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VARGAS NETTO

 
Paulo Monteiro

Manuel do Nascimento Vargas Netto é um dos mais conhecidos poetas gauchescos em Língua Portuguesa. Entrou para a história desse gênero ou subgênero literário com dois livros. Tropilha Crioula, versos regionais, publicados pela Editora Globo, em 1925, e Gado Xucro, versos regionais, também dados a lume pela mesma editora porto-alegrense, no ano de 1929. A repercussão dos livros foi grande. Sucederam-se várias reedições. A partir de 1955 passaram a circular reunidos num único volume.
Vargas Netto, nome literário, formado em Direito, foi poeta e jornalista. Nasceu em São Borja, a 30 de janeiro de 1903, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1977. Também cronista esportivo, deixou outras obras publicadas, mas fixou-se no cânone da gauchesca através daqueles dois livros. É reconhecido pela Estância da Poesia Crioula, espécie de academia rio-grandense de letras dos poetas gauchescos, como um dos precursores desse tipo de poesia, ainda em princípios do Século XX.
Darcy Azambuja, clássico da gauchesca em prosa, em Nota Preliminar que escreveu para a primeira edição (conjunta) de Tropilha Crioula e Gado Xucro, conta como conheceu o poeta, por volta de 1925 e 1926. Acadêmicos de Direito, moravam juntos no mesmo quarto de pensão. O Estado vivia um momento de efervescência literária.
Vargas Netto escrevia os poemas sentado numa cadeirinha baixa, usando um caixão como escrivaninha. Lembra um desses poemas, Chimarrão, que integraria Gado Xucro:
Chimarrão!
Desculpa boa pra eu apertar os dedos da chinoca,
quando, horas a fio,
ela me alcança esse amargo, que é tão doce!...

Companheiro do rancho e do crioulo,
esquecimento e prazer!
Vício que é remédio do campeiro...
amargo que derrete as amarguras...
meu amigo também!...

Ele e a canha,
quando a solidão fez o gaiteiro,
inventaram o índio vago e o desafio.
Hoje é o melhor protetor dos namoros do pago...
Quanto beijo transmite sem querer!...

Quando ela toma um gole antes de mim,
e deixa a boca como uma flor colorada
na haste branca da bomba
e fica assim... sem dizer nada...
Depois, que mate bom!...

Cada trago teu que eu vou sorvendo,
parece que me cai na alma,
me lavando as mágoas,
me adoçando as penas,
mate amargo!
À época em que esses versos teriam sido escritos, os galpões literários rio-grandenses se agitavam com polêmicas entre “passadistas” e “modernistas”. Do Uruguai chegava a experiência do nativismo, procurando revitalizar a matriz gauchesca da poesia, renovando a temática e incorporando as conquistas das vanguardas européias, entre as quais o verso livre. Vargas Netto começa a recolher essas inovações, ao mesmo tempo em que escreve sonetos à maneira parnasiana, como Gaúcho, dedicado a Eduardo Guimarães, um dos poetas gaúchos mais representativos de todos os tempos:
Perambulando pelo pampa enorme,
Para ânsias de amplidão satisfazê-las,
Vive a correr, no seu corcel, conforme,
O pampeiro das lendas e novelas...

O gaúcho, por entre a massa informe
Dessas campinas, verdes, amarelas,
Se a noite o pega, no deserto dorme
Coberto pelo poncho das estrelas...

É portador dum ar de quem domina.
Seu sangue forte vibra e rumoreja,
Ao troar da pistola ou da clavina.

Quando à morte, a garrucha aperta e beija,
E morre revivendo na retina
A epopéia crioula da peleja.
Vemos, nesse poema, a inovação nativista, ao abandonar estrutura métrica (redondilha maior) e estrófica (o mesmo número de versos em casa estrofe), quebrando a tradição da gauchesca. A tradição formal, porém, é mantida em alguns poemas desse primeiro livro, como em Cousa Velha, dedicado a Flores Pinto:
Você pensa que é mentira,
Mas eu le digo que não,
Ouvindo falar nos pagos
Sinto dor no coração.

Diz que não chora o gaúcho,
Pois eu le garanto agora,
Fale dos pagos distantes
Vamos ver se ele não chora.

Quando me lembro, la pucha,
Da china que deixei lá,
Sinto um repucho por dentro
Que nem sei o que será.

É como um tirão “de atrás”,
Quando se pega a carreira,
Dum sovéu de três ramais
Atado numa tronqueira.

Não há gaúcho mais qüera
Que não conheça o tirão,
Porque essa história é tão velha
Que tem a idade do chão.

Pode ser gavião de fama
Que sente, embora não queira,
Pois o sovéu é a saudade
E o coração é a tronqueira.
É sabido que a gauchesca foi uma criação de intelectuais urbanos (e militares) durante as guerras platinas do primeiro quarto do Século XIX. Incorporaram à primitiva literatura popular platina, dos payadores, um nacionalismo belicoso e o linguajar dos homens da Pampa.
A poesia popular (mais precisamente folclórica) do Rio Grande do Sul é essencialmente lírica e constituída de quadras soltas. Inconsciente ou conscientemente Vargas Netto aproveita essa característica do folclore sul-rio-grandense que, posteriormente, seria destacada por Augusto Meyer, em seu Cancioneiro Gaúcho. Conserva algumas características da velha gauchesca, entre as quais uma valentia movida a cachaça e rapto de mulheres, além do emprego da onomatopéia, como num soneto dedicado a Rubens de Barcellos, e intitulado No Bochincho:
Huâi-huin, huâi-huin, huâi-huin, huâ-huaia-hun...
O gaiteiro abre a gaita no bochincho...
Por gostar de fandango foi que eu vim,
Mas ’stá apertado como queijo em cincho....

Gaitero, toca um “chóte” só pra mim,
Pois ninguém “junta” no rincão que eu rincho!
Quero ver se aqui tem algum micuim
Que queira se meter como capincho...

Veio o “dono” com parte de tetéia,
Já le traquei meu mango na idéia,
Pois pra me esparramar foi mesmo um upa!

Dei um talho de adaga no gaitero,
Atravanquei um coice no candiero
E levei uma china na garupa...
Esse soneto, publicado originalmente em 1925, influenciaria outros poetas, como Jayme Caetano Braun, com o poema do mesmo título, inserido em Bota de Garrão, de 1979. Essa influência é muito mais visível em Definição de Bochincho, que constitui a quarta faixa do CD01, Payada, Memória & Tempo, com improvisos do autor de Galpão de Estância. Repete-se, assim, uma prática da gauchesca (e de toda a literatura popular): a recorrência a temas desenvolvidos por poetas mais antigos.


poeta brasileiro da geração do mimeógrafo pertence a diversas entidades culturais do brasil e do exterior estudioso de história é autor de centenas de artigos e ensaios sobre temas culturais literários e históricos

 
Autor
PAULOMONTEIRO
 
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