 17:00:00 (3682 leituras) |
Fecho as pálpebras roxas, quase pretas, Que poisam sobre duas violetas, Asas leves cansadas de voar...
E a minha boca tem uns beijos mudos... E as minhas mãos, uns pálidos veludos, Traçam gestos de sonho pelo ar...
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Liberdade |
em 18/06/2007 16:57:57 (4736 leituras) |
O poema é A liberdade
Um poema não se programa Porém a disciplina Sílaba por sílaba O acompanha
Sílaba por sílaba O poema emerge - Como se os deuses o dessem O fazemos. |
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Poética |
em 16/06/2007 17:10:00 (3824 leituras) |
Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
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Entrevistas |
em 16/06/2007 17:10:00 (4233 leituras) |
"... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade." "É um nome latino, né, eu perguntei para o meu pai desde quando havia Lispector na Ucrânia. Ele disse que há gerações e gerações anteriores. Eu suponho que o nome foi rolando, rolando, perdendo algumas sílabas e se transformando nessa coisa que parece "LIS NO PEITO", em latim: flor de lis".
"Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo".
"Marcada pela solidão. Marcada pelo grande amor de sua vida. Marcada pela luta constante contra a quase miséria material. Marcada pelas mãos maceradas pelo fogo, em defesa da vida de um filho, e pela sombra da insanidade rondando a vida do outro." Tristão de Athayde.
"Antes dos sete anos eu já fabulava e já inventava histórias. Por exemplo, inventei uma história que não acabava nunca, é muito complicado explicar esta história. Quando eu comecei a ler e a escrever, eu comecei a escrever também pequenas histórias."
"Eu misturei tudo, eu lia livro, romance para mocinha, livro cor de rosa, misturado com Dostoievski, eu escolhia os livros pelos títulos e não por autores, porque eu não tinha conhecimento...fui ler aos 13 anos Herman Hesse, tomei um choque: O Lobo da Estepe. Aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora."
"Em uma outra vida que tive, aos 15 anos, entrei numa livraria, que me pareceu o mundo que gostaria de morar. De repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo, presa, ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! Só depois vim a saber que a autora era considerada um dos melhores escritores de sua época: Katherine Mansfield."
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."
Clarice Lispector
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Eu escrevi um poema triste |
em 15/06/2007 11:30:00 (7900 leituras) |
Eu escrevi um poema triste E belo, apenas da sua tristeza. Não vem de ti essa tristeza Mas das mudanças do Tempo, Que ora nos traz esperanças Ora nos dá incerteza... Nem importa, ao velho Tempo, Que sejas fiel ou infiel... Eu fico, junto à correnteza, Olhando as horas tão breves... E das cartas que me escreves Faço barcos de papel!
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Os cinco sentidos |
em 14/06/2007 19:10:00 (27190 leituras) |
São belas - bem o sei, essas estrelas, Mil cores - divinais têm essas flores; Mas eu não tenho, amor, olhos para elas: Em toda a natureza Não vejo outra beleza Senão a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina Saudosa - na ramagem densa, umbrosa. Será: mas eu do rouxinol que trina Não oiço a melodia, Nem sinto outra harmonia Senão a ti - a ti!
Respira - n'aura que entre as flores gira, Celeste - incenso de perfume agreste. Sei... não sinto: a minha alma não aspira, Não percebe, não toma Senão o doce aroma Que vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos, É um mimo - de néctar o racimo: E eu tenho fome e sede... sequiosos, Famintos meus desejos Estão... mas é de beijos É só de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia Do leito - ser por certo em que me deito Mas quem, ao pé de ti, quem poderia Sentir outras carícias, Tocar noutras delícias Senão em ti - em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos, Todos num confundidos, Sentem, ouvem, respiram; Em ti, por ti deliram. Em ti a minha sorte, A minha vida em ti; E, quando venha a morte, Será morrer por ti.
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Para viver um grande amor |
em 11/06/2007 21:30:00 (14419 leituras) |
Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.
Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.
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Viver não dói |
em 08/06/2007 17:09:58 (151301 leituras) |
Viver não dói
Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.
Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projecções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos. Por todos os beijos cancelados, pela eternidade.
Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso: Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional.
Carlos Drummond de Andrade |
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Poema do Silêncio |
em 04/06/2007 23:40:00 (13163 leituras) |
Sim, foi por mim que gritei. Declamei, Atirei frases em volta. Cego de angústia e de revolta.
Foi em meu nome que fiz, A carvão, a sangue, a giz, Sátiras e epigramas nas paredes Que não vi serem necessárias e vós vedes.
Foi quando compreendi Que nada me dariam do infinito que pedi, -Que ergui mais alto o meu grito E pedi mais infinito!
Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas, Eis a razão das épi trági-cómicas empresas Que, sem rumo, Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...
O que buscava Era, como qualquer, ter o que desejava. Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo, Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado Sair deste meu ser formal e condenado, Erigi contra os céus o meu imenso Engano De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!
Senhor meu Deus em que não creio! Nu a teus pés, abro o meu seio Procurei fugir de mim, Mas sei que sou meu exclusivo fim.
Sofro, assim, pelo que sou, Sofro por este chão que aos pés se me pegou, Sofro por não poder fugir. Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!
Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação! (Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...) Senhor dá-me o poder de estar calado, Quieto, maniatado, iluminado.
Se os gestos e as palavras que sonhei, Nunca os usei nem usarei, Se nada do que levo a efeito vale, Que eu me não mova! que eu não fale!
Ah! também sei que, trabalhando só por mim, Era por um de nós. E assim, Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade, Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior Do que a própria imensa dor De compreender como é egoísta A minha máxima conquista...
Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros, E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á, E sobre mim de novo descerá...
Sim, descerá da tua mão compadecida, Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida. E uma terra sem flor e uma pedra sem nome Saciarão a minha fome.
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Biografia |
em 04/06/2007 20:11:29 (8310 leituras) |
Poeta português, natural de Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal. Concluiu o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1947, e ainda nesse ano iniciou a sua actividade de professor, que exerceu em Lisboa, Setúbal e Estremoz. Foi colaborador das revistas Árvore e Távola Redonda. Sebastião da Gama ficou para a história pela sua dimensão humana, nomeadamente no convívio com os alunos, registado nas páginas do seu famoso Diário (iniciado em 1949). Literariamente, não esteve dependente de qualquer escola, afirmando-se pela sua temática (amor à natureza, ao ser humano) e pela candura muito pessoal que caracterizou os seus textos. Atingido pela tuberculose, que causaria a sua morte precoce, passou a residir no Portinho da Arrábida, com a panorâmica serra da Arrábida a alimentar o culto pela paisagem presente na sua obra. Foi, entretanto, instituído, com o seu nome, um Prémio Nacional de Poesia. Estreou-se com Serra Mãe, em 1945. Publicou ainda Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946, em colaboração com Miguel Caleiro), Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951). Após a sua morte, foram editados Pelo Sonho é que Vamos (1953), Diário (1958), Itinerário Paralelo (1967), O Segredo é Amar (1969) e Cartas I (1994). |
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Floriram por engano as rosas bravas |
em 04/06/2007 11:39:48 (5149 leituras) |
Floriram por engano as rosas bravas No Inverno: veio o vento desfolhá-las... Em que cismas, meu bem? Porque me calas As vozes com que há pouco me enganavas?
Castelos doidos! Tão cedo caístes!... Onde vamos, alheio o pensamento, De mãos dadas? Teus olhos, que num momento Perscrutaram nos meus, como vão tristes!
E sobre nós cai nupcial a neve, Surda, em triunfo, pétalas, de leve Juncando o chão, na acrópole de gelos...
Em redor do teu vulto é como um véu! Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu, Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?
Camilo Pessanha |
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Vénus |
em 04/06/2007 11:38:37 (6005 leituras) |
À flor da vaga, o seu cabelo verde, Que o torvelinho enreda e desenreda... O cheiro a carne que nos embebeda! Em que desvios a razão se perde!
Pútrido o ventre, azul e aglutinoso, Que a onda, crassa, num balanço alaga, E reflui (um olfacto que embriaga) Que em um sorvo, murmura de gozo.
O seu esboço, na marinha turva... De pé flutua, levemente curva; Ficam-lhe os pés atrás, como voando...
E as ondas lutam, como feras mugem, A lia em que se desfazem disputando, E arrastando-a na areia, co'a salsugem. |
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Todos Os Dias..... |
em 03/06/2007 23:50:00 (7302 leituras) |
1
Todos os dias os ministros dizem ao povo Como é difícil governar. Sem os ministros O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima. Nem um pedaço de carvão sairia das minas Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol Sem a autorização do Führer? Não é nada provável e se o fosse Ele nasceria por certo fora do lugar.
2
E também difícil, ao que nos é dito, Dirigir uma fábrica. Sem o patrão As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem. Se algures fizessem um arado Ele nunca chegaria ao campo sem As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem, De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que Seria da propriedade rural sem o proprietário rural? Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
3
Se governar fosse fácil Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer. Se o operário soubesse usar a sua máquina E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários. E só porque toda a gente é tão estúpida Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
4
Ou será que Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira São coisas que custam a aprender?
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Biografia |
em 03/06/2007 19:50:00 (4045 leituras) |
Pintor e poeta português, natural de Lisboa. A sua formação artística inclui o curso da Escola de Artes Decorativas António Arroio e estudos na área de música, com Fernando Lopes Graça. Mais tarde, viria a frequentar a Academia de La Grande Chaumière, em Paris, cidade onde conheceu André Breton, em 1947. Rapidamente atraído pelas propostas do movimento surrealista francês, tornou-se um dos mais importantes defensores do movimento em Portugal. Ainda nesse ano, integrou o Grupo Surrealista de Lisboa. Cesariny, figura sempre inquieta e questionadora, afastava-se assim, de maneira definitiva, do movimento neo-realista. Passou a adoptar uma atitude estética de constante experimentação, logo visível nas suas primeiras colagens e pinturas informalistas realizadas com tintas de água, e distribuídas no suporte de forma aleatória. Seria este princípio anárquico que conduziria a obra de Cesariny ao longo da sua vida (incluindo a sua produção poética, que o autor considerava construir a partir deste desregramento inicial das suas experiências na pintura). A continuidade da sua prática plástica levá-lo-ia, portanto, a seguir uma corrente gestualista, por vezes pontuada de um corrosivo humor. Dinamizador da prática surrealista em Lisboa, Cesariny iria criar «antigrupos», com a mesma orientação mas questionando e procurando um grau extremo de espontaneidade, tentativa também visível na sua obra poética. Participou, em 1949 e 1950, nas I e II Exposições dos Surrealistas, pólos de atenção de novos pintores, mas ignoradas pela imprensa. Crescentemente dedicado à escrita, Cesariny viria a publicar as obras poéticas Corpo Visível (1950), Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Nobilíssima Visão (1959), Poesia, 1944-1955 (1961), Planisfério e Outros Poemas (1961), Um Auto para Jerusalém (1964), As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1972), Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972), Titânia e a Cidade Queimada (1977), O Virgem Negra. Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989), e a obra de ficção Titânia (1994). A edição da sua obra não segue linearmente a cronologia da sua produção. Corpo Visível é o volume em que as características surrealistas são já dominantes — em textos anteriores, a denúncia social aproximava-se, por vezes, do neo-realismo, embora já em Nobilíssima Visão esta escola fosse objecto de um olhar crítico. O humor, o recurso ao non-sense e ao absurdo, são marcas da escrita de Cesariny, de uma ironia por vezes violenta, que incide sobre figuras e mitos consagrados da cultura portuguesa e ocidental. Da sua obra escrita sobre a temática do surrealismo, que analisou e teorizou em vários textos, fazem parte A Intervenção Surrealista (1958), a organização e autoria parcial da Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961), a antologia Surreal-Abjection(ismo) (1963), Do Surrealismo e da Pintura (1967), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e Vieira da Silva – Arpad Szènes, ou O Castelo Surrealista (1984).
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Tempos Sombrios |
em 03/06/2007 11:50:00 (9111 leituras) |
Realmente, vivemos tempos sombrios! A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas denota insensibilidade. Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar. Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes, pois implica em silenciar sobre tantos horrores.
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Perguntas de um Operário Letrado |
em 03/06/2007 01:50:00 (14412 leituras) |
Quem construiu Tebas, a das sete portas? Nos livros vem o nome dos reis, Mas foram os reis que transportaram as pedras? Babilónia, tantas vezes destruida, Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas Da Lima Dourada moravam seus obreiros? No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde Foram os seus pedreiros? A grande Roma Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio Sò tinha palácios Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida Na noite em que o mar a engoliu Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Indias Sózinho? César venceu os gauleses. Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço? Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha Chorou. E ninguém mais? Frederico II ganhou a guerra dos sete anos Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitòria. Quem cozinhava os festins? Em cada década um grande homem. Quem pagava as despesas?
Tantas histórias Quantas perguntas
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Paraíso |
em 02/06/2007 19:20:00 (5636 leituras) |
Deixa ficar comigo a madrugada, para que a luz do Sol me não constranja. Numa taça de sombra estilhaçada, deita sumo de lua e de laranja.
Arranja uma pianola, um disco, um posto, onde eu ouça o estertor de uma gaivota... Crepite, em derredor, o mar de Agosto... E o outro cheiro, o teu, à minha volta!
Depois, podes partir. Só te aconselho que acendas, para tudo ser perfeito, à cabeceira a luz do teu joelho, entre os lençóis o lume do teu peito...
Podes partir. De nada mais preciso para a minha ilusão do Paraíso.
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Quase |
em 02/06/2007 19:14:06 (5457 leituras) |
Um pouco mais de sol - eu era brasa. Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém...
...
Num ímpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí... Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi... |
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Poemas |
em 02/06/2007 16:30:00 (4037 leituras) |
Na grande confusão deste medo deste não querer saber na falta de coragem ou na coragem de me perder me afundar perto de ti tão longe tão nu tão evidente tão pobre como tu oh diz-me quem sou eu quem és tu?
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O poeta pede a seu amor que lhe escreva |
em 02/06/2007 14:05:27 (5436 leituras) |
Amor de minhas entranhas, morte viva, em vão espero tua palavra escrita e penso, com a flor que se murcha, que se vivo sem mim quero perder-te. O ar é imortal. A pedra inerte nem conhece a sombra nem a evita. Coração interior não necessita o mel gelado que a lua verte.
Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias, tigre e pomba, sobre tua cintura em duelo de mordiscos e açucenas. Enche, pois, de palavras minha loucura ou deixa-me viver em minha serena noite da alma para sempre escura. |
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Poema dum Funcionário Cansado |
em 02/06/2007 13:10:00 (13537 leituras) |
A noite trocou-me os sonhos e as mãos dispersou-me os amigos tenho o coração confundido e a rua é estreita estreita em cada passo as casas engolem-nos sumimo-nos estou num quarto só num quarto só com os sonhos trocados com toda a vida às avessas a arder num quarto só Sou um funcionário apagado um funcionário triste a minha alma não acompanha a minha mão Débito e Crédito Débito e Crédito a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente e debitou-me na minha conta de empregado Sou um funcionário cansado dum dia exemplar Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço Soletro velhas palavras generosas Flor rapariga amigo menino irmão beijo namorada mãe estrela música São as palavras cruzadas do meu sonho palavras soterradas na prisão da minha vida isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só
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A Arte de Ser Feliz |
em 02/06/2007 13:00:00 (17979 leituras) |
Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crinças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refelectidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
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Precisão |
em 02/06/2007 13:00:00 (11869 leituras) |
O que me tranquiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.
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Amostra sem valor |
em 01/06/2007 20:50:00 (5179 leituras) |
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém. Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível: com ele se entretém e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu, sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito, que o respirar de um só, mesmo que seja o meu, não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosos da Vida ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo, nesta insignificância, gratuita e desvalida, Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
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Poeta Castrado Não! |
em 01/06/2007 20:50:00 (5286 leituras) |
Serei tudo o que disserem por inveja ou negação: cabeçudo dromedário fogueira de exibição teorema corolário poema de mão em mão lãzudo publicitário malabarista cabrão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
Os que entendem como eu as linhas com que me escrevo reconhecem o que é meu em tudo quanto lhes devo: ternura como já disse sempre que faço um poema; saudade que se partisse me alagaria de pena; e também uma alegria uma coragem serena em renegar a poesia quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu a força que tem um verso reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala - é tão vulgar que nos cansa - mas que dizer de uma bala num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história - a morte é branda e letal - mas que dizer da memória de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser o poema dia a dia? - Um bisturi a crescer nas coxas de uma judia; um filho que vai nascer parido por asfixia?! - Ah não me venham dizer que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem por temor ou negação: Demagogo mau profeta falso médico ladrão prostituta proxeneta espoleta televisão. Serei tudo o que disserem: Poeta castrado não!
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Poema VIII |
em 01/06/2007 11:40:00 (3474 leituras) |
Foi para ti que criei as rosas. Foi para ti que lhes dei perfume. Para ti rasguei ribeiros e dei às romãs a cor do lume.
Foi para ti que pus no céu a lua e o verde mais verde nos pinhais. Foi para ti que deitei no chão um corpo aberto como os animais.
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O portugal futuro |
em 29/05/2007 18:39:51 (6958 leituras) |
O portugal futuro é um país aonde o puro pássaro é possível e sobre o leito negro do asfalto da estrada as profundas crianças desenharão a giz esse peixe da infância que vem na enxurrada e me parece que se chama sável Mas desenhem elas o que desenharem é essa a forma do meu país e chamem elas o que lhe chamarem portugal será e lá serei feliz Poderá ser pequeno como este ter a oeste o mar e a espanha a leste tudo nele será novo desde os ramos à raiz À sombra dos plátanos as crianças dançarão e na avenida que houver à beira-mar pode o tempo mudar será verão Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz mas isso era o passado e podia ser duro edificar sobre ele o portugal futuro |
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Instrução primária |
em 25/05/2007 12:30:00 (10310 leituras) |
Não saibas: imagina... Deixa falar o mestre, e devaneia... A velhice é que sabe, e apenas sabe Que o mar não cabe Na poça que a inocência abre na areia.
Sonha! Inventa um alfabeto De ilusões... Um a-bê-cê secreto Que soletres à margem das lições...
Voa pela janela De encontro a qualquer sol que te sorria! Asas? Não são precisas: Vais ao colo das brisas, Aias da fantasia...
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