Contos : 

Debaixo do arco-iris

 
Acordou assustada... corpo molhado, de suor. Sentiu sede e procurou a pequena moringa que ficava ao lado da cama e sorveu quase de um fôlego, um copo de água fresca.Olhou o relógio, uma e trinta e cinco, não dormira nem três horas...De uns tempos pra cá dera pra acordar no meio da noite; a camisola grudada no corpo a respiração acelerada, o coração batendo forte...Tinha apenas quarenta e dois anos, coisa que não aparentava, pois ainda continuava muito bonita sem vestígios da idade, mas isto era privilegio da mulher atual, mesmo assim precisava procurar um médico, sabia não ser nada grave. Coisas da menopausa, sorriu irônica. Levantou, tomou uma chuveirada, foi até a cozinha, fez uma caneca de chá e voltou ao quarto e o bebeu calmamente, esperando o sono voltar, o quê não aconteceu. Melhor levantar de uma vez e terminar a peça que começara a moldar e foi o que fez.

No pequeno atelier, improvisado, colocou algumas peças no lugar, não era o que se poderia chamar de organizada, havia sempre esculturas, algumas inacabadas, espalhadas. Mesmo assim gostava de ficar ali, mesmo quando não estava trabalhando. Ouvia música e se imaginava uma grande artista...Poderia até ter sido, pensou, se não tivesse se apaixonado e casado tão cedo. Ainda por cima o marido não compartilhava com ela o amor pela arte, achava aquilo tudo uma besteira e não gostava das coisas que ela criava, achava suas peças obcenas. Para evitar brigas deixou de fazer o que gostava...Não tivera filhos isso tornou sua vida mais vazia, hoje decidira, que fora melhor...Apesar de tudo agüentou o casamento por quase vinte anos. Nos últimos tempos tudo ficara insuportável, o marido a irritava; a voz, o cheiro, seu jeito autoritário sempre impondo os seus desejos... Deu graças a Deus quando ele arranjou uma amante e a deixou em paz.

Fora correto com ela, apesar de tudo, era um bom sujeito...Deixou–lhe um pequeno apartamento, perto da praia, como ela queria, e uma pensão, que dava para viver, com certa tranqüilidade. Não ficaram inimigos, apesar, de tudo ele se sentia grato, por ela o ter deixado ir, sem escândalos.

As amigas achavam que ela deveria investir num novo casamento, mas ela nem pensara nisso: estava feliz, depois de tanto tempo, sentia-se livre. Ninguém mais dizia o quê, ela deveria fazer, finalmente os dias eram apenas seus.

Acariciou a pequena peça, que estava em suas mãos, uma pequena dançarina; os seios empinados, as pernas longas, de músculos bem delineados, braços erguidos, numa coreografia sensual. Suas peças eram sempre representadas por belas mulheres. Já na adolescência, seu estilo se firmara , claro que não tão ousado como agora, mas isto era natural pensava, pois só agora se sentia livre. Pelo menos na arte esta liberdade se manifestava por inteiro.

Pegou um papel e começou a maquinalmente a esboçar o rosto de uma jovem, quase menina e permitiu que as lembranças chegassem...Parecia ouvir o riso debochado, de dentes perfeitos – deixa de ser boba, Maria, tira esse maiô ridículo e vem pra água, não tem ninguém olhando, este é o horário das mulheres, aqui ninguém usa roupa pra tomar banho - eu, tenho vergonha - A outra saiu da água, o corpo moreno, brilhando sob o sol – tira ou faço isso a força – Maria se encolheu – Para com isso, Joana – tentava se defender, a outra porém era mais forte.Escorregaram, caindo na margem do riacho, rindo, Maria resolveu atender o pedido. – Por que estava com vergonha? Somos iguais sua boba. Vem à água está uma delicia...Nadaram e riram e Maria não teve vergonha nem mesmo quando as mulheres mais velhas tiravam as roupas, sem nenhum pudor e se jogavam na água. Não havia malícia pelo menos para elas. Maria, no entanto, se sentia confusa, menina da cidade, mãe rígida, não tinha a espontaneidade, das pessoas dali.

Durante muitos anos esquecera este dia, no entanto agora estas lembranças chegavam sem ela saber por quê. Talvez as amigas tivessem razão, precisava refazer a vida...
Viu as primeiras luzes da manhã, surgindo, pela fresta da janela. Resolveu ir a praia mais cedo. O porteiro estranhou quando a viu passar. Caminhou pela areia da praia sentindo o friozinho da manhã, arrepiar a pele... ao longe viu um casal namorando, sorriu compreensiva não sem um pouco de inveja...Pelas roupas, deveriam ter terminado a noite sob as estrelas, pensou, continuou devagar, para dar tempo de se recomporem...No mar o arco-íris se espreguiçava. – Tia, pode me dizer às horas? – gritou a garota – ela parou para olhar o relógio – seis e vinte- a outra menina, levantou e respondeu - obrigada, tia, boa praia. Maria olhou, surpresa, as meninas, que saíram de mãos dadas, pela orla...Num clarão percebeu o quê estava esperando da vida.

Correu até o mar e mergulhou, foi como se tivesse renascido.


jacydenatal

 
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Jacydenatal
 
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