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Loucura

 
Ele estava a caminho de seu ateliê quando a viu sentada no ponto.

Não conseguia tirar seu rosto da cabeça. Nem a lembrança do prazo, cada vez mais próximo, nem a pilha de contas para pagar que só se acumulavam, nem mesmo o estado crítico em que estava sua reputação entre os seus era capaz de fazê-lo focar.
Quando todas as esperanças de tirar seu rosto da cabeça a fim de recuperar a concentração já haviam se esvaído, aliviou seu desejo mais carnal retratando-a de todas as maneiras que podia.
Ora ela era uma lady com vestidos longos e cabelos pomposos à frente de um jardim impecável, hora uma camponesa sentada em um barco repleto de flores. Hora era pintada em óleo, hora em aquarela. Conforme expandia sua nova coleção, mais se dedicava em reproduzir exatamente a imagem que tinha em sua mente. A partir de um momento, os jardins não eram mais tão bem cuidados e as flores não tinham tantos detalhes. Todavia, ela ganhava cada vez mais vida.
No primeiro dia, dormiu sentado com o pincel na mão. No segundo dia, com exceção da única refeição que fez, levantou-se apenas para ir ao banheiro. Já no terceiro dia, não sentia mais fome. A partir da próxima semana nem o cheiro de seus dejetos o incomodava mais.
Com o passar do tempo, as ligações de seu contratante e as contas que formavam pilhas no hall de entrada eram, apenas, distantes preocupações que já não tinham mais espaço.
Quando teve certeza que um retrato e sua última pintura seriam indistinguíveis, tamanha era a confiança em ter reproduzido perfeitamente aquele rosto vivo em sua memória, reproduzi-la se tornou algo fútil, uma ação muito superficial para aplacar sua paixão lacerante. Entretanto, a mente de nosso artista já estava cega para a realidade. Assim o problema em sua obra passou despercebido.
Enfiou os melhores exemplares embaixo do braço e saiu a sua procura. Nada mais importava a não ser mostrar a ela os frutos de sua paixão descabida.
Foi ao ponto em que havia visto sua amada pela última vez e lá ficou sentado, imóvel, esperando. Conforme o tempo andava, uma camada de poeira cada vez mais grossa cobria sua pele. A partir de um dia passou a virar apoio para bolsas e sacolas, depois era a diversão das crianças que o cutucavam com varetas e arremessavam pedras com o intuito de causar qualquer reação naquele homem mal cheiroso e desgrenhado, com barba e cabelos dignos de um náufrago.
Quando já não se lembrava mais o motivo de sua tão longa espera, continuou ávido em seu martírio. Quando as esperanças se esvaíram, contou com sua obstinação para se manter firme.
Contudo, o tempo nada perdoa. Da mesma forma que suas roupas puíam e as pinturas se desgastavam, a lancinante paixão se atenuou até não ser mais do que uma leve brasa que não despertaria interesse do mais desesperado em uma noite de frio. Dessa forma, quando finalmente a viu, o que sentiu não o surpreendeu nenhum pouco, sabia que finalmente havia chegado sua hora. Aliviado entregou seus desenhos a sua antiga musa e ali mesmo caiu, morto, prostrado na rua.
Atônita, a moça tentou ajudá-lo e até pediu socorro, mas já era muito tarde. Nosso artista teve o privilégio de escolher o momento de sua morte.

Rosa chegou em casa ainda tremendo, mal havia retornado de sua longa viagem quando os acontecimentos daquela manhã mudaram completamente seu dia. Entrou na cozinha, encheu um copo d'água, com a própria mão pegou um punhado de açúcar no pote ao lado da cafeteira, jogou no copo e bebeu de uma só golada.
Um pouco mais calma, sentou a mesa e começou a olhar o que lhe havia sido entregue. Primeiro olhou todos de uma vez. Depois analisou cada um com muita calma, tendo medo de deixar algo passar. Mandou foto para alguns amigos, pediu ajuda a familiares, até mesmo tentou usar a pesquisa por imagens do google, a fim de chegar a um resultado conclusivo.
Porém, mesmo depois de esgotadas todas as possibilidades teve que se resignar perante ao mistério. Ainda não tinha entendido o motivo daquele desgrenhado e fedido mendigo ter dado a ela um monte de pinturas de várias garotas que até se pareciam entre si, mas que claramente não tinham nada a ver com ela.

 
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jowjow
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Enviado por Tópico
GabrielaMaria
Publicado: 05/01/2023 21:52  Atualizado: 05/01/2023 21:52
Membro de honra
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 Re: Loucura
Adoro, amei espero que continue.
No final ele já sonhava com uma mulher que não era real, perdida no tempo.
Abraços!


Enviado por Tópico
Alemtagus
Publicado: 06/01/2023 12:17  Atualizado: 06/01/2023 12:17
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 Re: Loucura
Dá vontade de perguntar qual foi a "hora" em que tudo isto aconteceu?
"Hora"? Qual o significado desta expressão?
Pergunto porque gosto de aprender coisas novas.



Enviado por Tópico
GabrielaMaria
Publicado: 06/01/2023 12:55  Atualizado: 06/01/2023 12:55
Membro de honra
Usuário desde: 04/09/2022
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 Re: Loucura
.

Não é uma sugestão de mudança, mas agora fiquei imaginando que seria de tarde e era a hora de ir para casa depois do horário, a estação seria numa chuva de verão que apesar de quente havia relâmpagos, ele podia morar perto e cada dia havia uma mudança e no final não se parece com ela ou também um amor platônico e só podia imaginar uma parte do rosto para o outro não desconfiar e em mais suposições essa nem foi uma história real, ela foi inventada muito tempo depois de um quadro.
Abraços!


Enviado por Tópico
Helio.Valim
Publicado: 06/01/2023 14:30  Atualizado: 06/01/2023 14:30
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 Re: Loucura
Parabéns, Jowjow.
Texto instigante!
Um abraço


Enviado por Tópico
Aline Lima
Publicado: 06/01/2023 17:58  Atualizado: 06/01/2023 17:58
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 Re: Loucura
Texto bom é assim... A gente começa a ler e quer saber o desenrolar , tem curiosidade pelo final.
Gostei bastante, parabéns.