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Os parabéns já vêm atrasados, mas mais vale tarde do que nunca.
Em jeito de homenagem, deixo aqui um poema de um dos meus poetas preferidos,
RehggeCamargo (que, na altura, assinava como
zaisth), que tentei comentar o melhor que sabia no Espaço Crítico.
Tenho muita pena que o tenha apagado posteriormente...
Se quiserem ler o texto completo e ver o comentário integral, este é o
link direto.
o escuro.
meu cão cego
sentia minha presença
o que me via
passava por mim
tal sombra que se perdia
nem ao menos sabia
que o escuro que me encobria
era a alegria
de quem queria me sentir
e não podia
o outro era a noite
o cão, meu dia.
Dos oito segmentos de que constam as "Memórias do Cárcere", a terceira parte -- intitulada "
o escuro" -- é o meu favorito.
Escrito numa linguagem límpida e luminosa, tem início com a figura de um
cão cego que sente a presença do seu dono. Imediatamente nos vem à lembrança a imagem comovente de Argo, o cão de Ulisses, que espera vinte anos pelo seu regresso e que morre assim que o reconhece.
No poema,
a cegueira do cão, paradoxalmente, contamina o sujeito poético, envolto na escuridão, e simultaneamente permite o reconhecimento da sua identidade (aquilo a que damos o nome de anagnórise, na tragédia clássica).
Desse ponto de vista, a verdadeira escuridão do título é aquela que cobre o "eu" e que consegue ser desvendada -- e, de certa forma, desfeita -- pela simplicidade de quem "quer sentir e não pode". Há
uma luz que passa a envolver o "eu", uma luz que não sabemos de onde vem, a quem pertence, como surge...
Referir-se-á ao amor, essa janela aberta ao mundo, que encontramos no episódio anterior? Referir-se-á à escrita, esse elixir que torna suportáveis frustrações e receios? Referir-se-á ao leitor que, sentindo cada palavra, pressentindo os seus mistérios, dá efetiva existência à poesia?
Não sabemos, mas pressentimos aqui uma espécie de
gratidão, num dos poucos momentos felizes desta sequência de poemas.