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O Galo-Galante

 
Esta é a história do Galo-Galante. Este não é o seu nome de baptismo, mas era assim que era conhecido nas redondezas, por ser gracioso, garboso, elegante, gentil, distinto, esbelto, engraçado, espirituoso. O Galo-Galante mostrava tal aptidão na arte de galantear que quase todas as galinhas o elogiavam. Sim, quase todas, porque Gallina era a única galinha que não lhe enaltecia as qualidades, embora as admirasse. Fazer-lhe elogios?! Só quando as galinhas tiverem dentes! pensava Gallina. O Galo-Galante despedia-se gentilmente das galinhas das redondezas, a quem chamava amigas, e recolhia-se ao seu poleiro. Ele, que mostrava ser divertido, alegre, engraçado, na verdade sentia-se enfadado, desatento, indiferente, estranho… E foi o tédio que o levou a cometer pela primeira vez tal acto insano. Ele sabia que era uma ideia descabelada, rude, mas necessária: desviar ovos às galinhas, apenas por diversão! Supunha ele que as galinhas estariam dispostas a aceitar que ele brincasse com os ovos delas. Porém, ele era muito zeloso dos ovos das suas galinhas. No poleiro, mostrava desvelo, cuidado, pontualidade, diligência e mantinha-se atento às solicitações das suas galinhas. Cada uma das suas galinhas sentia um enorme respeito por ele: galinha galada é galinha calada. Mas as galinhas das redondezas, essas, ele observava-as na sua diversidade, variedade, diferença, dissemelhança, oposição, e isso inquietava-o, desassossegava-o, alvoroçava-o.
O Galo-Galante era sedutor, mas maldoso, travesso, malicioso, perverso, mau, coisa que as suas galinhas não sabiam. Um dia, o Galo-Galante impacientou-se com uma das galinhas das redondezas e zangou-se. Depois, desculpou-se da sua atitude excessiva e repôs a estabilidade que tão bem o caracterizava. A sua acesa discussão causou tal impacto na galinha Galila que esta, não se contendo, perguntou-lhe com tom malicioso:
- Olha lá, tu também és assim quando desvias ovos?!
Face à estupefacção do Galo-Galante, Galila ofereceu-lhe um sorriso prometedor. O Galo-Galante ficou admirado que Galila lhe tivesse feito tal pergunta que até parecia um convite. E, então, ousou aceitar o desafio. Foi um delírio! Ela tão depressa lhe oferecia um ovo, como o escondia, ora numa asa, ora na outra, ora o rolava e rebolava-se com ele (o ovo e o Galo-Galante) que até parecia que aquele se partiria a qualquer momento. A galinha Galila revelou grande aptidão nas artes malabares. Nesse dia, o Galo-Galante regressou feliz ao seu poleiro como há muito se não sentia. Retomou, porém, o seu ar circunspecto e redobrou a atenção às suas galinhas que de nada suspeitavam. O Galo-Galante sabia que este era um jogo delicado, porque se partisse um ovo, isso seria muito grave. Mas, pensando bem, a galinha Galila podia apontar descuido do seu galo e o assunto ficaria por aí. Ele não se sentiria responsável nem culpado pelo sucedido. E esse sentimento de perigo pela apropriação consentida dos ovos da galinha de outro galo deixava-o estonteado.
A partir desse dia, o Galo-Galante passou a observar a atitude dos outros galos. Sempre que os via tão felizes como ele, supunha que também eles desviavam e brincavam com os ovos das outras galinhas. Mas, mantinha a discrição. Nunca nada lhes perguntou ou confidenciou. Afinal, pensava ele, desviar não é roubar. Roubo seria se as galinhas o não consentissem. Nos dias em que Galila não podia brincar por causa dos seus afazeres, o Galo-Galante sentia-se aborrecido, mas ansioso, num tremor de emoção pelo prazer previsto.
Até que um dia conheceu a galinha Galiza que tinha a particularidade de não pôr ovos, por ter muito medo. Ficou curioso: Uma galinha que não põe ovos?! Galinha que não põe ovos, não faz novos. Mas, também nenhum se partirá, pensou o galo. O Galo-Galante passou a galanteá-la para ver se a convencia a decidir-se a pôr ovos. Nada! Nem um! O Galo-Galante não desistiu de a visitar. Brincava com as penas de Galiza, o que ela muito apreciava. No seu poleiro, o Galo-Galante idealizava novos jogos que de novo produzissem em Galila aquele estertor que o deixava em êxtase, sempre que um ovo parecia prestes a partir-se…
O Galo-Galante passou a mirar as galinhas das redondezas tecendo considerações sobre se elas consentiriam ceder os seus ovos para ele praticar os mais diversos malabarismos. Um facto curioso é que aquelas que mostravam interesse em presenteá-lo, ele ignorava-lhes a intenção. Uma vez por outra, lá aceitava rolar um ovo sem grande entusiasmo, o que as desmotivava. Houve até um episódio engraçado com a galinha Linda. Sem nenhuma palavra sobre o assunto, ela escondera-lhe um ovo debaixo da asa e ajustara-lha para que ele se apercebesse disso. Surpreendido com a actuação da galinha Linda, o Galo-Galante manteve a prudência, mostrou habilidade em não o deixar cair, mas nada disse, até que a galinha Linda de lá o retirou e guardou como se nada tivesse sucedido. A galinha Linda também manteve a serenidade, mas, no dia seguinte, saiu a passear com o seu galo, exibindo as suas preciosas e ofendidas penas. O Galo-Galante era selectivo. O seu desejo aguçava-se sempre que via recusada a hipótese de desviar um ovo.
O Galo-Galante mirava com curiosidade a galinha Gallina, mas nunca lhe desviou um ovo sequer. Gallina vivia nas redondezas e já saudades não tinha do galo com quem partilhara o seu poleiro durante largo tempo. Evitava, porém, a confraternização com as outras galinhas. A sua estirpe não lhe permitia, por orgulho, que emprestasse ou oferecesse os seus ovos para o quer que fosse, muito menos para jogos malabares. Estes exigem posições e movimentos difíceis, e o Galo-Galante começava a sentir fadiga. Foi por isso que ele começou a alegar à galinha Galila justificações desajustadas, no entender dela.
- Tarefas agitadas e destrutivas, ao meu lado. Menos motivado para o jogo de amanhã…
A galinha Galila protestava com meiguice:
- Não me digas que os nossos jogos malabares já não te entusiasmam! Experimenta jogar com os de uma galinha nova e depois diz-me se não te apetecem os meus…
O Galo-Galante defendia-se, adiando cada jogo, porque era mesmo fadiga o que ele sentia. O que lhe apetecia era falar dos seus jogos em conversas banais, como as que mantinha com Gallina, por exemplo, e não propriamente jogar. Falar dos jogos alimentava-lhe o espírito, assim como jogá-los lhe, digamos, alimentava o corpo.
A galinha Gallina zelava pela sua privacidade. O Galo-Galante insistia em conhecer-lhes as amizades que ela tivesse com outros galos… que até chegou a opinar que conhecia alguns a quem ela teria cedido um ovo. A galinha Gallina ouvia-o e ficava estarrecida.
A galinha Gallina mirava-o e recomendava-lhe discrição. O Galo-Galante mirava-lhe as penas rosadas e declarava:
- É o teu bom-senso. Afinal ainda estás no teu perfeito juízo…
Gallina concedia-lhe palavras prometedoras:
- O tempo está do lado de quem o deixa passar…
Começou por testá-lo, fazendo-lhe exigências que ele deveria cumprir com rigor: contar as dálias que tinham desabrochado desde a véspera, trazer-lhe uma rosa-chá (que ela sabia haver apenas nos limites da propriedade, quando passeava ao entardecer) e outras exigências semelhantes. O Galo-Galante concedia-lhe todos os desejos e, por vezes, dizia-lhe:
- Proposta oportuna, hábil. Boa leitura da realidade.
Gallina polia as suas penas e retorquia:
- Que outra leitura poderia fazer da realidade?
O Galo-Galante respondia:
- Que leitura? Que há um jogo dentro do jogo? Que sou um perdedor compulsivo? Ou um hábil? Que sou um provocador?
Na verdade, seria mais interessante brincar com a galinha Gallina do que com a Galiza, porque Gallina punha ovos, embora ainda lhe não tivesse concedido nenhum.
Um dia, as palavras dele foram ambíguas, deixando supor desinteresse pelos jogos que fazia com Gallina.
- Convidas-me a preguiçar… Outras exigências, outros percursos. – pediu-lhe o Galo-Galante – Eu prefiro sempre a dimensão mais privada…
Gallina mostrou-lhe os seus ovos. O Galo-Galante quase cedeu à tentação de desviar um, mas não ousou. Apenas os elogiou, de tão perfeitos que eram. Gallina ofereceu-lhe um lencinho vermelho e prometeu conceder-lhe um ovo.
- Podes brincar com ele, desde que o protejas com o lencinho, para ele não se partir. Gosto da subtileza, da elegância… Este ovo é meu, não da Páscoa! Não gosto de riscos… Tudo tem limites!
O Galo-Galante antevia esse dia com uma glória de prazer previsto.
- A ideia parece-me apropriada, minha conhecida. O jogo será marcado por grande lentidão e subtileza. Os limites poderão ser perigosamente estilhaçados, porque aqui reside a experiência… Preciso de céu limpo e sol a brilhar para me inspirar.
Mas o Galo-Galante ficou apreensivo, porque nunca tinha brincado daquela maneira com um ovo. Se aquele partisse, seria ele o único responsável e culpa era o que ele não queria sentir… Então, descreveu com minúcia, cada malabarismo que pretendia fazer com o ovo e o lencinho. Primeiro, Gallina sentiu-se aflita, mas não proferiu nenhuma palavra que manifestasse a sua agitação. Depois, ficou mais confiante. O Galo-Galante divertia-a. Ao despedir-se, o Galo-Galante sentia-se feliz pelo seu desempenho hábil num jogo com regras por ele desconhecidas e que, por isso, improvisara.
- Enfim, boas e perturbantes sensações. Vou apaziguado, porque no fim te descontraíste, com excelente humor. Confesso que gosto cada vez mais do teu humor.
Gallina confidenciou-lhe que lhe cederia um ovo sempre que lhe apetecesse brincar… e o Galo-Galante ficou radiante.
Sem dúvida que Gallina era diferente das outras galinhas das redondezas, e isso exigia ao Galo-Galante vigilância redobrada. Galila não lhe causava preocupação, porque só lhe acenava quando queria brincar. Porém, Gallina tornara-se especial por ter passado o limite de amiga a confidente e, por isso, merecia mais atenção. O Galo-Galante sentia-se inconformado que ela não lhe elogiasse as suas qualidades e que insistisse em não partilhar com ele os jogos que, supunha ele, ela teria praticado com outros galos. Precisava com urgência de fazê-la falar. Na vez seguinte, arriscaria a pedir para brincar com o ovo, sem lencinho. Os seus projectos, além de cuidar das suas galinhas, consistiam em realizar as suas fantasias. Aparentemente, todas lhe cederiam um ovo se ele galantemente lhes solicitasse. Isso tornara-se demasiado fácil, porque previsível.
No dia em que o Galo-Galante disse ter intenção de apresentar-lhe Galiza, a galinha Gallina sentiu-se ofendida.
- Gosto de jogar. Um é pouco, dois é bom, mas três é demais!
O Galo-Galante enalteceu-lhe as qualidades, elogiou-lhe as penas, disse compreender os dilemas dela e encerrou o assunto com uma afirmação peremptória:
- Seria um dia inesquecível mesmo que não chegássemos a jogar os três!
Porém, confidenciou-lhe que Galiza não punha ovos e, entre outros assuntos, até lhe confidenciou um episódio curioso que sucedera com outra galinha. Fora num dia de muita chuva, aquele em que ele brincara com o ovo dela. Ela aplicava-se em mantê-lo seguro, mas ele escapulia-se sempre que até parecia vir a partir-se a qualquer momento. Ele divertira-se a aparar as gotinhas da chuva que pelo ovo deslizavam…
Gallina ouvia-o atentamente, e o seu sorriso deixava-o empolgado.
- Brincar com os teus ovos, sem lencinho, enlouquece-me. Não brincar com eles enlouquece-te. Portanto, vou enlouquecer outra vez.
E o insólito aconteceu. O Galo-Galante sentiu um arrepio de penas por não conseguir segurar o ovo sem o lencinho. As asas tremiam-lhe, tremiam-lhe, e ele nada podia fazer para impedi-las de tremer. Se Galila adivinhasse o sucedido… Desolado, justificou-se:
- Completa bizarria. Cansaço elevado. Acho que ainda tenho outro motivo (meu) para o sucedido. Da próxima vez…
Mas Gallina ficou apreensiva e decidiu que não mais lhe cederia um único ovo. O Galo-Galante ficou incrédulo. Tinha de fazê-la recuperar a confiança nele.
- Da próxima vez, apetecia-me mesmo ouvir-te suplicar, enquanto brinco com o teu ovo. O rosado das tuas penas não me chega.
Gallina ria bem-humorada. Mas raiva foi o que sentiu, quando soube que as galinhas das redondezas lhe haviam contado os ovos e dado pela falta de um. O Galo-Galante mostrou apreensão e disse temer pelas suas galinhas. Recolheu-se ao seu poleiro, não sem antes ter dito:
- Estou num momento pessoal de profunda reflexão e rigor. O que importa é a maneira como se supera a realidade.
Nas redondezas, nenhum ovo apareceu partido…


(Texto inédito e propriedade intelectual de TeresaMarques)

 
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TeresaMarques
 
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