Contos -> Romance : 

A traição: Acerto de contas

 
I

Risos, barulho de copos, e o ploc seco das bolas de bilhar se entrechocando...
O amigo aos cochichos, chamou-o ao canto do bar.
_É a sua mulher... Soube de fonte limpa que está de rolo com o tal do Zé Garçom.
Ele estatelou os olhos pequenos, segurou-se na parede passando as mãos na cabeça, para aprumar as idéias.
_ Você viu?
_Sim, entrando na sua casa, depois que você viajou.
Palavras que não esperamos ouvir, mesmo que curtas e rápidas são como Davi apedrejando Golias: fulminam em um segundo!
Bento foi embora aturdido, vagou pela rua, sem rumo.
Amanhecendo chegou em casa, e na ponta dos pés entrou no quarto. Olhou para a cama e viu a mulher dormindo como um anjo. Tirou a calça, arredou devagar as cobertas, e deitou-se ao lado da companheira. Fritou na cama, pensou, revirou-se até arrancar os lençóis.
Pela manhã nem podia olhar para o sol; de tão inchados os olhos!
Saiu de novo para a rua, andarilhou longe...longe. E foi na pracinha da capela de Santa Rita que pensou na solução.
Resolveu tirar a limpo o que o amigo contou.
Arrumou o caminhão, lavou, poliu, abasteceu, e disse que sairia para levar uma carga na madrugada seguinte.
Acordou lá pelas cinco, pegou a matula e foi-se.
Andou uns 30 quilômetros, parou num posto e esperou. Esperar leva uma eternidade, e a dúvida, é uma ave agourenta, que fica sobrevoando o pensamento para depois que assentar nos fatos sumir grasnando satisfeita.
Bento andou pela rodovia, olhou o relógio por vida, balançou o chaveiro mil vezes, sentindo a estranha sensação de flutuar, e de ouvir longe todos os barulhos dali. Tinha que esperar mais.Tinha que se acalmar.
Finalmente a noite chegou, e ele voltou de onde veio.
Tomou o cuidado de deixar o caminhão, duas quadras de distância, e foi se esgueirando pelas sombras das calçadas, até a casa onde ele e a mulher viviam desde que se casaram.
Ocultou-se na moita de erva cidreira que plantara no jardim. Esperou.
Esperou pouco, e logo ouviu um assobio do outro lado da rua. E bem vestido, esticando o pescoço para os lados da casa divisou o Zé Garçom. Outro assobio.
Então a mulher acendeu e apagou a luz amarelada do alpendre, e segundos depois ele viu, a sombra apressada do homem, casa à dentro pelo corredorzinho lateral.
Silêncio... depois música, risos, e as luzes se apagaram.
Voltou para o caminhão, chorou a mais não poder, esmurrou a direção, chutou onde alcançava, até doerem os pés, e lá pela madrugada, deu partida e se foi.

II

Comeu o pão que o diabo amassou com o rabo, na insônia recorrente, na tristeza e humilhação que cortavam seu peito como punhal desbeiçado.
Fez fretes distantes, emendou trabalho em trabalho por três meses inteiros.
Os filhos moços, estudando fora, não estranharam a viagem que durava tanto tempo.
E viajando, sozinho com suas mágoas, ele tinha estranhos e controversos pensamentos! Ora pensava em jogar o caminhão de uma serra, seria um jeito rápido...Ora pensava em surrar a ingrata, no meio da praça, bem em frente da matriz...
Por fim, pensou na mulher, que sempre lhe fora cuidadosa, trabalhadeira, boa mãe, e que poderia dar a ela uma chance...
Cresceu nele essa idéia, e então resolveu voltar.
Chegando tomou o cuidado, de buzinar desde a esquina.
Entrou batendo a poeira, tentando disfarçar o nervoso, e mostrar-se natural.
A mulher alegrou-se ao vê-lo, tomou-se de atenções, comidinhas, carinhos, e quase que ele esqueceu da traição recebida.

III

A vida continuou. Ele ficava agora muito mais tempo em casa, e se viajava, cumpria o sonoro ritual de buzinas desde a esquina.
Comprou um plano de saúde para os dois, televisão nova, reformou o guarda roupa e andava agora na estica!
Interessante o que a dor e a frustração promovem no ser humano...Ajeitar-se, melhorar o visual, mas deixar pela aparência o que precisa de fato ser mudado por dentro.
Tornaram-se mutualistas de um plano esquisito chamado Cantinho do Céu.
Disse à esposa que tinha que pensar longe, e que caia bem ao espírito, saber onde ia descansar a carcaça depois que a morte o pegasse.
Passou um ano e meio do funesto sucedido.
Bento casou a filha em janeiro, com o namorado de infância, e fez uma festa bonita no fundo do quintal. Uma imensa lona preta abrigava muitas mesas, cobertas de papel rosa, tudo muito arrumadinho. A música sertaneja, a criançada correndo...
Churrasco, servido nos pratinhos de papel, faziam a fartura saltar e dançar alegre. E também ele dançou a noite toda com a filha, a mulher, e a comadre Maria Benigna, mostrando para os convivas, a família de invejar.



IV

Era o melhor motorista da firma, considerado pelo patrão como amigo, tinha certas regalias que não gostava de usar. E assim ia Bento poupando favores e férias.
Naquele sábado calorento, saiu de manhã como sempre, para lavar o caminhão. Recomendou ao frentista que era o mesmo há anos, [é que nas cidades pequenas, emprego é coisa difícil, (e nas cidades grandes, pior!)], o capricho na lavagem. Mandou polir, aspirar por dentro o pó, e passar um preto brilhante que deixava os pneus com cara de sapato velho engraxado, enquanto com os amigos, tomava a cerveja agendada há cinco anos e para os próximos vinte.
Tinha viagem marcada para segunda feira, e no final daquela manhã ensolarada, saiu com o caminhão para a casa do patrão.
Abriu o imenso portão lateral, e colocou o caminhão dentro de um galpão. Ninguém da casa percebeu, e ele caprichoso, colocou as chaves e os documentos, bem em baixo do tapete, do lado de quem dirige.
Fechou o portão com calma, e caminhando, chegou para o almoço.
A casa cheirava bem, e atiçava a fome de todos da vizinhança.
Chegou, até a cozinha, destampou a panela grande e experimentou a carne de que mais gostava: bistecas de porco com um montão de cebolas, salpicadas de cheiro verde.
Bento elogiou o tempero para a mulher, que lavava as folhas da alface com paciência de monge.
Foi até o guarda-comidas, seguido pelo sorriso atento da companheira e pegou a melhor faca. E numa investida certeira, enterrou-a no pescoço da esposa, fazendo-a cair inerte.
Aparou o sangue na bacia da salada, arrastou-a até o banheiro, deu-lhe banho, perfumou-a, colocou nela a roupa de ir a missa, um cachecol de musselina azul, deitou-a na cama carinhosamente, do lado que sempre dormiu.
Saiu do quarto, telefonou para os filhos, disse para que viessem, pois a mãe estava com uma doença terminal.
Colocou em cima da televisão os dois carnês pagos do “mútuo” Cantinho do Céu, o seguro de vida, a quitação da Caixa Econômica Federal, que provava a casa paga, tomou banho, barbeou-se, colocou a roupa nova, deitou-se ao lado da morta e atirou certeiro no rumo do coração.
Bento finalmente acertou as contas com Bento.
<br />A história é verdadeira e aconteceu na cidade de Batatais, Sp - Brasil. Foram omitidos nomes e lugares que pudessem constranger as familias envolvidas... mas tenho que confessar que um tiquinho, um tiquinho assim é pura invenção minha.

 
Autor
Paula Baggio
 
Texto
Data
Leituras
4585
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
1 pontos
1
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.

Enviado por Tópico
asv
Publicado: 24/05/2009 14:11  Atualizado: 24/05/2009 14:11
Super Participativo
Usuário desde: 14/02/2008
Localidade:
Mensagens: 106
 Re: A traição: Acerto de contas
Gostei desse tiquinho que transformou um acto formal num muito interessante momento de leitura com prazer