Prosas Poéticas : 

O FRUTO DA MINHA LIBERDADE

 
O FRUTO DA MINHA LIBERDADE
(A infância de Manuel Lucas)

Nasci na casa rústica do meu avô materno, situada numa pacata aldeia gaiense virada para o mar: Uma fortaleza de paredes largas, em pedra de granito, revestidas com saibro caiado. No telhado distinguia-se uma longa e rectangular chaminé, erguida como uma bandeira, que vincava o tipo de construção de toda a região norte de Portugal. Ela servia-me de referência, nas tardes frias, quando regressava da escola; podendo ver bem ao longe o seu fumo em movimento oblíquo, fazendo-me crescer o desejo de chegar cedo a casa e aproximar-me da lareira que aqueceria o meu corpo gelado.
Na cozinha, existia uma triangular chaminé colada à parede, amorosamente ornamentada com renda feita em papel de jornal. No chão, uma extensa pedra lisa servia de lareira, onde se colocavam as achas e os troncos de árvore que ardiam e fumegavam, curando os presuntos, salpicões e chouriços, pendurados e escondidos no interior da chaminé. Por cima das achas ardentes, estavam as panelas de ferro de três pés, com água a ferver, das quais, uma cozia os legumes da bem confeccionada e gostosa sopa. Quando as noites eram longas e frias, a lareira era o lugar de encontro para os contos do meu avô, de meu pai ou da minha mãe. Alguns eram relatos de ladrões que de noite assaltavam os galinheiros. Motivo para não adormecer tranquilamente e ter sonhos relacionados como os do Zé do Telhado.
Nos dias em que eu não tinha escola, pelo meio da manhã quente, me levantava, cuidava de mim, porque minha mãe, muito cedo se ausentava para os seus trabalhos domésticos, num campo contíguo ao da sua casa. Meu corpo franzino era vestido com uma camisa de manga curta e calção preso por uma fita de pano que servia de suspensório.
Ainda com os meus 8 anos, estava eu plantado à entrada da cozinha, a observar o exterior e apreciar a minha liberdade, como um pássaro dentro da gaiola, que por sorte tinha a porta aberta. À minha frente estava o galinheiro, no meu lado esquerdo o aido dos bois, e a seguir a pocilga, de onde o odor a estrume de vaca subia pelas fossas nasais, provocando-me um sentimento animalesco.
Me eis, na minha meninice, feliz e contente, preparado para a aventura; portador de um corpo esquelético, com uma fisga pendurada no bolso, eu era um super “Tarzan” na minha angélica imaginação. Foi então, com toda a energia de um cabrito acabado de nascer, que corri, pulei, galopei ao longo de carreiros, que se fazem caminhando, através do campo e pinhal do meu avô, até encontrar a presa de água da minha tia.
Ali já cansado, na parte mais alta da encosta, lírico me sentei em cima de uma pedra filosofal, a saborear a minha liberdade e contemplar toda aquela natureza envolvente….!! - Minha mãe, na minha ausência, raramente sabia aonde eu estava, pensando que eu não corria perigo, apesar de por ali subsistirem cobras que se dizia serem venenosas - O lençol de água que estava à minha frente estendido, tinha uma origem: Na parte mais alta do lameiro, uma força da água que queria nascer, rasgou a terra e lhe originou uma greta. De forma que a pude observar brotando, fresca e cristalina, que à luz do dia se precipitava rego abaixo, serpenteando, alegre e fugidia, cujo seu destino era desaguar na presa e se transfigurar no seu leito universal.
A presa de água estava ornamentada com agriões, onde se escondiam as rãs coaxando e para onde os dragões com asas de seda faziam as suas aterragens. Em cada extremidade da presa, um rego de água se alongava pelos campos de cultivo. Nos quais, pequenos peixes, em forma de colher germinavam e, onde se escondiam algumas enguias e raras cobras de água.
Num daqueles dias em que o meu avô, meu pai e eu, passeávamos pelo carreiro do rego de água, demos conta de uma esguia cobra parada à tona da água. Então, meu avô que já a tinha visto, vinha prevenido com uma garrafa que a deu ao meu pai, para que ele entrasse no rego e, a colocasse em frente da cabeça da cobra. Entretanto, meu avô com um pau agitava a água perto da sua cauda. A bicha assustada esgueirou-se no buraco que encontrou mais próximo, que por sorte foi o do gargalo da garrafa. Ali alojada, com a garrafa já arrolhada, meus olhos redondos, plenos de espanto viram meu pai colar seu dedo indicador no vidro que com uma certa cobardia ficava a ver se a cobra abria a boca para o morder.
A minha imaginação me levou a recordar aquela tarde que se fazia cinzenta, por onde rompiam raios de luz e emergia um arco-íris de cores fascinantes, desenhando uma auréola sobre dois pinhais geminados. Na minha inocência, atravessei todo o pinhal à procura do lugar a onde a ponta do arco-íris ia cair e fazer uma bola de fogo. Quando acabei de atravessar todo o pinhal, tive uma emocionante desilusão. A ponta do arco-íris se tinha afastado para além de um lugar ainda mais longe. Fui traído pela ilusão e como não a alcançava, desisti de a perseguir…!!!
Na minha retaguarda estava o pinhal da minha avó paterna e à minha frente, o da minha tia; no meio existia um campo de cultivo de milho, que de quando em vez, uma pega, voando alto, pousava num dos mais vistosos pinheiros que por ali circundavam. Motivo, para ficar a pensar que ali estaria o seu ninho... O meu posto de observação era o ideal para que, com alguma inveja, eu pudesse, cá em baixo, acenar, deliciar-me, fascinar-me, com a liberdade e a deliciosa forma de voar ao sabor do vento, das poupas, dos cucos, dos corvos, das pegas e das andorinhas que por ali predominavam…!
Sobre o meu lado esquerdo, também existia o campo de cultivo do meu avô que me fez recordar os tempos em que eu endireitava com firmeza a charrua, arrastada pela força do boi, rasgando a terra, deixando rego aberto por onde eu caminhava com os pés descalços. A lembrança, fez-me sentir o odor da terra da lavrada e imaginar todos bichinhos de habitação subterrânea, violentamente desabitados, postos a deriva e à mercê das aves rapinas que esperavam a melhor oportunidade para o seu festim.
Tempos houveram, na minha plena libertinagem, em que nos pinhais, eu e o cão da minha avó brincávamos aos achados. O “fariseu”, assim se chamava, era de um excelente faro e, com ele procurava as luras dos coelhos. O “fariseu” estava, pelo seu triste destino, dia e noite preso a um cadeado e, sempre que me avistava no fundo pinhal, agitava o seu rabo esticado no ar, a dar sinais de alegria, porque sabia que o ia libertar. Eu e ele tínhamos uma amizade comprometida, éramos inseparáveis. Quando, propositadamente, me escondia e ele dava conta da minha ausência, se movimentava loucamente à minha procura. Mas, pelo seu apurado faro, rapidamente encontrava o meu esconderijo e ambos festejávamos o êxito.
Também, no lugar mais distante, pude avistar o arvoredo, onde numa tarde cinzenta, uma tragédia se abateu sobre uma criatura que pelo seu canto dava encanto a tudo que parecia estar triste. Nos tempos da minha aventura de caçador, cuja arma era uma fisga, procurava pássaros pousados na árvore para lhes fazer pontaria e por vezes acertava em cheio na vítima. Mas, num triste dia aconteceu que vi um pássaro no meio de um arvoredo, bem escondido, onde apenas se via o peito. Motivo suficiente para me fazer crescer a vontade de lhe fizer pontaria; com a fisga armada, repuxei o elástico e desprendi a pedra que lhe foi acertar no seu peito. Caiu, e no chão estrebuchou; quando peguei nele, já a sua cabeça se inclinava; ainda quente, morria estendido na palma da minha mão assassina. Fiquei estarrecido, transtornado, magoado…! Em contra-natura acabava de tirar a vida a um pintassilgo, que muitas vezes me encantava com a melodia do seu cântico. A sua linda penugem tricolor, nada lhe valera, para que evitasse uma tal tragédia. Com a vontade de crescer, vencer na vida, assim fora atraiçoado pelo meu instinto de homem caçador. Malgrado o acontecido, com todo o jeito e, como se de veludo estivesse a transportar, levava aquela pequeníssima criatura até ao jardim da minha mãe. Ali, abri uma sepultura no meio dos cosmos, por ser a flor mais procurada pelos pintassilgos, por causa das suas apreciadas sementes. Enterrei-o e, com dois paus, fiz uma cruz que sobre seu corpo ficou espetada, em sinal do meu arrependimento.

Mlucas

 
Autor
Manuel Lucas
 
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