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Quando se tem que dizer adeus

 
 
Quando se tem que Dizer adeus

Seus olhos estavam turvos. Uma nuvem negra de tristeza e amargura no semblante. Olhava fixamente para o livro em cima da mesa. Parecia ter entrado num túnel do tempo. Fatos de sua vida. Doces a amargas lembranças passavam em volta de sua cabeça. Ela estava certa. Cumprira sua promessa. Promessa?

__ Então, quando a gente vai partir? Eu já ajeitei a minha mochila. Tinha mais de quinhentos reais na minha poupança, dá para comprar minha passagem para Brasília e ainda sobra um pouco para as despesas de viagem. Depois da nossa formatura a gente vai embora. Estou contando os segundos!
Marcelo olhou nos olhos de Cecília. Nem acreditou quando ela decidiu que o acompanharia para a capital brasileira. Ele havia conseguido uma bolsa de estudos, e ela quis acompanhá-lo. Nem sabia o que faria se ela ficasse, nunca conseguiria concentrar-se. Não podia mais se acostumar sem ela. Ela sempre esteve presente em sua vida, na infância, sua colega de brincadeiras e agora sua namorada, em breve estariam juntos para sempre.
Segurou sua mão e a beijou. A formatura seria no dia seguinte. Estava chegando a hora.
__ Como conseguiu economizar tanto, sei que nunca trabalhou!
__Só para sua informação, sei economizar e administrar muito bem minha mesada. E ainda por cima, tem o meu irmão que está sempre me pagando para fazer seus trabalhos da escola.
__ Eu já vi os horários, tem um ônibus que sai meia noite. É o melhor para gente.
Cecília o abraçou. Apesar de brigar muito com o pai, ela sentiria saudades, dele, do irmão e da mãe. Sentia principalmente pela mãe, que ficava calada diante da traição conjugal do marido. Não sabia como ela podia suportar! Não podia conviver mais naquele ambiente.
__Também ajeitei minhas malas. Meus pais não aprovam sua fuga, mas eles prometeram que não vão interferir.
__ Eles não podem, eu já tenho dezoito anos, ninguém pode me impedir.

Era o rosto dela. Já maduro. Ela havia publicado um livro e alcançado um considerável sucesso. Encaminhou-se até a janela. Os carros na avenida buzinavam sem parar, aconteceu uma batida, parecia ser sério. Pessoas com vestígios de sangue na cabeça, carros amassados cercados por curiosos. A fumaça de uma loja que começara a incendiar por causa da queda de um poste chegava ao quarto andar, entrava e infestava seu apartamento. Mas ele não ligava. Havia um Out Door no outro lado da avenida. Um grupo de formandos estavam sendo homenageados pelos pais. Mais uma vez regressava ao passado. Seu olhar transpassava os prédios, infiltrava-se nas paredes, nas árvores, chegava enfim ao salão onde aconteceu a formatura. Ele já tinha tomado a difícil decisão.

Depois que Cecília o deixou, ele recebeu a inesperada visita de Marcos, o irmão dela. Ele parecia um pouco abalado.
__ O que faz aqui?
O outro se aproximou e olhou para os lados. Depois abaixou a voz para falar com Marcelo.
__ Sei que pretende fugir com minha irmã.
Marcelo desconfiava que todo mundo já sabia. Só esperava que no fim tudo desse certo.
__ Sua irmã é maior, não podem nos impedir de partir!
__ Eu sei, é por isso que vim falar contigo, e te peço, nunca diga à ela sobre nossa conversa.
Ele desconfiou. Conhecia um pouco Marcos, ele não era o tipo que pedia, geralmente fazia o que lhe dava na cabeça.
__ Então, o que quer?
__ Não pode deixar Cecília partir.
Ele sabia! Mas não cairia em nenhuma conversa.
__ Antes que me diga alguma coisa, escute tudo o que tenho para dizer.
Marcelo passou as mãos na cabeça, aquilo estava lhe cheirando a armação. Mas, resolveu ouvir.
__ Descobri há alguns dias sobre os planos de fuga de Cecília, de verdade, eu não dei a mínima, era até melhor, ela briga muito com papai, você sabe, por causa das puladas de cerca dele. Mas, há dois dias, eu...__ Marcos hesitou, o que iria falar não era nada louvável__ Bom, eu mexi nas coisas de mamãe, para pegar um trocado, mas o que eu achei... __ o rapaz abaixou o olhar, Marcelo percebeu que ele pareceu perturbado.__... eram exames, acho que se chama biopsia, daqueles que fazem para ver se a pessoa tá com câncer.
Não podia ser verdade.
__ É sério Marcelo, eu levei para o pai da Érica, ele é médico, ele disse que não dá mais para tratar. Mamãe tá com câncer de mama. E ela não disse nada pra gente, ela tá sofrendo sozinha. Papai, não liga pra nada, ela só pode contar comigo e Cecília, é por isso que quero que você deixe ela ficar.
__ Por que não contou para Cecília?
__ Por que ela ia correr pra consolar a mamãe, e acusaria papai, seria um inferno, só quero que ela esteja por perto, mamãe ia sofrer muito, ela vai morrer Marcelo, isso é grave!
__ Não sabe o que está pedindo, eu amo a Cecília, quer que eu brigue com ela para ela desistir de ir comigo. Mas, eu não vou conseguir!
__ Não precisa brigar, vocês podem continuar namorando, ela só tem que ficar, até mamãe criar coragem e contar pra gente, quero respeitar a vontade dela.
Marcelo meteu as mãos nos bolsos e saiu andando. Marcos gritou para ele.
__ O que fará?
Ele não respondeu. Não podia deixar Cecília partir e deixar a mãe doente, se ela soubesse que ele já sabia de tudo iria odiá-lo para sempre. Por outro lado, se ele contasse logo, ela teria que ficar, de qualquer forma, eles estariam separados, cedo ou tarde. Sentiu um aperto no coração. Quando chegou em casa ligou para ela, marcou um encontro pela manhã.

Ela estava lá, na praça que ficava em frente ao colégio. Disse que foi na loja pegar o vestido de formatura, mostrou o pacote para ele e disse-lhe que ele ia gostar. Tentou beijá-lo, mas Marcelo se afastou. Seus olhos estavam um pouco fundos, ele não dormiu a noite toda, pensando num jeito de falar a ela. Sem magoá-la, mas como, se não podia contar a verdade?
__ O que foi, parece preocupado.
Ele abaixou a cabeça e ficou olhando para os pés.
__ Eu andei pensando melhor...
Cecília franziu o cenho. Não queria nem imaginar no que ele andou pensando.
__ Não posso te levar, seria muita irresponsabilidade contigo.
Ela não disse nada. Apenas piscou, a surpresa nítida em seu olhar.
__ Eu serei apenas um bolsista, terei que arcar com despesas. Nós iremos passar fome, até que a gente encontre trabalho, e você tem que fazer vestibular, tem que pensar no teu futuro. Eu acho que é melhor a gente esperar pra você ir quando eu tiver mais estruturado. Não acha que seria muito precipitado a gente ir assim, na doida?
__ Eu não ouvi isso, o que mudou de ontem para hoje?_ A voz dela estava falhando, ele sabia que logo veria lágrimas em seu rosto. Conseguiu magoá-la.
__ Eu só pensei melhor, estamos agindo como dois inconseqüentes! Você não acha?
Ela não disse nada. Olhou para ele de um jeito que ele não podia compreender. Virou-lhe as costas e saiu.

No salão, a música era suave, quando chegou, poucas pessoas circulavam o local. A decoração era toda branca. Cortinas, bexigas de ar. O palco da banda simulava uma noite enluarada. Nas mesas espalhadas pelo salão haviam pequenos jarros com flores de laranjeira. Muitas flores, o cheiro suave e cítrico invadia-lhe a alma. Logo ela chegaria.. Era para ser uma noite inesquecível. Não entendeu por que Cecília o ignorou o resto do dia. Achou a atitude dela muito infantil. Definitivamente ela ainda não tinha maturidade para sair da casa dos pais.

Quando ela chegou, ele não teve dúvida que era amais bonita no salão. Sentiu orgulho, era a sua namorada, pelo menos ainda pensava que era. Sentiu uma onda de alegria quando percebeu que ela procurava alguém no salão Seus olhos castanhos cor de mel percorriam o salão, passava pelas pessoas. Marcelo a observava. O medo, esse buraco nego desconhecido... Morreria quando seus olhares se encontrassem e percebesse algo que não era aquela paixão que tornava o olhar dela tão diferente. Bastaria muito pouco para Cecília convencê-lo a levá-la com ele. Queria sair, fugir, a razão dizia: “Corra! Saia enquanto é tempo!”. Mas, o coração impedia, segurava-o. O peso nas pernas, uma moleza no corpo. Porque coração gosta de sofrer.

Quando ele o encontrou, foi como se seus olhares se abraçassem. Como se estivessem só os dois. Caminharam um na direção do outro. O único som que se ouvia era o de seus passos. Os olhos abraçados, os braços querendo estenderem-se, desejosos de tocar o corpo amado. Enfim o longo caminho se extinguiu. Ele pegou-lhe a mão e a beijou com carinho. Algo no olhar dela revelava sua tristeza, apesar de seus lábios sorrirem.
__ Reservei um mesa perto da banda, você gosta tanto de música, minha Flor de Laranjeira.
Ainda não havia soltado a mão dela. Sentaram e Cecília começou a falar. Disse que saiu porque precisava raciocinar, e tinha chegado à conclusão de que ele queria brincar com ela. Que eles haviam pensado minimamente em todos os detalhes, e que o perdoava pela brincadeira de mau gosto. Mas Marcelo, balançou a cabeça, não, falou sério. Queria que ela ficasse, e esperasse ele poder buscá-la. Eles brigaram discutiram, as coisas não eram tão fáceis como sugeriu Marcos. Ele não queria terminar, como ela acusou, não queria que ela o odiasse, apenas entendesse.
Calaram, como se fosse um acordo mútuo falaram sobre outras coisas, as horas no relógio passando. Era já nove e meia da noite. Mais uma hora ele teria que ir para a rodoviária e partir. Como queria que aqueles minutos restantes se multiplicassem!
___ Vamos pelo menos dançar, seu vestido é tão bonito, não é justo ficar aqui sentada.

Foram para o meio do salão, segurou-a pela cintura, pelo menos isso. Deslizaram pelo salão, a música suave percorria seus corpos. Um movimento, ela encostou a cabeça no peito dele. O ar ficou pesado, era torturante, o peso da cabeça dela o feria. Que tentação. Vontade de levá-la dali, vontade que nada existisse além dos dois. Sentiu um nó na garganta, estava fraquejando, largou-a. Saiu do salão. Ela o seguiu confusa. Por que ele fugia como um medroso? Encontrou-o sentado no banco do jardim, ele apagava os vestígios da emoção passada.
__ Do que tem medo?__ Ela perguntou.
__ De sofrer, é melhor não ter lembrança, para não ter saudade.
__ Do que está falando?
__ Não posso levá-la, não entende? Sei que está tentando me convencer, mas eu estou agindo assim, porque penso muito em ti, estou sofrendo tendo que deixá-la, mas não vai durar para sempre. É tão difícil entender?
Ela não podia entender era o fato de ele ter se dado conta logo naquele momento, quando ela já tinha feito tantos planos, se entregara de corpo e alma àquele momento que seria deles dois. Achava que ele descobrira que não queria ficar com ela, e inventava aquilo. Nenhum relacionamento podia sobreviver na distância, cedo ou tarde eles acabariam se deixando para segundo plano e depois o esquecimento. Por que ele não era digno e falava a verdade, ao invés de ficar com aquela desculpa esfarrapada?!
__ Tem razão!__ Ele gritou.
__ Juro que esta será a última noite que nos toleraremos. Se quiser, não precisa mais falar comigo.__ saiu correndo, fugindo dele e de qualquer outra coisa que ele pudesse lhe dizer.

Estava irado consigo mesmo. Saiu da festa, não tinha mais por que ficar ali. Olhou para o banco onde estava sentado, a flor que ela segurava tinha ficado ali. Pegou-a e a colocou no bolso do paletó.

Marcelo voltou à realidade, uma força maior que ele mesmo o incentivou a ter sempre ao seu lado um jarro com flores de laranjeira, as flores preferidas dela. Nenhuma tinha um perfume que se comparasse àquela, daquele dia. Quando ela secou, a guardou numa caixinha de camurça, como se fosse uma jóia, muito preciosa. A última lembrança que tivera de Cecília, quando a mãe dela morreu, ela se mudou com o irmão para a casa de um tio, na Bahia, Marcos, o traiu, nunca lhe disse que foi por aquele motivo que ele a deixou, e eles haviam se perdido para sempre. Mais uma vez, ele foi até a janela. A noite estava alta, a confusão da batida fora dissipada. Era hora de dormir. No entanto, mais uma olhada para o céu, para as estrelas que lembravam os olhos brilhantes dela. Apagou a luz da sala, caminhou para o conforto do seu solitário quarto. Pegou a caixa de camurça e a colocou rente ao coração.


Apenas uma pessoa que usa a literatura e o cinema para fugir desse mundo cão. Escrever é apenas um ato e exercício de liberdade!

 
Autor
Helayne
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