ninguém as vê
ninguém as ouve
as que aguento
às vezes parecem médicos
no intervalo de um qualquer congresso
a gritar ao mesmo tempo
palavras terminadas em ose, ite e oma
autêntica radiografia barulhenta
tirada por radialistas
mas enfim é trabalho deles
talvez gritar seja método de desopilar
horas a fio concentrados no bisturi
e de decorar o simpósio TERApéutico
maior que as enãolí-adas, as odinãossei-as
ou as divinas comédias onde não fui gargalhar
outras parecem professores
na pausa do café
a gritar para os alunos no fundo da chávena
megafone de estremecer borras que não fizeram tpc's
nada a ver com maus professores
apenas a ressonância
de aturarem problemas que começam em outras casas
nem tão mau
quando parecem feirantes
sempre soltam uns pregões engraçados
oh mor venha cá, veja como é fresquinha
oh querido chegue aqui, olhe que é macia
oh beleza venha, olhe que está lavadinha
oh amorzinho, venha provar que é docinha
pena é que sejam todas ao mesmo tempo
das piores são aquelas que parecem políticos
sentados num descampado par(a)lamentar
em forma de tacho anfiteatro de meias-luas amuadas
a discutir a lei de bases do parece que fazemos tudo
mas realmente não fazemos nada
tirando assinar papeis de consultadoria
outras parecem catequistas
daquelas de rezar a ver quem canta mais alto
exactamente aquele tipo de cântico
que faz perder a fé
e deixar de ir à missa pô-la em prática
ou que dá vontade ao Cristo de fugir da cruz
e ir ser estrela numa cerimónia rave campal
ah mas nem sempre é gritaria ou algazarra que incomode
às vezes parecem a criançada nos intervalos da escola
aos pinotes, aos saltos de mosca
a levantar saias de meninas
a jogar futebol com papéis dos rascunhos amassados
ou de férias todos juntos na rua
nas apanhadas, na macaca, no mata-mata
a nicar os piões, a tocar campainhas de fugir
partir vidros das vizinhas velhotas rezingonas
com as bolas de capão
os rolamentos duma tábua a guinchar na calçada
a andar à vez na bicicleta dividida por dez
e discutir que é o seguinte
a enfiar duas varas no pneu velho
e roncar como se fossem a duzentos à hora
velhas vozes do tempo...
também há das que gritam sem ferir
parecem borboletas de voar na barriga
aceleram as batidas
pum pum, pum pum, pum pum, pum pum
fazem suar
são de amar até dar gozo
aiiii, uiiiiii, siiiiimmmm, oh meu Deus
bem... algumas ferem
mas apenas as que não eram para continuar a ouvir
tapei-lhes a boca
mas as que gosto mesmo
não dispenso
as que consigo verdadeiramente ouvir
aquelas que me gritam silêncios
fazem-me parar, sem questionar
e quanto mais caladas
mais consigo aprofundar-me e percebê-las
16-09-2025