Comentário a "a verdade, o fogo e a desilusão" de Rogério Beça
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Link para o Perfil do Poeta Rogério Beça

O poema comentado encontra-se no final deste meu texto. Podem lê-lo também através do link que aqui coloco (acima).


Olá, Rogério.

Um poema magnífico com uma estrutura e um universo muito diferentes daquilo que li até agora, teu.
Não quero com isto dizer que este é bom e os outros maus. Nada disso! Apenas frisar que todas estas palavras, assim juntas, formam uma espécie de pintura para onde se pode ficar a olhar por tempo perdido, dada a profusão de significados e símbolos que aqui se encontram. O cruzamento que se faz entre verdade, fogo e desilusão é magnificamente bem feito. A escolha dos verbos e dos adjetivos é perfeita. E assim se obtém uma “coisa” destas, nada evidente, nada transparente, só um pouco quente ao que parece.


Começo pela verdade. Não era assim que se deveria começar sempre?
Está descoberta, despida. E, uma vez que se assemelha ao fogo, fere a razão (mas não o coração?), faz doer, mas purifica. Se isto coubesse nas ciências da Matemática ou da Lógica deduzia que a verdade exposta purifica.
Além disso, uma verdade destas, é uma verdade que se aceita e abandona (uma e/ou o seu contrário) sem ressentimento. Quem o quê? Nós abandonámo-la sem ressentimento, ou ela a nós? Será que conseguimos rejeitar uma verdade sem que ela nos rejeite?

A desilusão sorri e diz a verdade – há uma estreita ligação e afinidade entre as duas. A desilusão aparece aqui como superior senhora da verdade.
Uma verdade subalterna da desilusão.
Se manda a sorridente (cínica) desilusão, acreditemos então: “somos todos falsos” – ato de purificação???? Ou sonhos desfeitos e imperfeição?
E qual a relação entre verdade e imperfeição? Há imperfeição na verdade ou é a própria uma imperfeição?

A tristeza surge autónoma e independente e, por isso, seduz. Mas lembra algo de desilusão. O quê? Uma turvação. É assim a desilusão que se provoca ao outro? Abandonada? E a verdade assim, vestida, mas ainda oculta, já não fere a razão.

Esta verdade e não a do poeta. Quem és, então? Pois assumes que é disforme (grotesca ou anormal de forma), que não a conheces mas sabes que se esconde, é bicho e medroso.
E sabes o que é: um fogo que a desilusão afaga, mas transparente (não se vê nada ou vê-se tudo?)

A relação fogo vs. frio vs. tristeza seria também interessante explorar.


Mas termino com a Nota do Autor. Qual a necessidade do “Escrito há muito tempo....”?
Se a Nota for próxima do poema, diria que o poeta revê alguma memória, alguma saudade, uma história, ainda que seja já longínqua e passada, é necessário que o poema nos diga que tudo isto pode, afinal, não ser já o que aparenta ser; se, ao invés, a Nota se aproxima do poeta, diria que ele se quer afastar do próprio poema e do que ele transpira. Ainda que possa ser tudo muito bom, admirável, já não há identificação de poema com poeta.

Seja o que for, sejam quais forem as respostas às minhas questões que cortaram o poema aos bocados, o texto é aquele, que publicaste. Intacto. Como está. Inamovível. Porque alguém, um dia, juntou todas aquelas palavras assim, como se de uma receita se tratasse, e o resultado é este. Não conhecemos os ingredientes ou o modo de preparação. Apenas o resultado. E isso já dá aplauso.
Parabéns e obrigada por nos teres dado a ler o resultado da receita, tão bonito e perfeitinho (como dizem dos bebés quando nascem).

Abraço Maya.



a verdade, o fogo e a desilusão

Se o mundo está a arder,
porque sinto tanto frio?
esta anti-piromania que me acende...

Algures, a verdade está a descoberto,
a sua nudez fere a razão.

Este fogo que me consome
e me queima e arrefece,
e me abandona sem ressentimento,
assemelha-se à verdade que dói,
purifica e é aceite.

Se a alegria está no ar,
porque será que me sinto tão triste?
esta solidão que me apoquenta...
Algures, a desilusão sorri
e regurgita ao mundo a sua sina:
- Ninguém é o que aparenta ser!
Viva a imperfeição e os sonhos desfeitos!

Esta tristeza que me seduz,
rebaixa e me faz reerguer,
que aparece e desaparece sem eu querer
faz-me recordar que já desiludi alguém,
já nem me lembro bem
quem...

A verdade sobre mim é disforme,
está escondida, bicho medroso,
não a conheço.

A verdade é um fogo transparente
que a desilusão traz ao colo.


Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=67453 © Luso-Poemas

Criado em: 26/3 11:23
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Re: Comentário a "a verdade, o fogo e a desilusão" de Rogério Beça

Membro desde:
6/11/2007 15:11
Mensagens: 1940
AliceMaya,

Muito obrigado pela leitura.
Um texto já antigo, editado recentemente devido a um erro ortográfico, em que quis substituir a palavra anti-pirogamia (inexistente) por anti-piromania, minha intenção original.
Sinto-me muito honrado por ver um texto meu autopsiado com tanto esmero.

Muito obrigado pelo comentário, cheio de questões que não sei responder.
Sobre a nota. Não estou certo se me referia apenas à data de criação\data de publicação, ou se a essa data a distância emocional e de inspiração existia.

Será que já não sinto o mesmo?
Será que arranjei entre as duas datas ferramentas psicológicas e emocionais que me permitem lidar com a desilusão de maneira diferente?
Estarei mais tolerante comigo mesmo?

Será que me tornei menos verdadeiro?
Será que a verdade já não me queima como um fogo?

Será que vivo neste momento um estado de ilusão tal que acho-me incapaz de me desiludir? Andarei iludido demais?

À partida, a verdade mostra a imperfeição.
É essa a relação que têm.
Porque a perfeição é falsa. Ou subtil, depende do observador.

A verdade deve ser transparente, sem lugar para objeções, translúcida.
Fere a razão, porque a razão é cheia de esquemas, de teorias, de lógica contranatura.
Por exemplo, é razoável pensarmos que somos todos iguais. Quando a natureza, na verdade mostra-nos que somos todos diferentes.
E quando a razão é suplantada pela verdade, fica ferida.

Apenas acrescentei mais perguntas e não soube responder a todas as perguntas que o teu comentário apresentou.

Mas devo felicitar-te pela teu primeiro contributo para o espaço crítico.
Como pensei que fosses capaz, como aliás referi num dos comentários ao Trincheiras que fiz anteriormente.

Abraço



Criado em: 26/3 15:45
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Comentário: "a verdade, o fogo e a desilusão" p/ RB e A.Maya
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 422
.
Parabéns ao Rogério pelo poema e à Alice por esta incursão no Espaço Crítico, que esperamos que seja a primeira de muitas. Já se viu que capacidades e sensibilidade não lhe faltam -- e bons pretextos para análise literária também não :)
A propósito: gostei tanto do equívoco pirogamia/piromania, que escrevi um poema sobre o assunto. Se quiserem ler, é uma espécie de homenagem a ambos.
Abraços.

Criado em: 27/3 20:36
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Re: Comentário: "a verdade, o fogo e a desilusão" p/ RB e A.Maya p/ benjamin
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Mensagens: 166
Olá, benjamin.

Obrigada pelo seu comentário à minha "análise" e pelo poema que escreveu.

De facto, não é minha pretensão concorrer com as duas pessoas que escrevem neste Espaço Crítico. Longe disso. O benjamin e o Rogério fazem-no tão bem que torna difícil a minha posição.
E confesso que devem inibir algumas pessoas com o vosso talento.

Ainda assim, e como gosto de escrever e de pensar, vou arriscar. Não me importo nada de ser a canuca ou caçula do sítio e de sentar ao lado de imperadores.

Boa Páscoa para ambos.

Abraço Maya!

Criado em: 30/3 19:33
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