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Eu/Eles - 2ª parte

 
E assim, de dia para dia, o meu refúgio nos livros aumentava.

O sorriso do gato de “Alice no País das Maravilhas”, provocava-me um arrepio invulgar…a descida vertiginosa da própria Alice pelo “túnel” do sonho mergulhava-me no pavor do abandono!


E de novo na realidade, minha mãe tentava o suicídio …

Mudámo-nos para "A Terra do Nunca", onde me inscreveram no Ciclo Preparatório. Era uma aluna mediana/ /baixa nas áreas de ciências mas excelente em letras.

Sempre quis ser professora de Línguas e nunca coloquei a hipótese de ter outra profissão. Contava histórias à minha irmã mais nova e às minhas primas; dramatizava…

…exorcizava! Escrevia…escrevia, sem parar.

Continuei a refugiar-me na leitura. À noite tapava os ouvidos com algodão, pedia a minha tia para deixar a minha irmã dormir lá (quando o “ambiente” estava mais pesado). O meu irmão estava a estudar no seminário.

Crescendo, entro na fase “José Mauro de Vasconcelos” (depois de toda a colecção de Enid Blyton com “Os Cinco” e “Os Sete”) com “Meu Pé de Laranja Lima”…; Juan Ramón Jiménez, “Platero e Eu”; John Steinbeck, “Vinhas da Ira”; Agustina Bessa-Luís, “A Sibila”…e tantos outros sempre lendo e relendo poesia.

Às escondidas lia sofregamente, todos os livros que o psicanalista indicava a minha mãe (queria tanto ajudá-la! Seria eu a culpada por ser gorda, estrábica e “bicho do buraco”?...). Recordo-me que o 1º intitulava-se “Tornar-se Pessoa”.

Foi “de férias” seis meses para o Brasil e deixou-me a tomar conta de uma casa, de um pai que a amou até à morte (o que ela sempre pôs em causa e nunca quis sentir), de um irmão e de uma irmã; cozinhava, lavava, arrumava, ia às compras, tratava de tudo (tinha treze anos).

Recordo-me de ter relido “A gata Borralheira” e chorado…

Era uma visita assídua à biblioteca municipal da cidade. Levava os livros para casa e passava noites em claro a lê-los; eram a minha paixão.

Ainda hoje não sabemos se o que a minha mãe tem é esquizofrenia…da boa disposição à bofetada espontânea ou aos gritos dilacerantes ia um passo. Tudo lhe era roubado, mas mais tarde aparecia porque “lá íamos repor”…

Agora, vivo bem comigo, com minha família, com os meus alunos…com os outros. Aprendi muito com os contos, nos livros cujas mensagens “absorvi”! Aprendi a dar, a ouvir, a ajudar…a sonhar, a viver.

E é esta paixão, este “apoio” que sempre tentei incutir nos meus alunos.

No início do ano, para que se sintam capazes, faço no quadro “o poema da turma” onde cada aluno diz uma palavra relacionada com um objecto, tema ou completamente (fez-me lembrar os Haikus) solto e eu escrevo-a/o no quadro; no final, sem fazer grandes alterações, ficam surpreendidos por serem capazes de criar algo tão bonito com tanta facilidade.

Assim como “Madassa” que não sabia escrever, também uma aluna minha do 5º (que vinha sinalizada com graves dificuldades a Língua Portuguesa) ficou deslumbrada no momento em que, em voz alta pronunciei com muito e sincero orgulho”- Marlene, fizeste um poema…e é LINDO!”- Olhou para mim, incrédula, e perguntou ingenuamente:”-Eu?...”,- Como se tal fosse impossível - Ei-lo:

“ A neve cai no Inverno,
Os campos ficam
Branquinhos
Bonecos de neve
Tão leve,
Com seus Fofos
Casaquinhos!”

E esta simples frase? – “ Cai uma folha sobre o luar!”

Quem disse, um dia, à(s) Marlene(s) que ela(s) não tinha(m) imaginação, criatividade…?

Passados alguns dias, esta aluna (fechada em si própria e tímida) teve coragem de, no fim da aula, deixar sair todos os colegas a soluçar dizer-me baixinho:

”- Minha mãe tem cancro e vai ser operada amanhã, mas não queria que dissesse a ninguém! Podemos continuar a ler estas histórias? Fazem-me bem.”
Senti ali a responsabilidade de mais uma “amizade”.

( continua )


Rita

 
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missmarple
 
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Enviado por Tópico
Carlos Ricardo
Publicado: 02/12/2012 22:57  Atualizado: 02/12/2012 22:57
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 Re: Eu 2ª parte
Obrigado por mais este texto. Aguardo com grande expectativa a continuação.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 02/12/2012 23:28  Atualizado: 02/12/2012 23:28
 Re: Eu 2ª parte
eu 1ª e 2ª parte. impressionado com a dissertiva. cumprimento-a