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O crime da ária

 

O crime da ária
(História, em nove capítulos, de um assassinato)
(Capítulo 1)

Os amigos

Adamastor, juiz

Os quatro estavam reunidos. Nada festejavam. Faltava um. Lastimavam entre murmúrios neutros o triste fim de Adamastor. Amigos de longa data. Dirigiam seus pensamentos às risadas curtidas naquela fria quinta-feira. Desde a juventude se encontravam toda semana para conversar e detalhar conquistas e justificar derrotas. Quem teria feito aquela atrocidade? Estavam atônitos e indagavam o motivo daquele encontro agendado pelo delegado Herculano. Uma das autoridades da pequena cidade interiorana. Prefeito e Padre compunham a tríade. O juiz, agora vítima, se dera o direito de ficar à parte das personalidades do local.

Robério, professor

A noite tinha sido especialmente animada. Robério aposentou-se. Adeus escola e alunos. Agora realizaria um sonho: viajar ao lado de Inezita, companheira há décadas. Usava essa estratégia para salvar o casamento frágil por tantos destemperos de ambos. O motivo dos desencontros esbarrava e emperrava na situação financeira. Vivia atolado em dívidas e de promessas jamais cumpridas. Inúmeras vezes derramou lágrimas na mesa repleta de copos de cerveja dos amigos. Sentiam pena e sempre ajudavam para evitar dissabores ainda maiores.

Eleonora, artista plástica

Eleonora, mais nova do grupo, há uma semana não conseguia dormir. A cena do crime avassalava a incompreensão do ocorrido. Havia ainda o som reinante naquela triste sala. Isso é o que mais a incomodava e intrigava. Levava sua forte sensibilidade para os trabalhos artísticos que executava. Suas obras expostas na Capital e em outros estados eram sempre admiradas pela crítica e pelo público. Vivia da arte. Com ela se casou. Por esse motivo fora alvo da indiferença por parte de Adamastor, por quem nutria um solitário amor. A música, outra paixão e fiel companheira, a acompanhava durante vinte e quatro horas. Talvez, por esse motivo, aquela em especial continuava a tocar em sua alma.
Alexandre Sansone
(29.05.2020)

O crime da ária
(Capítulo 2)

A cena do crime

Adamastor foi encontrado na manhã seguinte pelo faxineiro Alencar. Alegou ter encontrado a porta aberta e não possuir a chave. Tocava sempre a campainha. Depois de refeito do impacto ligou para a delegacia. Não mexeu em nada. Sabia disso. Era leitor contumaz de notícias sobre assassinatos. Enquanto aguardava o policial, tentava abafar com as mãos, formando duas conchas, aquela música. Não gostava. Preferia baião. Depois de exatos cinco minutos, para ele horas, o delegado Herculano chegou, examinou o cadáver e tudo o que estava ao redor. Anotou alguns itens em sua agenda e recolheu algo caído ao lado do sofá e o depositou no bolso. Poderia ser útil para a investigação. Poça imensa de sangue em torno da cabeça de Adamastor. De pronto o reconheceu. Afinal era o juiz da cidade. Antes de se retirar examinou com detalhes a porta de entrada da residência. Antiga, bela e bastante conservada e sem itens modernos, inclusive no lado externo, observou. Procurou pela arma do crime. Sabia não ter sido revólver. Mandou desligar o som, embora tivesse reconhecido uma de suas músicas prediletas: Ária da quarta corda, de Bach.

Feliciano, contador

O calado e simples contador Feliciano apresentava excesso de nervosismo. Não estava acostumado a sair da rotina: casa, trabalho, casa. Só. Apenas abria exceção uma vez por semana. Era o encontro dos cinco amigos. Para ele, irmãos. Era o único dia em que permitia se levar pela alegria e pela cerveja. Bebia pouco, dois copos. Para ele, suficientes para sorrir e contar algumas poucas histórias de sua vida sem graça. Não admitia que alguém insinuasse ou dissesse qualquer fato negativo a respeito de seu grupo. Ficava irreconhecível. Franzino, se agigantava e partia para a briga aos palavrões. Impensável no cotidiano. Era pessoa de confiança do juiz Adamastor, que recorria, em determinas ocasiões, a seus préstimos de contabilidade, notadamente para os casos mais simples. Para os complexos preferia algum grande escritório da Capital.
Alexandre Sansone
(29.05.2020)



O crime da ária
(Capítulo 3)


A investigação

O delegado Herculano examinou de longe o corpo do juiz. A cabeça pendia para o lado direito e estava de costas para a porta da entrada. Nada estava fora do lugar. Notou dois cálices cheios e um litro de licor aberto. Era de anis. Estavam intactos. Não foram usados. Por qual motivo não brindaram? Refletiu. Pelo menos uma pessoa estivera ali antes do assassinato. Tornou a vasculhar todo o ambiente à procura de alguma prova ou apenas de uma pista. Enfiou a mão no bolso para certificar-se de que o objeto estava ali. Sorriu disfarçadamente. Confirmou com o balançar da cabeça. Determinou que os auxiliares fotografassem tudo e o corpo foi levado para necropsia. Sabia que teria um longo trabalho a ser executado. Vingança de um condenado? Raiva de alguém que se sentiu injustiçado? Dívida? Será? Crime passional? Afinal o juiz Adamastor era solteiro, excelente salário e bem apessoado. Um bom partido desperdiçado? Marido traído?

Beatriz, doceira

A bonita Beatriz chamava a atenção por onde passava. Provavelmente por esse detalhe foi infeliz diversas vezes em seus relacionamentos. Não tivera filhos, ainda. Confidenciara a Eleonora que aceitaria ser mãe, apesar da idade. Mas poderia sim. Quem sabe, costumava dizer à amiga. Doceira de mão cheia. Não havia uma só festa na cidade que seus doces não marcassem presença. Era obrigatório e chique saborear uma guloseima feita por ela. Estava atordoada com o triste falecimento do querido amigo que tanto admirava. Tivera até uma certa queda pelo juiz quando jovens. Passou em branco. Era conhecedora de fatos da vida de Adamastor, por ele desconhecidas. Por respeito jamais revelou.

Alexandre Sansone
(29.05.2020)


O crime da ária
(Capítulo 4)

A revelação

Robério, Eleonora, Feliciano e Beatriz estavam ali, na antessala do delegado Herculano. Foram chamados para uma revelação sobre a morte do juiz Adamastor. Teria sido identificado o autor do crime? Seria de outra cidade? Dali mesmo? Estavam apreensivos e tristes. Fazia frio. Havia uma jarra de café. Serviram-se. Contavam os segundos no grande relógio pendurado na parede ao lado de um quadro antigo e empoeirado que o delegado adorava. Repetia sua história há anos. O barulho da porta sendo aberta trouxe a figura de Herculano que foi objetivo ao dizer que o juiz deixara um testamento datado de poucos dias antes de sua morte. Silêncio!

A testemunha

Alencar de aspecto corpulento e forte era bom de braços. Executava seu ofício com destreza e muita concentração. Desde jovenzinho fazia faxina na casa de vários moradores. Gostavam do primoroso cuidado que despendia com o vigor de suas calejadas mãos. Com facilidade levantava sofás e poltronas sem ao menos suar. Era rápido e prestativo. Chegou até a carregar uma geladeira nas costas para agradar a uma antiga paixão que trabalhava na casa vizinha à do juiz. Embora alegre e sempre a assobiar, naquela manhã seu sorriso se escondeu atrás do susto e do espanto ao ver “ o doutor juiz” – assim o chamava – ali no chão molhado de sangue. Essa imagem iria mudar em definitivo o temperamento de Alencar. Fez questão de avisar o delegado Herculano que chegara “ no máximo dez minutos antes do senhor” e que não tocou em nada, “ nadinha mesmo”. Estranhou apenas que a porta não estivesse trancada. Lembrou-se de avisar que não tinha a chave: ”... tenho não. Tocava a campainha...”.

Alexandre Sansone
(29.05.2020)
O crime da ária
(Capítulo 5)

A novena

Inezita, ótima dona de casa. Fazia tudo com perfeição. Arrumava a casa sozinha, “... faço questão...”, dizia ao marido. Cansado de vê-la tão atarefada, contratou Alencar para fazer a parte pesada da faxina. A princípio não queria. Depois, agradeceu e gostou. Casara muito jovem com Robério que era mais velho. Não tinha certeza se o amava no dia em foi pedida em casamento. Com o passar do tempo acreditaria que sim. Naquela ocasião aceitou. No dia das núpcias, a mãe lhe entregou um broche salpicado de pedras azuis que passava de mãe para filha há gerações. Usou. Depois o guardou. Em algum momento especial o usaria novamente. Nesse dia sentiria muita felicidade no coração. Não tivera filhos. Foi avisada por Alencar sobre o terrível assassinato. Depois de se benzer, retirou-se para rezar na igreja pelo falecido, muito amigo de seu marido. Chamou algumas vizinhas para acenderem uma vela em memória do juiz e iniciarem uma novena para Santo Antônio.

O herdeiro

Os quatro amigos surpresos com a notícia de Herculano ficaram sem reação durante alguns minutos. “ Seu herdeiro é o único filho que irá nascer em breve”, sentenciou o delegado Herculano. Desconheciam o amor secreto do amigo. Por isso o espanto. Jamais tinha falado a esse respeito. Eleonora e Beatriz alegaram que provavelmente não fosse verdadeiro o testamento. Há muitas formas de se falsificar um documento, alegaram Feliciano e Robério. Como será possível reconhecer a paternidade? Sim. DNA. Mas nada se sabe a respeito desse relacionamento. Quem será? Quando se apresentará perante a Justiça? O delegado relatou que todos os detalhes estavam discriminados no documento, legalmente registrado. A mãe apareceria com a criança no momento determinado pelo novo juiz.

Alexandre Sansone
(29.05.2020)

O crime da ária
(Capítulo 6)

A retomada

No dia seguinte foram retomadas com mais ênfase as investigações. Era necessário encontrar o assassino o mais rapidamente possível e bem antes da data fixada no testamento. Para o delegado o principal suspeito estava no grupo de amigos. Foram os últimos a estar com a vítima no dia do crime. Testemunhas confirmaram que os cinco estiverem no bar naquela noite. Urgia averiguar o comportamento de cada um.

A reunião

Mais uma vez reunidos, os quatro demonstravam constrangimento. Afinal era a casa do agora ausente quinto amigo. Por ordem policial a porta estava aberta. Para surpresa de Robério, Inezita lá estava. O delegado pedira que preparasse um lanche bem gostoso, como só ela fazia todo ano no dia de Santo Antônio. Olhou com desdém para a doceira Eleonora. Fora sem avisar o marido. Não sabia que o encontraria ali. Antes que o delegado chegasse oraram. Para surpresa deles Alencar bateu na porta e pediu para entrar. Indagaram o que desejava. “Limpar a casa a mando do delegado. ” Nuvem estranha de preocupação invadiu a sala.

A acusação

Durante semanas Herculano pesquisou e interrogou prováveis envolvidos. Ouviu testemunhas, anexou detalhes importantes e chegou a uma conclusão. Não restavam dúvidas. Caso reunisse aquele grupo encontraria o assassino. Talvez tivessem uma surpresa. Inclusive ele. Entrou na casa do juiz morto acompanhado do assistente Lucas, que se postou ao lado da grande estante repleta de livros. Ligou o som. Bach e sua ária invadiram o ambiente. Ordenou que Alencar fosse até a delegacia buscar um pacote que esquecera em cima da mesa. Avisou para tomar muito cuidado. Era pesado. Em seguida passou a chave na porta. Pediu para que ao retornar, tocasse a campainha. Mandou Lucas tudo anotar. Um de vocês é o assassino. Interrogações gerais aliadas a uma série de impropérios invadiu a sala. Não deu atenção. Iniciou os argumentos.
Alexandre Sansone
(29.05.2020)
O crime da ária
(Capítulo 7)

Robério

Robério devia muito dinheiro ao juiz. Era fruto de uma série de empréstimos infindáveis. Não tinha dinheiro e nem crédito para saldar seus compromissos. Isso o preocupava muito. Afinal agora estava aposentado e precisava viajar para salvar seu casamento. A morte de Adamastor engenhosamente arquitetada seria propícia solução. O professor, irritado, levantou-se e indignado postou-se em pé ao lado da grande janela.

Eleonora

O delegado dirigiu-se a Eleonora que estava sentada na poltrona azul em frente da cristaleira. Olhava firmemente para a autoridade que conhecia há tempo. Nada temia. Confiava na discrição de Herculano. Seu amor secreto, não correspondido e desprezado por Adamastor estava livre de quaisquer manifestações ou gracejos. Todos conheciam o lado mulherengo do juiz, notadamente por belos rostos femininos. Não era o seu caso. O delegado friamente contou a indiferença que a fazia sofrer cada vez mais. A mágoa que sentia poderia ser o gatilho para uma vingança. Eleonora manteve-se impassível.

Feliciano

Feliciano encostado na parede que dividia as duas salas - a de jantar e a de visitas - demonstrava apreensão. Sabia que os presentes, amigos desde o colégio, não o veriam mais como tímido e calado companheiro. Por vezes raivoso, se preciso fosse. Desde que avistou o delegado tivera consciência de que seu rancor escondido há muito viria à tona de uma só vez. Afinal somente era requisitado pelo juiz, agora vítima, apenas para resolver problemas contábeis quase que simplórios. Jamais fora entregue a ele um grande caso de complicações financeiras. Sua capacidade profissional era um tanto quanto menosprezada por Adamastor.

Beatriz

Herculano de maneira um tanto irônica dirigiu-se a Beatriz. Estava mais linda naquele dia tão especial. Caso o juiz vivo e ali presente, naquele instante teria arrebatado um longo beijo naqueles lábios de carmim. “Quieto! ” Pensou o delegado. Foi direto ao romance que os dois mantiveram às escondidas durante longo período. Sabia que o sonho de Beatriz se resumia em se casar com Adamastor. Sonhava até com filhos. Tudo em vão. Ao perceber tais desejos, o juiz zarpou para outra aventura. Havia colocado um fim naquela. Alexandre Sansone (29.05.2020)

O crime da ária
(Capítulo 8)


A descoberta

Naquele momento em que penetrava na sala um gostoso aroma de café, ouviu-se um estrondo. Foram até a cozinha e encontram Inezita caída no chão juntamente com as xícaras. Disse que tivera uma tontura. Só isso. Desculpou-se. Aprumou-se ajeitando o vestido largo e deixando à mostra uma pequena e saliente barriga. Nervosa, disse que engordara. “Parece gravidez! ”, alguém exclamou. Empurrou quem estava a segurá-la e tentou sair da casa. Não pôde. Foi impedida pelo delegado. Robério estava pálido e olhou para os amigos. Sabiam que ele e Inezita dormiam em quartos separados e não se amavam há anos.

A pedra azul

Delegado Herculano manteve-se impassível Ouvia-se a ária de Bach que era tocada no dia em o juiz morrera. Inezita aos prantos implorou para que desligasse aquilo. Sentou-se no sofá. Suava e estava ofegante. Recebeu da mão do delegado a pedra azul por ele encontrada no chão perto do cadáver. Disse-lhe que pertencia ao broche que portava na cola do vestido. Olharam. Era. Horror triste dominou os semblantes de todos. ” Batem fortemente na porta! ”, alguém avisou. Herculano rodou duas vezes a chave na fechadura e deixou entrar Alencar e o pacote. Indagou por qual motivo não tocara a campainha. “Não tem”, respondeu o faxineiro espantado com sua contradição. Entregou o pacote. Abra, ordenou o delegado. Tentou fugir. Foi impedido. Era um pequeno tronco dentro de um saco plástico. A arma do crime, com as digitais de Alencar.

A revelação

Para a autoridade o crime da ária estava esclarecido. Beatriz pediu a palavra e lembrou que havia o testamento. Algo sério teria de ser explicado. Provavelmente haveria uma cúmplice. Inezita refazendo-se disse aos gritos que o herdeiro estava em seu ventre. Jamais tiraria a vida do pai de seu único filho. Silêncio. Beatriz chorando e pedindo perdão ao amado que morrera revelou que Adamastor era infértil. Tinha o comprovante. Antes do término do romance tentaram ter um filho. Fizeram exames, mas o juiz desistiu e jamais quis saber o resultado. Ela o guardara com carinho e tristeza.
Alexandre Sansone (29.05.2020)

O crime da ária

(Capítulo 9)

O crime

No auge do desespero, Inezita perdeu o controle e revelou ser Alencar o pai de seu filho. Tinham combinado e premeditado o assassinato. Antes do nascimento iria se separar de Robério. Viveria seu amor pelo faxineiro com muita fartura. Odiava ter casado com “ aquele ali”, apontando para seu marido. Sabia que sua presença agradava ao juiz e disso se aproveitou. Passarem a ter encontros amorosos. Retornou para comemorar o futuro nascimento. Jamais pensou que o juiz fosse assumir o relacionamento. Não queria isso nunca. Para ela, seria traição a Alencar. Com muito jeito induziu Adamastor a proteger o futuro de seu filho. Sabia do testamento. Por isso chamou Alencar, seu amante, para participar da farsa e executar o “ que era preciso ser feito”. “Nosso amor é belo”, sorriu olhando para Alencar

A ária da quarta corda ainda tocava no momento em que todos se retiraram. O crime da ária estava definitivamente esclarecido.

Alexandre Sansone
(29.05.2020)





 
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Sansone
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