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Café para dois

 
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Ele estava sentado com seu terno de linho branco, chapéu branco na mão esquerda, bengala negra apoiada na cadeira, o café esfumaçava em
sua frente. Cabelo branco agitado pelo vento e a barba molhada pela maresia. Seus olhos fitavam o horizonte até o momento que o outro começara a se aproximar, desde então observava-o com um sorriso
bonachão na face. O outro de terno de risca de giz, cabelo em um estilo meio cumprido e bagunçado, barba por fazer, pêlos extremamente
negros, e um sorriso de cafajeste italiano na cara. Faz tempo, João, que não vem me visitar. Pois é Lúcio. Os dois encaram-se por alguns segundos, sem desformular seus sorrisos. Por que você não se senta? Aguardava o convite. Ele senta e a garçonete se aproxima. Une tasse de café s'il vous plaît! Oui, monsieur, à un moment. A garçonete vai para dentro e ele fica a observar o balanço de seu corpo na caminhada. Você nunca muda, não é mesmo Lúcio? Na verdade meu velho, eu mudo todos os dias, mas isso não significa que eu mude tudo. Um momento de silêncio onde só escuta-se o barulho dos labios sorvendo o café. A garçonete está vindo. Ela vem, deixa o café e uma taça de água. Quelque chose de plus? Non, Merci! C'est un plaisir. Fazem quantos anos desde o acordo? Eu não fico contando, mas creio que uns dez anos ou quinze. Você está feliz com sua parte? Meu velho, não me criaste para ser um coitado chorão, faço meu trabalho e absorvo prazer de tudo que posso, não costumo reclamar. Sabe, certas vezes penso que fui injusto contigo. Por quê? Você ficou com a pior parte, eles te odeiam e me respeitam. Existem aqueles que me adoram. Mas a
grande massa adora a mim. Está enganado, eles podem todos os dias clamar teu nome e temer o meu, nas palavras deles temem teu ouvido inquiéto, mas não fogem ao prazer de um bom almoço, nem quando fodem cultivam essa mania de trancar o orgasmo, cada ato de prazer humano, cada experiência mundana é um ato de amor a mim. Um ritual João, o
sexo, a alimentação, a leitura, a música, tudo é um ritual de prazer e é o culto a mim no dia a dia das pessoas, é isso que me torna forte. Eu entendo seu argumento, mas ainda assim, eles não entendem você assim, eles veem você como a sombra do mundo. É verdade, mas eles nem veem você, eles podem ver-me como uma sombra mas sentem-me como uma sensação boa e você como um sentimento bom, no fundo o amor deles por nós é o mesmo. Nem mais, nem menos. Os dois tomam um gole de café. Tenho que admitir a ideia foi boa, eu sou o pai de todas as criaturas Lúcio, mas de certa maneira você é a mãe da humanidade. Eu criei o livre-arbitrio João, não fiz nada mais do que era natural, você criou as criaturas perfeitas, a sua imagem e semelhança, mas para serem perfeitas tinham de ser diferentes de ti, pois não poderiam ter a chance de escolha, porque a escolha perfeita é uma só. No entanto
quando eles estão na busca por crescerem, o equilibrio é perfeito, a própria existência da busca é perfeição, é o que faltava a nós anjos.
Isso é o que nos diferencia. E você ensina as coisas de modo empírico e eu de modo teórico. Basicamente, sim. Você ainda quer ter filhos
Lúcio? Todos eles, de certa maneira, são meus filhos João. Você entendeu a pergunta. É um desejo meu, mas de alguma forma eu entendo que ter um filho seria querer ser Deus, ou mais do que isso, e me satisfaço com minha posição. Existe uma centelha consciente, que atendia pelo nome de Freud, que dizia que para crescermos devíamos
matar nossos pais, metafóricamente falando. Eu também estudei as diferentes culturas, meu velho, mas por enquanto não existe uma razão para isso. Por enquanto ajudarei meus irmãos a evoluirem. Filho, eu sinto falta de você em casa, por que você não volta? Ainda é cedo, eles não estão preparados, como estão meus irmãos mais próximos? Estão bem, alguns querem encarnar novamente, falam sobre a necessidade disso, mas ainda não é o momento. Definitivamente não. Bom pai, tenho que ir, há uma garota que pode se atirar de um prédio a qualquer momento e alguém não para de falar no teu nome. Eu sei, mas não ajudará ela agora. Por isso tenho que ir, ela ainda não está preparada. Boa Sorte Lúcio. Adios meu velho, ah pague o café para mim, sim? O homem de terno risca de giz se levanta, e começa a caminhar na direção de onde veio, muitos anos se passaram até que eles se encontrassem novamente.
 
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pmatiass
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