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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 4

 
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PASSIONAL - Notas d'um bilhete suicida - Parte 4

Houve quem estranhasse Tereza viajar com a pastora para o Rio e passar uma semana em compromissos da igreja. Sobretudo Afonso!... Tereza tinha férias vencidas e resolveu tirá-las. Como as meninas ainda não estavam em idade escolar, Tereza as deixou com sua mãe e justificou com Afonso ter sido um pedido da pastora para acompanhá-la, haja vista que, além dos cultos e cerimônias, haveria seguidas reuniões com líderes evangélicos, políticos e grupos de mídia. Haveria o lançamento d'uma edição especial dos livros de terapia de casais reunindo também artigos e publicações esparsas que o casal de pastores realizou ao longo de anos de vida pastoral e casamento consagrado. Com efeito, era uma agenda apertada de compromissos muito importantes que Tereza, no lugar funcionários e assessores da igreja, se prontificou a assumir. Afonso questionou, meio irônico, se ela estava enxergando na igreja uma nova carreira e Tereza, muito séria, respondeu que sim. Afonso se calou por reconhecer que havia ali, de facto, uma grande oportunidade profissional para sua esposa, embora ela estivesse muito bem onde estava. A grande questão, insistia Afonso eram as viagens: -- "Se isso se tornar profissional, amor, o ritmo da igreja vai exigir muito de ti." -- e continuava -- "Ainda que saias do escritório para ganhar mais, resta a questão das meninas..." -- ao que Tereza atalhou -- "Sim, Afonso, mas eu já sacrifiquei demais minha carreira por ser mãe. Preciso agora de apoio - teu, sobretudo - para fazer isso dar certo. Essa viagem pode ser uma porta se abrindo... Se tudo se acertar, vou assumir encargos importantes na igreja." . E concluiu: --" É algo que quero muito". -- Afonso assentiu --"Sim, eu entendo."

Tereza e a pastora pegaram a ponte aérea e desembarcaram no Santos Dumont. O Rio era muito diferente para quem viajava com dinheiro... Transporte executivo, hotel ultraconfortável, restaurantes badalados... Tereza não se deslumbrava, mas mesmo profissionalmente era uma viagem muito agradável, cheia de mimos e privilégios. A pastora era ainda mais profissional, cumprindo a agenda de encontros e reuniões com competência e, após, assumindo seu papel de celebridade evangélica em cultos muito concorridos. Como a imagem que construíram para as pessoas era d'um casal de pastores, em todos os cultos era projetado um vídeo do marido saudando à assembleia do templo em amorosos termos paulinos. Embora jovem, o conhecimento e o carisma do pastor eram inegáveis: Um grande comunicador; um grande líder pastoral. Terminado o vídeo, a pastora brilhava defendendo as receitas de terapia de casal iluminadas pela fé em Jesus Cristo e pela santidade do casamento cristão para resgatar àqueles que de coração puro desejavam curar suas mágoas e começar uma nova vida com o coração blindado. Tereza sempre se impressionava com a força da pregação da pastora e ali no Rio, noite após noite nos cultos, não era diferente. Ela era carinhosa e firme ao mesmo tempo, insistindo que a vontade de Deus para todos é que se santificassem por meio do casamento. E citava desde o Gênesis "não é bom que o homem fique sozinho" até as epístolas de São Paulo: "sem amor eu seria como um címbalo que tine..." De modo especial, voltava-se para as mulheres: "Vigiai e orai, pois, não sabeis a que horas chega o Noivo" -- e fazia a exegese: "Sim, nós mulheres devemos ser prudentes, mantendo a chama de nossa fé acesa com o combustível do amor, assim como a Igreja, noiva do Senhor, espera a Sua vinda!" O último bloco de sua pregação era a exibição de fotos da missão, sempre com ela e o marido cercados de fiéis transformando a realidade de refugiados em zonas de conflito. -- "Esse trabalho pastoral" -- destacava ela -- "era reconhecido inclusive pela ONU, ressaltando o papel congregador da igreja ao levar a esperança de dias melhores àqueles que perderam tudo." N'esse momento, bastante emocionada, exortava a todos que devolvessem a Deus um pouco de tudo que receberam, contribuindo com a missão: "Eu não peço por mim ou por minha igreja, pois, nossa presença lá não é como movimento cristão. Estamos lá junto com aqueles que sofrem, sujeitos à violência e à perseguição". -- e as carteiras se abriam!... E a comoção diante das crianças desvalidas, com seu olhar de urgência, desmanchava mesmo os mais cépticos, afinal, eles estavam fazendo algo de concreto! A pastora, elegante-mas-sóbria, deixava o púlpito e caminhava para extremidade do palco, microfone à mão, e conclamava a todos que orassem em línguas com ela para que Deus enviasse mais operários para aquela messe... E toda a assembleias irrompia em solfejos desconexos n'uma linguagem ininteligível que a pastora chamava e suspiros inefáveis vindos do coração. Tinha início uma grande catarse colectiva, onde homens e mulheres se emocionavam às lágrimas, desejosos da santidade que faria de suas pequenas escolhas no dia a dia grandes movimentos na construção do Reino de Deus.

Após o culto, tal como uma celebridade, a pastora era cercada por fiéis desejosos de autógrafos em seus livros ou fotos para postar nas redes sociais. Pacientemente, ela atendia a todos, deixando-lhes sempre uma palavra positiva e um sorriso. Tereza acompanhava tudo discretamente, em contacto contínuo com os organizadores do evento de modo a assegurar o sucesso de cada detalhe, afinal, mais importante que o evento em si era sua repercussão em ambientes virtuais: Tudo era minuciosamente registrado, editado, postado, curtido, comentado e compartilhado. Aquilo tinha mais alcance que exibir o culto na TV, com seus segundos caríssimos para traços de audiência... Tereza entendia que que aquele processo de criação e propagação de conteúdo exigia um dinamismo excepcional pelo qual dir-se-ia as igrejas cristãs tradicionais verdadeiros dinossauros no limiar da extinção. Com efeito, a fé das pessoas havia se tornado entretenimento.

Tereza assumia um papel de assessora e conselheira da pastora que a alçava à direção executiva da igreja em seu trabalho pastoral e missionário. Trabalhava de 10 a 12 horas por dia, mas não estava mais confinada à rotina do escritória e às picuinhas do jogo de poder das promoções. Era amiga, assistente, membro da igreja, assessora, secretária e, sobretudo, amante... A pastora se revelava frágil e carente quando estavam a sós. Dizia-lhe que ela, Tereza, fora enviada por Deus para lhe devolver para Ele. Com efeito, ela tinha chegado ao seu limite de abnegação após meses longe de sua tradutora. Tereza intuiu, desde o primeiro beijo que, embora o amor entre mulheres fosse novidade para si, não o era para a pastora. Ela fora muito decidida em seu assédio; muito segura do desejo e das emoções que sentia, enquanto Tereza... Sim, Tereza deduziu que a pastora já havia tido casos com mulheres antes, inclusive por sua naturalidade com que a acariciava. Tereza, embora a desejasse profundamente e ansiasse por seu toque, era muito mais desajeitada que sedutora. Os brinquedos sexuais eram um capítulo à parte: Jamais Tereza imaginara-se usando um dildo, um plugue ou um vibrador! A pastora lhe apresentou um universo de práticas e posições sexuais que lhe era totalmente desconhecido. Todas as noite, após os compromissos pastorais, as duas passavam horas se descobrindo e se satisfazendo. Tereza finalmente se sentia amada e desejada por um parceiro após anos de frieza e desencontro nas relações com Afonso. Elas se completavam com uma delicadeza doce e safada. Nunca se cansavam ou se estressavam uma com a outra, apesar de toda a cobrança que as cercava e percebia-se claramente o quanto a assistência de Tereza transformava o trabalho da pastora: Mais que eficiente, ela se tornara arrebatadora.

A semana no Rio foi um grande sucesso, em todos os aspectos: Doações de vulto, convites a toda sorte de eventos, aparições na mídia, ampliação das vendas de livros... Os números, atualizados dia após dia, davam conta d'uma tendência na pastoral evangélica capitaneada por aquela igreja: A força das mulheres jovens inspirando a conversão de famílias sem qualquer tradição religiosa ou mesmo avessas ao neopentacostalismo evangélico. Com efeito, homens de terno expulsando demônios de palco e exibindo relógios de ouro em carros importados fazem pensar se os "operários (da fé) merecem seus salários". Enfim, era uma nova proposta para essa mensagem que reinventava há séculos, a evangélica.

A pastora tinha sólida formação teológica e era respeitada por sua profundidade na abordagem das verdades da fé. Crescera n'um lar evangélico e sempre militara com ousada inteligência contra tudo e contra todos que se lhe relativizasse a grandeza da verdade cristã. Não desconhecia, contudo, os filósofos existencialistas e as demais tradições religiosas, cristãs ou não. Sua grande paixão intelectual, inobstante, era a Psicologia. Era uma entusiasmada estudiosa do comportamento humano, o que fizera d'ela, com o passar dos anos, uma pessoa cada vez mais tolerante e compreensiva quando comparada aos seus pares. Tinha a mente naturalmente aberta para acolher as pessoas, mesmo as mais desesperadas e confusas. Seu carisma e sua capacidades de comunicação calavam as críticas machistas que sempre relegavam as mulheres na igreja a papeis secundários: -- "N'isso" -- argumentava -- "as igrejas neopentecostais são muito um sinal profético para a Cristandade!" -- e continuava sua digressão no púlpito destacando a realidade de seu trabalho pastoral com o marido, onde ambos se complementavam -- "A mulher cristã, de facto, deve estar ao lado do homem cristão, nunca abaixo!".

Tereza -- embora não fosse mais uma neófita n'aquela igreja -- sempre se admirava da força da pregação da pastora. E sua presença mais frequente nos cultos e eventos da igreja apenas aprofundaram essa admiração. Ela a seguia agora por toda a cidade, nos mais diversos templos evangélicos, levando as urgências da missão no estrangeiro às comunidades cristãs. Mas, ao menos uma vez por mês, a pastora e Tereza seguiam para alguma grande cidade e passavam a semana toda em trabalho pastoral, ampliando o alcance da mensagem de sua igreja.

Usufruíam, n'essas viagens, de muito mais liberdade para ficarem juntas, sempre com muita discrição. A pastora construíra ao lado de Tereza uma intimidade lasciva, mas plena de ternura. Tereza se apaixonava perdidamente por aquela bela e culta mulher e era correspondida. Não fossem a saudade das filhas e o medo do escândalo seriam plenamente felizes n'aquelas viagens. A pastora entendia porém, mais do que Tereza, que aqueles eram momentos preciosos porque fadados ao um fim próximo. Tudo dependeria do planejamento anual da igreja e do desenvolvimento das actividades missionárias. Mais cedo ou mais tarde, ela seria chamada para retornar ao exterior. Lá, mesmo que Tereza viesse como missionária junto com a família, seria impossível esconder a relação das duas de seus respectivos maridos.

Os olhos da pastora, embora brilhassem de desejo por Tereza, sempre mantinham certa melancolia e temor pelo futuro. Elas eram felizes juntas, mas até quando?


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... e continua ...


Ubi caritas est vera
Deus ibi est.


 
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RicardoC
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