Contos : 

ENTRE A VIDA E O TEMPO ( II)

 
ENTRE A VIDA E O TEMPO (II)

Levanta-se cedo e cuida de cumprir com rigor a decisão tomada na véspera, começando pela casa do Salgueiro. Há uma melancolia dentro de si pela ausência dos irmãos, mas que espera compensada pelo abraço aos amigos. Chegado ao Salgueiro e dirigindo-se a uma senhora de meia idade que está à entrada da casa pergunta-lhe pelo Quinzinho e pelo Zezinho, que desejava falar com eles. A resposta sente-a quase avassaladora: - Oh meu senhor, ambos eram meus tios e já morreram há muito, assim como a minha mãe e minha tia. Manuel Pinto da Fonseca fica como que petrificado, após o que percorre com o olhar os recantos daquele lugar, esforçando-se por estendê-lo a todo o alcantilado da aldeia.Voltando-se de novo para a dita senhora num tom que transparecia resquícios de algum nervosismo, pergunta-lhe pelo Zé do Douro das Casas, que lhe merece idêntica e patética informação. É como se nesta altura se lhe acordasse a inteligência e a lucidez: - claro , como é que eu, nos meus noventa anos não ganhei já consciência de que é tempo razoável de um homem já não andar por cá.? Que tenho eu que estranhar que os meus irmãos tenham partido já e que os meus amigos pela mesma ordem de razões os não encontre também?
- Só me resta tomar uma decisão: Terei que me resolver se regresso à minha Valparaíso onde repousam Mercedes e o meu amantíssimo Javier que nos deixou aos dezoito anos, ou, apesar de tudo, se me fico por este meu torrão natal. Tudo o que pudesse dizer a este respeito seria aquilo que sinto neste momento: saudades, uma saudade que se acentua a cada instante que passa por esse recanto da América do Sul que hoje é dono inegável de um pedaço do meu coração. É que à minha Vila Chã, pelo que concluo eu vim buscar uma nostalgia capaz de por termo aos meus dias. Espero que a juventude lá em casa me recobre um pouco o ânimo.
Ao cair da tarde do quarto dia desta estadia em Vila Chã, decerto como natural resultado de contactos que teve nas redondezas com pessoas que, se o não conheciam, conheciam a sua família, Manuel Fonseca sentia-se um tanto recomposto de ânimo. Sobretudo evidencia-se a conversa que teve com um cavalheiro da casa da eira, neto de um seu velho amigo, e que é professor de Belas artes na cidade do Porto. Estimulante para ele foi saber que esta cidade que afinal não conhece, reúne excelentes condições para trabalhos pictóricos, além de que o dito professor se disponibilizou para uma visita à Baixa e zona ribeirinha da cidade. Este diálogo teve o condão de equilibrar emocionalmente o espírito de Manuel da Fonseca. Ao aproximar-se de casa na hora de jantar sentou-se numa saliência de um grande penedo que fica junto da eira, de que ele guarda velhas recordações, nomeadamente do tempo em que, criança, se interrogava sobre o nascimento daquele penedo. Alguns minutos decorridos, vê descer a barroca, cambaleando e apoiada numa bengala, uma velha mulher que não imagina quem possa ser. A proximidade deu-lhe entretanto ares de algum remoto conhecimento. Por sua vez ela ao passar saudou-o com naturalidade, para logo estacar o passo e voltando-se para ele com acentuado tremor na voz lhe perguntar: o senhor não é o Manuel da Fonseca, que foi daqui há muitos anos para o Brasil? – Ele respondeu afirmativamente e com acentuada curiosidade e ela acrescentou: eu sou a Lurdes dos Moinhos. Lembra-se agora de mim? – Ele correspondeu com um vago mas significativo aceno de cabeça, mas bloqueado para emitir qualquer comentário enquanto ela seguiu o seu caminho. Ele ficou a olhar aquele arremedo de mulher. – Arremedo não, aquela mulher, aquela delicia de mulher (para ser justo comigo mesmo)- . Quando ela dobrava além a esquina da casa o seu pensamento estava assim regressado no tempo, viu finalmente alguém da sua geração. Mas sobretudo, impressionado pelo desbaste que o tempo faz numa pessoa, que fora a então jovem e linda moça que trazia num desconcerto os rapazes do seu tempo. Como se recorda! Moça que há quase oitenta anos pela primeira vez, afogueado, abraçou e descontroladamente beijou, dias antes da sua partida para o Brasil. Testemunhas desse diálogo amoroso e frenético, só a cigarra com o seu canto único, e a lua a espreitar por detrás do Cerro da Corva Chã. Este quase encontro teve um efeito benéfico no seu ânimo. Não sabe porquê, mas ajudou-o a analisar positivamente a vida e a descortinar nela o sentido. Deixou-se adormecer encostado ao penedo e quando dez minutos decorridos o foram procurar – eram horas de jantar – Armando Pinto da Fonseca estava caído inanimado sobre um rebordo do ancestral penedo. O charuto a extinguir-se no chão, ternurenta solidariedade com o dono.

Antonius

 
Autor
luciusantonius
 
Texto
Data
Leituras
755
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.