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Jake, o estripador

 
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Eram dias sem significado, via-me numa casa vedada por todos os lados por onde conseguia ver o horizonte sem dali sair. Era a minha gaiola, a minha gaiola de hamster, com a roda de plástico verde e a casinha no segundo andar, a mesma que ainda hoje chamo casa... Era um jovem energético aprisionado num fim do mundo com vista para a janela onde apenas via liberdade, a liberdade de poder correr num espaço maior que os meus modesto 3 dm3... Foram tempos de tristeza, mas nem uma fracção da que hoje me assombra...<br /> Foi na tarde de 22 de Dezembro que entrou uma família na loja de animais à procura de um hamster para a filha mais nova. Não sei porquê pôs-me logo aos saltos, “Sou eu! Sou eu!” queria eu gritar mas lá me controlei, não queria que me vissem como o animal que iria guinchar a noite inteira sem os deixar dormir. Lá ajeitei o pêlo e vesti o meu melhor sorriso, a menina estava a olhar e, embora de jovem já pouco se visse, ela insistia em apontar para mim enquanto sorria. Os pais não foram tanto com a minha cara... Preocupavam-se com os meus 2 aninhos, achavam que se eu morresse poderia traumatizar-lhes a filha. Mas o diabo da gaiata era uma mimada da pior espécie e tanto teimou que lá me foram buscar juntamente com a minha gaiola
Estava todo contente, ainda não conhecia o Natal e ver a casa toda decorada, cheia de luzinhas e a família em peso alegre fazia-me sentir animado. Não tinha nada em comum com o aborrecimento da lojinha da bixarada, aqui havia vida e sempre que ouvia a campainha tocar sabia que vinham mais uns tios e seus filhos dar de comer ao hamster amoroso da Maria, o Jake. Maria era a minha dona, com 5 anos já andava toda despachada a querer ajudar a mãe nos doces natalícios, aqueles olhinhos azuis e cabelo loiro solto não aceitavam um não como resposta. Foram bons tempos, e é por a vida ser velhaca e cruel, que eles não voltam...
Passei a ser o melhor amigo e confidente da Maria, apesar de me dar bem com toda a família incluindo o gato preto presunçoso, o Sam, que me acordava às tantas da noite quando chegava tarde da boa vida, ela era quem mais atenção me dava, não houve dia em que ela não me desse de comer ou que não me limpasse a gaiola (limpezas não eram o meu forte). Fazia os sacrifícios de ficar com ela a estudar até as tantas para os testes complicados que começou a ter no primeiro ano, e sem me queixar pois queria que ela tivesse o melhor futuro que podesse. E ela era esperta, nunca acabaria a trabalhar numa loja de animais. Quantas vezes vinha a chorar porque o namorado não lhe ligava para dizer boa noite e já perdi a conta das que lhe ralhava por andar a assobiar da janela aos garotos que iam para a catequese ao domingo de manhã... Estranho para uma menina do primeiro ano, acho que isto já são memórias que fabriquei por andar fechado na gaiola que não é limpa há meses enquanto vejo na televisão a pior programação que os humanos se lembraram de pôr a dar...
Penso que está na altura de falar do dia em que tudo mudou, quando fiz 4 anos abençoaram-me com uma companhia... Sem me perguntarem se queria, trouxeram-me o Bob. Era jovem e cheio de vida e queria tanto como eu ser amado pela Maria mas por mais que tentasse não conseguia, era preguiçoso e andava sempre armado em bom a pregar-me partidas com o Sam que já nem saía à noite, suspeito eu que a barriga já nem passava pela portinhola.
Bixo com tão mau carácter nunca seria tão acarinhado como eu e isso deixava-o fulo. Por isso, depois de um dia agitado em que a minha dona se lembrou de me levar para a escola para me apresentar aos seus amigos (maldito dia), cansado e aterrorizado por ter sido esganado umas dez vezes por crianças com as mãos cheias de compota e/ou lama tive que ouvir mais uma vez as lamúrias do Bob... Mas desta vez ele estava alterado, depois de um dia a conspirar com o Sam contra mim, via nele um olhar de louco que me aterrorizava, ele seguramente só beneficiava com a minha morte, mas nunca o achei capaz. Atirou-se a mim, aqueles dentes eram mais afiados que os meus e tinha a agilidade que eu tivera à uns bons anos, mas a minha natureza não me permitia deixá-lo sair-se a rir e então, acidentalmente, empurrei contra a grade da gaiola e só vi jorrar sangue, do sítio onde não acreditava que existisse coração saia a farpa mal cortada da nossa gaiola e os olhos negros dele simplesmente deixaram de exprimir o ódio que outrora lá havia... A vida que eu tomara conscientemente, sentia o sangue nas minhas mãos como se ainda quisesse viver. Eu tirei-lhe esse direito e por não querer aceitar esta realidade, deixei-me desmaiar num misto de exaustão e dor...
No dia seguinte acordei com um grito de horror, “O raio do animal assassinou o Bob!”, “Que nojo!”, “Vamos mandá-lo de volta para a loja onde devia ter ficado!”. Não! Aquilo não fora obra minha, eu defendi o meu pêlo e quase bati a bota, lutei para viver, não me podiam ter julgado... Mas fizeram-no, e afastaram-me da minha companhia, tiraram-me a minha razão de viver sem sequer duvidar se faziam o que estava correcto.
Hoje tomei a minha decisão, já com 4 anos não aguento ver o dia de amanhã. Não aguento ver indiferença nos olhos da Maria quando passa por mim, agora que já nem estou no quarto dela, passo dias sem a ver. E saber que ela não me perdoou, é algo mais mortal que qualquer farpa da gaiola... Deixo assim a minha história, a história de um hamster escrita pelo próprio. Porque hoje ponho fim à minha vida, por fraqueza e dor parto na busca de algo melhor. Só espero que no meu sono eterno encontre forma de ser perdoado para que para sempre viva, nos olhos azuis daquela rapariga...

by: miguel.brg

 
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miguel.brg
 
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Enviado por Tópico
Vera Sousa Silva
Publicado: 04/03/2008 10:51  Atualizado: 04/03/2008 10:51
Membro de honra
Usuário desde: 04/10/2006
Localidade: Amadora
Mensagens: 4098
 Re: Jake, o estripador
Muito bonito, mas triste! Pobre Jake...
Gostei muito do teu conto

Bem vindo ao Luso-Poemas!

Beijo

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 09/03/2008 10:29  Atualizado: 09/03/2008 10:29
 Re: Jake, o estripador
O Jake teria ficado orgulhoso! Primeiro num blog, agora no luso! Cómico que só agora, depois de morto, é que aquele bichinho se torna reconhecido! (Vê se escreves o texto da Boneca antes dela morrer.)