Contos : 

Candela*

 


* Republicado após leitura da crónica do jaber "A lição que não se aprende".



Desde que chegara da escola, ainda não tinha manifestado algum tipo de expressão que lhe era habitual. Dava a impressão de estar absorto, entre aquelas mãos delicadas de menino, em que os dedos mergulhavam nos cabelos escuros, num qualquer outro universo que não fosse o seu quarto com as paredes forradas em tom azul céu.

Na cozinha, a mãe preparava o jantar com o avental desajeitado e um sorriso nos lábios ao recordar o peculiar episódio que ocorrera naquela manhã de inverno, em que um desconhecido lhe havia oferecido um lugar sentado no comboio e lhe murmurara que ela era um anjo caído do céu.

Assim que o jantar ficou pronto, dirigiu-se ao quarto do seu menino e estranhou o silêncio que se fazia sentir à medida que ia atravessando o corredor. Lentamente, a mão rodou a maçaneta da porta e o olhar quedou-se sobre a nuvem de apatia que envolvia o pequeno João. Aproximou-se do filho e sentou-se no chão, mesmo ao seu lado. Afagou-lhe ternamente os cabelos e, num tom de voz maternal, beijou-lhe a face.

- O que te preocupa João?

- Oh! Mamã o que faz o Papá?

Aquela pergunta, feita de forma tão pura e inocente, assim de surpresa, trespassou-lhe por completo o ventre e o peito, e aos olhos as lágrimas prontamente deslizaram como as águas cristalinas ao leito do rio. Após um breve momento que pareceu prolongar-se pela eternidade, inspirou bem profundo e, como se os ponteiros do tempo tivessem regressado ao passado, expirou um longo suspiro, em carne viva, apertando com toda a força que possuía o franzino corpo do seu filho contra o seu.

Raquel sabia que aquele momento aconteceria, e também sabia que chegaria de uma forma inesperada, como um trovão que irrompe o silêncio da noite. Engoliu o vazio em seco, enxugou o mar que lhe banhava a face e abraçou a pequena mão do filho à sua.

- Vem com a Mamã, João!

O pequeno João olhou a mãe em silêncio e seguiu-lhe os passos. Abandonaram o quarto, passaram o corredor e seguiram pela cozinha até chegarem ao pequeno jardim que habitava a frente da casa. Os olhares de ambos registaram a fotografia da lua cheia cor de laranja durante uma fracção de segundos que se eternizava no negrume do céu. Raquel agachou-se, envolveu o corpo de João com os seus braços e, em tom de confidência, sussurrou-lhe ao ouvido:

- O papá trabalha ali, na lua. Tenho a certeza que ele nos está a ver neste preciso momento e ficaria muito feliz se lhe oferecesses o teu sorriso.

Um sopro morno de vento afagou os cabelos escuros do João e à sua pequena boca nasceu um sorriso capaz de abarcar o infinito.

- Para ti, Papá! – disse com a sua voz ingénua de menino e foi abraçar a mãe.

 
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Moreno
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Enviado por Tópico
RoqueSilveira
Publicado: 28/11/2011 21:45  Atualizado: 28/11/2011 21:45
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 Re: Candela*
Já tinha lido o do jaber e dito que gostei muito, sobretudo da ingenuidade do diálogo, de uma beleza rara que parece simples, mas não é. Aqui te deixo a mesma opinião sobre o teu, também excelente texto, que remata com o abraço à mãe de forma extremamente terna. Ainda bem que te lembraste dele. Um beijo Helder Roque


Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 28/11/2011 23:06  Atualizado: 28/11/2011 23:06
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 Re: Candela*
Estava a ler e vi o menino, a mãe e o céu onde mora a lua e toda a ternura do mundo...
como se os conhecesse.

Gosto muito da tua escrita, Helder - de sensibilidade e entrega.

Beijo.