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MEMÓRIA VIVA NA VOZ DE BELCHIOR - ANOS 70/80

 
MEMÓRIA VIVA NA VOZ DE BELCHIOR - ANOS 70/80

“No centro da sala diante da mesa no fundo do prato comida e tristeza. A gente se olha, se toca e se cala. E se desentende no instante que fala.”

Medo medo medo medo medo...

Belchior foi, a meu ver, a pessoa que soube melhor traduzir as transformações que ocorreram nos anos setenta. Quem não conheceu uma mesa de almoço como esta citada acima, senão na sua casa, mas na casa de algum parente seu?

E ele continua...

“Cada um guarda mais o seu segredo, sua mão fechada, sua boca aberta, seu peito deserto, sua mão parada, lacrada, selada, molhada de medo.

Pai na cabeceira: é hora do almoço. Minha mãe me chama: é hora do almoço. Minha irmã mais nova negra cabeleira. Minha avó me chama: é hora do almoço.”

Medo medo medo medo medo medo...

Isto era o que acontecia em muitas das mesas dos brasileiros: aquele pai lá longe, em cima de um pedestal, na ponta da mesa e todo mundo quieto, calado, lacrado de medo.

E

“...e eu ainda sou moço para tanta tristeza. Deixemos de coisa cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta moço sem ter visto a vida ou coisa parecida.”

Esta colocação já era um rompimento com esta coisa que já estava passando do tempo.
Queríamos mais, queríamos falar de amor, queríamos honestidade, clareza, queríamos dividir, queríamos participar e não só dizer “sim senhor”, mesmo quando nossos pais estavam errados.

Deve ter sido um tempo difícil também para os nossos pais também, pois já não conheciam tão bem os filhos que tinham.

Estavamos falando duas linguas ao mesmo tempo.

Eu fui criado solto, literalmente, pois meu pai era da marinha, e estava sempre longe, e minha mãe tinha meus irmãos que precisavam ou exigiam mais dela.

Eu não dava trabalho.

Foi um tempo de quebra de paradigmas, rompimentos naturais, isto ninguém pode negar, não de uma ruptura violenta, agressiva, mas de mudança, uma mudança necessária para sermos espíritos mais libertos para podermos optar pelo tudo de novo que estava acontecendo e aparecendo todos os dias.

Isto me lembra o livro da escritora Roselis Von Sass, “Os Primeiros Seres Humanos” que diz que o animal mais perfeito foi se desenvolvendo, se desenvolvendo, se desenvolvendo... para, no momento certo, ser encarnado no lugar da alma animal um espírito humano, o que trouxe para o mundo um novo estágio.

Aqueles primeiros seres humanos, filhos destes pais com alma de animal, mais enobrecido, mas animal, não conseguia perceber naqueles alguma afinidade, pois estes só foram o trampolim para o grande passo que se iniciou com encarnação do primeiro ser humano na maravilhosa Terra.

A Teoria de Darwin é coreta na evolução das espécies, só peca naquilo que a Ciência não tem condição de estudar, nem as igrejas de explicar, pois não sabem nada também da evolução espiritual que ocorreu paralelamente até a primeira encarnação de um espírito humano no lugar de uma alma animal. O corpo era o mesmo, mas mudou e essência que veio vivificar aquele corpo.

Depois deste paralelo, e voltando para os anos setenta, vejo que o que aconteceu foi meio parecido, guardado é claro, as devidas proporções.

Nossos pais não tinham como nos acompanhar, foi difícil para eles, e nós nos sentíamos meio sós, surgindo daí uma camaradagem entre amigos que nunca tinha acontecido e que também nunca mais aconteceu, eu acho, pois estávamos engatinhando em tantas novidades que nos apoiávamos uns nos outros.

E Belchior:

“Tudo é divino, tudo é maravilhoso...tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas, caminhado meu caminho. Papo som dentro da noite. E não tem um amigo sequer que ainda acredite nisso. Não tudo muda e com toda a razão e eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco e sem amigos importantes...

Quem não se sentia assim, meio sem eira nem beira, no meio daquele turbilhão de luminosidade que acontecia, quer um exemplo: Calça de cetim, nós garotos usávamos calças de cetim, onde mais antes ou depois daquela época alguém usou calça de cetim? Nem as mulheres usam mais.

O mundo não era cinzento naquela época, eu, um dia recebi dinheiro para comprar um pano para fazer uma calça e na loja escolhi um brim amarelão e quando levei para a costureira ela me perguntou:

“O senhor, eu tinha quinze anos, tem certeza que quer fazer uma calça com este pano?”

Eu juro que não entendi a pergunta dela, fiquei sem entender, mas não sabia que estava lançando moda e que dali a um pouco todo mundo ia usar estas cores, pelo menos em Curitiba ainda não tinha.

Nós íamos muito pela nossa cabeça. Era tudo muito doido e os caretas, ainda com o velho pensamento, ficavam me tirando sarro e eu não entendia porque, ela era tão bonita rsss.

E os meus pais nem ligavam mais, sem bronca.

E diz Belchior:

“Foi por medo de avião que eu peguei pela primeira vez a sua mão. Um gole de conhaque. Aquele toque em teu cetim. Que coisa adolescente, James Dean...

Nós também não estávamos conhecendo as meninas de outra forma? E elas também a nós? Era tudo novo. Não era aquele negócio de "ter" que ir na casa delas nos domingos para ver televisão junto com os seus pais.

Não precisávamos mais entrar nas casas, ficávamos conversando no portão.

Belchior:

“Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. Longe o profeta do terror que a Laranja Mecânica anuncia. Amar e mudar as coisas me interessa mais...

Aqui ele mostra as opções que todos tínhamos, mas com relação ao filme “Laranja Mecânica” eu lembro que sai assustado do cinema, mas já conhecia alguns caras que já faziam muita crueldade, como amarrar carne em cordão e dar para o gato comer e depois puxar, ou amarrar bombinhas nos rabos dos cachorros e depois acender só para ver o animal ficar pirado.

Estas coisas eu estranhava e o “Laranja Mecânica” parecia um futuro próximo, aterrador mesmo. Será que aquela maluquice toda ia chegar naquilo¿

“Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol quando você entrou em mim como sol no quintal”

Era uma era de angustias também, mas o mais gostoso, era época de quintais. Quem é que sabe o quanto é gostoso ficar conversando num quintal hoje em dia, numa sombra, enquanto bate o sol?

‘Mamãe quando eu crescer eu quero ser rebelde, se conseguir licença do meu broto e do patrão. Um Gandhi Dandi... um grande milionário socialista de carrão para chegar mais rápido à revolução. Ahhhh! Quanto rock dando toque, tanto blues e eu de óculos escuros vendo a vida e o mundo azul’.

Um bom sarro aqui do Belchior, pois no meio de tanta efervescência e revolução cultural acontecendo, alguns optaram em pegar armas.

Eles dizem contra a ditadura, mas só o Gabeira tem a coragem de dizer que eles não lutavam pela democracia, mas sim para instalar a ideologia Stalinista.

E Belchior satirizou-os bem nesta colocação, pois a verdaderia revolução estava acontecendo nas ruas e sem ideologias, só de óculos escuros e vendo o mundo azul.

“A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia e pela dor eu descobri o poder da alegria e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas prá dizer”.

“Saia do meu caminho eu prefiro andar sozinho. Deixem que eu decida a minha vida. Não preciso que me digam de que lado nasce o Sol porque ele bate lá no meu coração”.

O Sol sempre esteve ligado naquela geração, quem não ficava no mar até o raiar do dia para vê-lo nascer. Naquela época havia poesia e amor à natureza, por nós, que éramos chamados de “naturebas”.

“Tudo poderia ter mudado, sim, pelo trabalho que fizemos tu e eu, mas o dinheiro é cruel e um vento forte levou os amigos para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos, e nossa esperança de jovem não aconteceu não, não...

Aqui a gente já estava passando da adolescência e tivemos que encarar o mundo duro que nada perdoava e Belchior captou bem.

“Palavra e som são meu caminho para ser livre, e eu sigo, sim. Faço o destino com o suor da minha mão. Tenho falado á minha garota: Meu bem é difícil saber o que acontecerá, mas eu agradeço ao tempo, pois o inimigo eu já conheço. Sei seu nome, sei seu rosto, residência e endereço. A voz resiste. A fala insiste, você me ouvirá: quem viver verá.

Sempre é dia de ironia no meu coração.”

Aquele sonho estava acabando, mas o levávamos no coração e ele ainda está ali até hoje.

“O que transforma o velho no novo bendito fruto do povo será”.

Eu acho que o mundo brilhou naquele pequeno período, que durou o que, para mim, uns três quatro anos. Quem viveu, viveu.

“Você me pergunta pela minha paixão digo que estou encantado como uma nova invenção, pois vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação e eu sinto tudo na ferida viva do meu coração.

Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam não. Você diz que depois deles não apareceu mais ninguém. Você pode até dizer que eu estou por fora ou então que eu estou enganado...mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.”

“E hoje eu sei, eu sei, que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude está em casa contando seus metais.”

“Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos, ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais”.

Nisto eu não concordo plenamente com ele, pois algo sempre fica, pelo menos eu que não criei ninguém e uma psicóloga amiga minha, me disse um dia que:

“Quem não se torna pai, nunca deixa de ser filho”.

Então eu amei nunca ter tido filho.

*Trechos das músicas: Apenas um rapaz latino americano, medo de aivão, de primeira grandeza, Alucinação, Hora do almoço, Lira dos vinte anos, Dandy, Fotografia 3/4, Como nossos pais.

**B elchior gravou 133 músicas, mas infelizmente é muito raro encontrarmos os CDs dele.

"Não é o lugar em que nos encontramos nem as exterioridades que tornam as pessoas felizes; a felicidade provém do íntimo, daquilo que o ser humano sente dentro de si mesmo' Roselis von Sass – www.graal.org.br

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