Crónicas : 

707

 
Todo o final de ano era assim.
Desde que tomara consciência, ainda jovem, de que a vida não é eterna e a morte viria, inexoravelmente, ao seu encontro, que se entretinha a imaginar se este novo ano que chegava seria o último da sua existência e o que ficaria gravado na lápide de mármore branco seguido da insossa frase “ Eterna saudade de seus filhos e netos”.
Conformado com a mais básica lei do universo ia, em modos de auto exorcismo, construindo e desconstruindo uma panóplia de ideias e conceitos como se pudesse, de alguma maneira, controlar o incontrolável, sondar o insondável, e ver, ao fundo das curvas e contracurvas do tempo, o dia da sua morte.
Maneira estúpida de passar o tempo, sem dúvida, mas a seu ver uma forma de auto-controlo, auto-conforto, que muitas vezes se transformavam em auto-comiseração. Não era supersticioso, mas aproveitava os números que por acaso iam fazendo parte da sua vida (como os números de policia das casas onde foi vivendo, o seu número na sala de aula, o seu número mecanográfico na tropa, até as matrículas dos seus automóveis) para fazer arquitecturas, conjecturas e esconjuras, na adivinhação da data fatídica. O número que mais o fascinava era o 7. Não sabia ao certo porquê, mas o 7 era o maior criador de variáveis na busca de uma resolução para a sua incógnita. O 7 e os seus múltiplos e submúltiplos.
Por vezes imaginava que iria definhar com uma idade saída da tabuada dos 7 e por isso os seus 35, 42, 49, 56 e 63 anos foram vividos com uma angústia adicional. Agora, que se aproximam os 70, a ansiedade cresce numa proporção geométrica, mal lhe deixando tempo para outras perguntas como, por exemplo, qual o próximo ano que será múltiplo de 7 ou, se por outro lado o fatídico ano acabará em 7.
E lá seguia, nos seus passeios de reformado, absorto a fazer contas de cabeça: 2016 é múltiplo de 7, depois 2017 acaba em 7, Julho é o mês 7, se somarmos os algarismos de 2014 dá 7 . Há ainda o .....707?!?

O motorista do autocarro da linha 707 escondeu a cabeça no meio das mãos num acto de desespero e resignação. Ao seu lado gritos e igual desespero.
Como foi possível aquele desgraçado, que vinha há tanto tempo a olhar para o número da carreira, se tenha metido, como um autómato, à frente do autocarro como se este não existisse. Maldito seja o velho. Estragou-me o dia do meu 37º aniversário.

 
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ImprovávelPoeta
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 06/01/2012 17:19  Atualizado: 06/01/2012 17:19
 Re: 707
Colunista de primeira linha! A merecer uma coluna própria no fórum desta casa. Atenção Mr. Trabis!!!

Um abraço de cá. Obrigada por compartilhar este texto tão bem construído, interessante e inteligente. 707!... Mas, nem os diamantes serão eternos!?!