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Comentário a "Dez Sonetos da Guerra na Crimeia (parte um)", de cheiramázedo
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Percurso de leitura nº 10 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Desta vez, destaco um conjunto de sonetos de um heterónimo de Rogério Beça, chamado cheiramázedo, trasmontano do "carai", "fiel a si mesmo" e "mau como as cobras". Adora "discutir gostos" e "ser provocado". Arrisco-me a que responda com um "obrigado mas ninguém lhe perguntou nada!", porém vou arriscar…

Para começo de conversa, tenho de confessar uma certa dificuldade em fazer análise de um texto que vale, em primeiro lugar, pela trágica dimensão social que retrata. O facto de abordar um assunto sensível como a guerra ― ainda para mais, quando é tão próximo de nós, no tempo e no espaço ― pode criar um certo pudor em criticar de forma neutra o texto. Até porque sabemos que a literatura de "intervenção" tem um significado algo pejorativo, já que certas obras que abordam temas como a desigualdade, a injustiça, a opressão… apresentam um claro desequilíbrio entre, por um lado, a força da denúncia e, por outro, a debilidade estética do discurso.

Todavia, se recomendo estes "Dez Sonetos da Guerra na Crimeia", é porque neles vi algo mais do que apenas a militância contra a guerra. Nas linhas seguintes, vou dar uma visão panorâmica destes poemas, esperando que lhes dediquem algum tempo de leitura e reflexão.

O primeiro soneto ― "À mulher e ao filho de Yuri" ― apresenta-nos um nome popular quer na Rússia, quer na Ucrânia, Yuri, o correspondente ao nosso "Jorge". O poema dá-nos a entender uma situação dolorosa, possivelmente de morte, envolvendo a esposa e a criança deste homem ("o sangue deixou-o possesso" e "de mulher e filho no pensamento"). Yuri encarnaria, na minha perspetiva, a figura do herói que luta pela sobrevivência, em paz ou em guerra, que tudo perdeu e a quem só sobrou a loucura para lidar com o vazio. Trata-se do reverso do mito de Pessoa: ao contrário do "nada que é tudo", temos aqui o "tudo [que] era nada".

O segundo soneto ― "Outro Olhar a disparar" ― inclui no título o verbo "disparar", que apresenta um campo semântico diversificado, podendo referir-se obviamente a armamento, mas também, por exemplo, a uma câmara fotográfica ou até a uma forma brusca de responder a alguém. Estes dois últimos significados surgem na primeira quadra, aplicados aos órgãos de comunicação social, que têm duas faces que se opõem. Por um lado, a palavra "alavancas" pode apontar para um lado benigno dos media, que tantas vezes constituem forças impulsionadoras da opinião pública e das instituições políticas, empurrando-as para a ação (neste caso, "contra um dos maiores impérios"). Por outro lado, podem ser apenas mais uma forma de entretenimento, nos intervalos das novelas e do futebol ("alimentam as câmaras", "nada mudam", sobrando apenas a dor postiça de "ficar a ver"). Curioso o adjetivo "rogérios" aplicado a estes versos ― mostrando que o poeta, ironicamente, evita colocar-se numa posição de superioridade em relação aos outros, nomeadamente ao leitor.

O terceiro soneto ― "Reserva Territorial" ― apresenta um título muito expressivo, recorrendo a uma expressão comum da lei do serviço militar, designando o contingente de cidadãos que, não tendo cumprido o serviço efetivo, se mantêm sujeitos a obrigações militares. Aqui, fala-se dos "felizes numa frágil bolha", que se indignam com os horrores da guerra à distância, que se colocam na pele das vítimas, que foram "arrombados do sorrir e do viver". A reação natural é "mostrar os dentes", mas não o "morder". Contudo, as questões "Será uma escolha minha? Tenho escolha?" afastam os moralismos associados a esta posição, embora não afastem o desconforto, a vergonha e a raiva interiores.

O quarto soneto ― "Insubmisso" ― é o momento de "revolta fria, ácida, sublime", característica de cheiramázedo, que não se coíbe de recorrer a uma linguagem antipoética para mostrar a sua indignação e a fidelidade aos seus. O seu lado instintivo, de "animal que perdeu o juízo" e que "ama o crime", pode talvez ser uma reação aos submissos do poema anterior, que baixaram "a cabeça muitas vezes".

O quinto soneto – "Cheque ao Czar" – remete-nos para o universo do jogo de xadrez, metáfora do conflito armado, em que há apenas um rei absoluto, "sem que haja segundo", num "tabuleiro gasto e partido". Interessante a utilização da expressão "de giz", para se referir aos "cavalos, torres, bispos". Se recordarmos que a palavra "giz" está na origem do verbo "gizar" (com o significado de "planificar, arquitetar algo"), talvez se possa interpretar esta referência ao momento dos estrategos de ocasião que pululam pelos media, a ocupar o espaço de (des)informação dedicado no dia anterior aos epidemiologistas, virologistas, bioquímicos, matemáticos...

O sexto soneto – como admite com humildade o autor — vai buscar o seu título a um poema do "colega" do Luso-Poemas Namastibet — "Papoila é nome de guerra" – ao qual junta a ressalva "e eu sou Cravo". A cada uma destas flores está associada uma determinada simbologia. Talvez por uma das suas espécies estar na origem do ópio, ao longo dos séculos, a papoila simbolizou as ideias do sono, do sonho e da morte, aparecendo ligada, por exemplo, aos deuses gregos Morfeu e Nix, respetivamente, do sono e das trevas. Quanto ao cravo, quase não é necessário o esclarecimento – constitui o símbolo maior da revolução portuguesa de abril de 1974. O poema é construído em métrica curta, lembrando por vezes as lengalengas infantis, que iludem por momentos as referências duríssimas à ausência de bens de primeira necessidade entre as vítimas da guerra.

O sétimo soneto – intitulado "KGB" – começa uma ironia glacial: um convite animado e amistoso para as maravilhas de Leste ("venha de lá um sol de Leste [...] um pouco de luz e caridade"). Na estrofe seguinte, o tom bem-disposto dá lugar à dura realidade ("até que nem pedra sobre pedra reste", "guerra e fome, a realidade"). No final, esse convite é endereçado diretamente aos famosos serviços secretos russos, "para acabar com a face de um povo", numa assunção clara das ambições dos invasores da Ucrânia.

O oitavo soneto – "Em Odessa" – traz para o título uma cidade ucraniana que, no momento em que escrevo, tem sido especialmente atingida por ataques das forças russas. Todavia, não são propriamente os confrontos militares o assunto central deste poema, mas sim uma consequência da invasão que dura desde final de fevereiro. A fuga de ucranianos tem sido alvo de tentativas de tráfico de seres humanos, sobretudo mulheres. O ato repugnante de exploração sexual é destacado no poema como uma "vergonha escondida" – característica que não é atribuída apenas aos monstros que praticam a violência, a escravidão e o lenocínio, mas a todos nós ("minha e tua"), que assistimos, impotentes, à putrefação de um mundo que o "eu" – em nosso nome – concebe como uma "cobardia que hoje engulo".

O nono soneto – "Sem solvente" – apresenta os dois componentes necessários a uma solução química, o soluto e o solvente. Em relação ao soluto, parece haver um jogo de palavras com a sonoridade da palavra, que poderia ser decomposta em "" e "luto" – verbo que nos surge nos tercetos, numa espécie de refrão, em que o "eu" assume o combate "com sonetos", uma expressão particularmente ambígua. Quanto à dramática situação descrita nas quadras ("queimaram-se [...] a paz, o amor", "a maternidade, sem bebés a chorar, / é difícil de calar" – uma antítese de grande intensidade), será contra ela que o sujeito poético combate, através dos sonetos? Ou será que ele combate contra o próprio soneto, que não permite transpor nele o tumulto interior que sente? Ambas as interpretações cabem num soneto que, sem solvente, não terá também solução, nas duas aceções que a palavra permite. A vida, entretanto, pela destruição, parece recuar até ao nada – pelo menos, assim interpreto os versos "começaram a vida da frente para trás / de trás para a frente ninguém a traz".

O décimo e último soneto – "o caos perfeito" – é todo escrito em minúsculas, ao contrário dos restantes nove poemas. Caos (com maiúscula) é a designação do primeiro deus do universo, cuja etimologia aponta para um verbo que significa separar. Desse ponto de vista, Caos é o contrário de Eros, a força que nasce da união dos elementos. O poema trabalha estes conceitos através da simbologia dos números. Consideremos o número mil. Para os romanos, tratava-se do número supremo: o M era a última letra a configurar um número. Assim sendo, o novecentos e noventa e nove é a representação da proximidade de restaurarmos a perfeição da nossa essência que, por sermos humanos, é sempre caótica. Falta apenas uma palavra "para que o amor se renove", para reconstituir todas as outras palavras que nos dão a alegria espontânea de uma "graça que disse / sem piada"— essa "meninice" que todos temos em potência — e que parecem sepultadas, nestes tempos, sobre os destroços da guerra.

Estes sonetos mereceriam certamente uma análise ainda mais pormenorizada, como tantos outros poemas do mesmo autor que, nos últimos tempos, têm surgido por aqui.
Fica o convite a quem queira abraçar esta tarefa e partilhar com os outros as suas interpretações pessoais, como eu e o Rogério Beça temos tentado fazer neste espaço. Embora eu e o meu caro irmão de letras gostemos de nos demorar no prazer de partilhar a nossa leitura, isso não implica que todos tenham de fazer exposições tão longas – podem começar simplesmente pela leitura de um verso, de uma metáfora, de uma palavra...

------------X------------

"Dez Sonetos da Guerra na Crimeia (parte um)", de cheiramázedo

1. À mulher e ao filho de Yuri

Deixou mais uns tijolos sob reboco,
uma casa, talvez um apartamento,
tudo o que tinha em rublos ao vento
e tudo era nada, pensou um pouco.

O sangue deixou-o possesso, louco,
capaz de enfrentar a frente e o cento,
mas, de mulher e filho no pensamento,
trocava a sua vida, e deixava o troco.

Há tantos nomes em ucraniano
como em russo, ou português;
em todos eles há femininos, e plural.

Venham todos conhecer o Lusitano,
como, certo dia, um visigodo fez,
venham conhecer o nosso Portugal


2. Outro Olhar a disparar

Disparam flashes e luzes brancas;
algumas mulheres capazes e mancas
disparam somente fel e impropérios,
contra um dos maiores impérios.

Caras duras frias cínicas e francas
alimentam as câmaras - alavancas;
ou escrevem uns versos rogérios,
que nada mudam, por mais sérios.

Ficar a ver dói, à porta do hospital,
em vez da ambulância, destroços,
em vez de equipas médicas, bombas...

A face mais negra da guerra, do mal,
imaginar que podiam ser os nossos
a defender sua casa, de facas rombas.


3. Reserva Territorial

Eu até irei à guerra que sei ir perder
mostrar os dentes a, em vão, morder;
os pés, o tronco, o fígado, os braços,
de armas ao léu apontadas a espaços.

Se os meus pais, os vizinhos sem poder,
forem arrombados do sorrir e do viver,
que fazer? Se em mim vejo todos' traços
findos, acabados; vou à guerra dos aços!

Será uma escolha minha? Tenho escolha?
Penso, sem escolha alguma, que não.
E saio à rua, envergonhado, da reserva.

Andamos todos felizes, numa frágil bolha,
que rebenta, à bomba mesmo no coração.
E esse não, que é ir à guerra, me enerva!


4. Insubmisso

Já baixei a cabeça muitas vezes,
é um mal de muitos portugueses,
mas se levanto os cornos, é alto
e para o baile, isto é um assalto!

Já disse que sim, durante meses
a fio, a abusadores com fezes.
Mas o meu, não é azul cobalto
e se os meus gritam, não falto.

Tenho um lado que ama o crime,
que guardo fundo no meu sorriso,
que escondo com receio e medo.

É revolta fria, ácida, sublime
de animal que perdeu o juízo,
que se deita tarde e acorda cedo.


5. Cheque ao Czar

Comecemos com as peças pretas,
o jogo está viciado, como as setas
com um alvo do tamanho dum país.
O mundo, guerra nuclear por um triz.

A rainha nova, rússia é das prediletas,
num jogo sem mãos, baionetas,
só peões armados em povo infeliz,
uns cavalos, torres, bispos, de giz.

Há um Rei, sem que haja segundo,
há um tabuleiro gasto e partido,
um relógio que cronometra a hora.

É mandar os putinhos do mundo
para a Sibéria. Dela terem saído
foi o erro que pagamos, agora...


6. Papoila é nome de guerra, e eu sou Cravo

Custa dar luta
a filhos da puta,
papoila é nome
da minha fome.

Coisa enxuta,
fundo de gruta,
facas, o pome
não se come.

Dar remédios,
bens alimentares,
é o que segue.

Que os assédios
e os odiares
não há quem negue...

Nota: "Papoila é nome de Guerra" tem direitos de autor, é o título de um poema fortíssimo dum poeta que se auto-intítula Namastibet, a ele o meu obrigado pela inspiração


7. KGB

Venha de lá um sol vindo de leste,
venha de lá de Buda e de Peste,
venha um pouco de luz, e caridade
a toda a vida, sem idade.

Até que, nem pedra sobre pedra reste,
haja paz e amor, um dia disseste,
tudo em vão e sem propriedade.
Guerra e fome, é a realidade.

Uma nova Rússia imperial
com czarinas, chega de moscovo
e todo mundo da NATO, as vê;

disfarçadas de novas forças do mal,
para acabar com a face dum povo,
venha lá, de novo, o KGB.


8. Em Odessa

Em Odessa há uma vergonha
escondida, que cá ninguém sonha:
Ucranianas à venda na rua
numa montra, suja e sua.

Como o vinho de borgonha,
que sabe a mel e a peçonha,
que em rublos euros se continua,
virgem, velha, minha e tua.

Que nenhum povo está isento
da mais velha profissão do mundo,
e da máfia que traz cada chulo.

Mas Odessa será feita de vento,
com o perfume nauseabundo
a cobardia que, hoje, engulo.


9. Sem Solvente

Deixaram um soluto solto ao ar,
e duma faísca feita foi-se queimar;
queimaram as palavras, como a paz,
o amor, sob destroços d'hospitais jaz.

Começaram a vida da frente para trás,
de trás para a frente ninguém a traz;
a maternidade, sem bebés a chorar,
é dum silêncio difícil de calar.

O fim dos poemas, fim da poesia,
tem o adjectivo imoral de guerra,
eu luto cheio de ira com sonetos.

Faremos mais uma outra guerra fria,
que os russos voltem pra sua terra.
Eu luto, cheio de ira, com sonetos!


10. o caos perfeito

novecentas e noventa e nove,
as palavras contadas ao segundo,
para uma imagem de paz no mundo,
num tempo parado, que não se move

uma, para que o amor se renove,
ou mais, para que seja mais profundo,
mil, a conta certa, o ar moribundo.
Só novecentas noventa e nove,

as palavras para descrever o rosto
que fazes ao rir, duma graça que disse
sem piada, e tanta falta de jeito.

Imagens que ficam, pedra e desgosto
espalhadas no chão, sobre a meninice;
o caos perfeito.

Criado em: 29/4/2022 18:48
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Comentário a "Quando quebra a asa, as sombras são casa", de Abissal
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2/10/2021 14:11
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"Quando quebra a asa, as sombras são casa", de Abissal

quando a noite chega
e as sombras dançam
pelos cantos da casa,
eu acendo a lareira
dos teus olhos nos meus
ainda em brasa.
quando as sombras dançam
no meu corpo sem asa,
Eu acendo a clareira
do branco da fuga
pelo rasto da viagem.

quando as sombras negras
carregam na esperança
eu desenho o teu corpo
voando ao serão
colado ao meu
em borboletas de amor
num sol canicular
derretendo as mágoas.

no meu rosto em traçado
desenhado à mão

pelo teu toque cicioso
tatuado a carvão.




Percurso de leitura nº 9 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Por detrás dos comentários que faço, muitas vezes, existem pequenas histórias, acasos ou coincidências ― que não terão grande interesse, mas que, mesmo assim, gosto de partilhar com quem perde tempo a ler o que escrevo.
A escolha deste poema para comentar tem a ver com a coincidência de, há pouco tempo, ter relido a Mensagem, de Pessoa, e ter encontrado um poema com elementos semelhantes ao texto de Abissal. Chama-se "O Quinto Império" e começa assim:

"Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!"


Aqui também encontramos a casa como símbolo de proteção, a asa associada ao elevar da matéria à imaginação, o fogo como elemento primordial de vida, de paixão, de purificação. No poema de Abissal, estes símbolos parecem associados a uma relação dual, em que um "eu" e um "tu" se constroem mutuamente.

Destacaria, em primeiro lugar, os contrastes entre escuridão e claridade presentes sobretudo na primeira estrofe. Perante a noite, o sujeito acende a lareira dos seus olhos nos olhos do outro. Na Antiguidade, a manutenção do fogo era vista como um ritual correspondente à manutenção da vida. Socorro-me aqui de Fustel de Coulanges, um historiador do séc. XIX, que explica muito bem este culto: "Todas as casas dos gregos ou dos romanos possuíam um altar; neste altar devia haver sempre restos de cinzas e brasas. Era obrigação sagrada do dono de cada casa conservar aceso o fogo, dia e noite. O fogo só deixava de brilhar sobre o altar quando toda família havia morrido; lar extinto, família extinta, eram expressões sinónimas entre os antigos."

Reconheço no poema de Abissal essa liturgia de regeneração recíproca entre os dois seres, que ocorre através da sensualidade dos corpos que se unem, que descobrem, um no outro, um espaço de claridade para percorrerem em conjunto, apesar da noite. Num jogo de palavras engenhoso, a lareira transforma-se em clareira, e há um "rasto da viagem" que testemunha outra transformação: das sombras em formas que dançam, que permitem ao "corpo sem asa" do "eu" um outro tipo de voo ― pois não será a dança a forma mais perfeita de abraçarmos o espaço e esquecermos os limites do solo e da gravidade?

Na segunda estrofe, a dança dá lugar às artes plásticas. Na sombra, quando a escuridão rodeia a esperança, o "eu" desenha o corpo do amado e o "tu" esboça o seu rosto ― como se, apenas pela retribuição de contornos, um e outro descobrissem a sua identidade. Não é talvez por acaso que essa descoberta os une e os transforma em "borboletas" ― o símbolo da deusa grega Psique, personificação da alma, eterno amor do deus Eros. Estas borboletas desafiam o destino: se na estrofe anterior, surgia uma clareira e a possibilidade da viagem, agora o "serão" transforma-se em "sol canicular", por onde ambos voam -- para queimarem as suas asas, talvez...

A construção do poema recorre a uma espécie de paralelismo semântico (com repetições ou semelhanças de versos, como acontece com "quando a noite chega" / "quando as sombras negras", "eu acendo a lareira" / "eu acendo a clareira", "as sombras dançam"), permitindo uma coesão que confere ritmo ao texto e uma grande intensidade às suas ideias.

Criado em: 14/4/2022 10:49
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Re: Poemas Classificados
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 428
Fico feliz por terem gostado :)
Abraços.

Criado em: 5/4/2022 14:14
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Poemas Classificados
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 428
Conhecem os "Poemas Classificados", de Bruno Félix?

É um poeta brasileiro que teve a ideia de fazer uma intervenção artística e publicar poemas "disfarçados" de anúncios na secção de classificados de um jornal local.
Alguns fazem refletir, outros são hilariantes.
Aqui fica um deles:

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Podem ver os outros no Facebook e no Instagram.


Criado em: 30/3/2022 20:26
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Re: Comentário a "sóleo" de benjamin
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 428
Muito obrigado, Rogério. Mais uma leitura penetrante, com detalhes surpreendentes.
Agradeço também o teu poema ("aéreo" - link) que foi a inspiração do meu.
Aliás, o título surgiu como uma espécie de trocadilho com a ideia de terra, solo -- que seria um contraponto à face inefável, diáfana -- aérea, portanto -- que o teu texto diz que só se permite ver através da poesia.

Criado em: 19/3/2022 9:44
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Comentário a "sob a superfície d'atalaia", de MarySSantos
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 428
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"sob a superfície d'atalaia", de MarySSantos

mãos em garras
laminado olhar
armadura e fortaleza

blefes de defesa

imo de cidadela
alma curvilínea
asas nos braços, leves passos

reais percalços



Percurso de leitura nº 8 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link).

Há uns bons anos, vi um filme chamado "O escafandro e a borboleta" (do realizador Julian Schnabel, estreado em 2007), que contava a história de um indivíduo que, depois de um AVC, sofreu aquilo a que se dá o nome de "síndrome do encarceramento".

Trata-se de uma patologia rara em que o paciente perde toda a capacidade motora, apesar de apresentar uma atividade mental normal, em que mantém a sua memória e se apercebe do que se passa à sua volta. Para além da perda dos movimentos dos braços, tronco e pernas, não consegue mover a parte de baixo da face, mastigar, engolir, falar, nem mover os olhos de um lado para o outro. Todavia, geralmente consegue ver, ouvir, mover os olhos para cima e para baixo e piscar.

No caso do protagonista do filme -- que é baseado num caso verídico -- tratou-se de um caso extremo, em que perdeu todas as capacidades, exceto a capacidade de piscar o olho esquerdo. Foi através desta aparentemente débil faculdade que conseguiu interagir com os que o rodeavam e, inclusivamente, ditar o livro que esteve na origem do argumento do filme. Uma bela metáfora para dizer que aquilo que vemos (e a forma como vemos) coincide com a maneira de comunicarmos.

Vem esta introdução a propósito do poema de MarySSantos, que traça um retrato de alguém encerrado na sua individualidade e que, a breves espaços, se liberta do seu cárcere pessoal e aceita a sua vulnerabilidade.

A estrutura do poema é aparentemente simples: uma sequência de expressões nominais à volta de um imaginário de guerra tradicional, de Idade Média ou de contos de fadas. Temos perante nós uma espécie de cavaleiro que, não estando, simula estar pronto para qualquer ataque (como sugerem a expressão "blefes de defesa" e o próprio título "superfície d'atalaia"), com as suas "mãos em garras", o seu "olhar" metamorfoseado em lâmina, protegido com a sua "armadura", dentro da sua "fortaleza", no íntimo das suas muralhas ("imo de cidadela").

Contudo, a certa altura, o guerreiro revela-se alguém cuja proteção não consegue ocultar o desejo de libertação. A sua "alma" é "curvilínea", talvez sugerindo este adjetivo alguns desvios à respeitabilidade e à conformidade que normalmente associamos ao conceito oposto, a retidão. As "asas nos braços" constituem uma óbvia referência à liberdade, mas convém lembrar que, fazendo parte da personagem, existem não como ato, mas como potência apenas. Finalmente, os "leves passos" -- um movimento subtil, que também pode ser as diferentes fases ou graus para atingir algo (como sabemos, a palavra "passo" também pode significar "etapa").

Chegamos ao fim com os "reais percalços", o risco da fragilidade, da indefensabilidade, que é real-efetivo-verdadeiro e simultaneamente real-régio-magnífico. De facto, temos de reconhecer que, muitas vezes, é através do assumir das nossas fraquezas que podemos encontrar vias para a reconciliação com os nossos medos e para romper com os hábitos que nos levam às nossas masmorras interiores.

Criado em: 14/3/2022 19:47
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Re: Comentário a “Circo a duas mãos” de benjamin
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 428
Olá, Zita.
Muito obrigado pelas palavras!
Abraço.

Criado em: 13/3/2022 13:03
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Re: Comentário a "Sede", de Katz
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2/10/2021 14:11
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Cara Katz,

Você tem uma voz bonita e nota-se que escrever é algo que a entusiasma. Isso é o suficiente, não precisa de lições :)

Mas, sim, é verdade que podemos aprender uns com os outros.
Num poema, vemos uma construção original e experimentamos adaptá-la num texto nosso. Noutro, há uma imagem que nos impressiona e usamo-la como tema.

Enfim, vamos arriscando ser um pouco diferentes de poema para poema e, às vezes, sai qualquer coisa que nos ajuda a irmos conhecendo melhor quem verdadeiramente somos, enquanto poetas e enquanto pessoas.

Desejo-lhe boa sorte nessa aventura.
Um abraço.

Criado em: 13/3/2022 10:25
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Re: Comentário a "Sede", de Katz
Administrador
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2/10/2021 14:11
Mensagens: 428
O meu número da sorte é o 14, com o qual me cruzei muitas vezes ao longo da vida.
Obrigado por te juntares a mim neste espaço -- que eu não criei, atenção: ele já existia e nele se falava de coisas interessantíssimas como "tusas" e outras "pérolas".

Criado em: 12/3/2022 17:21
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Comentário a "Sede", de Katz
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2/10/2021 14:11
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"Sede", de Katz

O Dia Foi duro.
Ardido.
Acredito em mágica. Ou em páginas em branco?

Choveu e não houve café.
Nem cafuné.
Tão pouco sorrisos.

Apenas escureceu.

E nublou toda uma busca.
Feito o rio diante da moça.
Que seca e a deixa com sede.




Percurso de leitura nº 7 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link).

O poema tem início com uma afirmação simples que ganha destaque com a utilização de maiúsculas, a lembrar os textos de Emily Dickinson, semelhança que não se esgota neste recurso: a ausência e a solidão são alguns dos tópicos da poesia da autora norte-americana, que iremos também encontrar no poema de Katz.

"O Dia Foi duro. / Ardido." -- como se a substância real, palpável, de um momento particular, se imolasse pelo fogo e ganhasse uma outra natureza. Assim se pode fazer a transição para os versos seguintes: "Acredito em mágica. Ou em páginas em branco?" O poeta, transformado em feiticeiro, contempla a folha de papel e nela pressente o poema a nascer, como o escultor que consegue vislumbrar a sua obra na rocha prestes a ser moldada.

Passamos à segunda estrofe e encontramos aquilo a que poderíamos chamar a "exaltação do mínimo", expressão roubada ao poema "Magnólia", de Luiza Neto Jorge. Refiro-me à atenção dada aos pequenos pormenores da vida íntima pessoal, que mais ninguém vê -- e aos quais, se alguém os visse, não daria qualquer importância. Todavia, são esses pormenores que detêm muita da luminosidade do poema, são eles o rasto das emoções do "eu", a envolver o leitor na sua misteriosa aura.

Um momento de chuva, melancólico na ausência do "café", do "cafuné" e dos "sorrisos" -- são estes os símbolos singelos de um "alguém" ou de um "algo" desaparecido. Referir-se-á a uma pessoa que se amou ou por quem se foi amado? Haverá aqui a saudade de uma circunstância temporal específica que desapareceu? Ou haverá neste ponto a referência ao prazer da escrita, que se furta ao poeta, num jogo de sedução semelhante ao do enamoramento?

Os versos seguintes constituem o momento de ir à procura das razões dessa privação. Talvez o termo "privação" seja mesmo o mais adequado por permitir a dupla aceção de carência e de experiência do que é privativo, sigiloso, interior. Algo que só se pode realizar na noite, na névoa ("Apenas escureceu. // E nublou toda uma busca"), como se a sujeito reconhecesse a impossibilidade da descoberta dos motivos para a sua solidão -- ou haverá da sua parte a vontade de manter esse mistério, esse lado mágico de que se falava no início do poema?

Ao ler a comparação do "rio diante da moça" não pude deixar de lembrar a "Menina e Moça", de Bernardim Ribeiro, no episódio em que a narradora se aproxima de um rio, onde costumava "deixar as lágrimas", e observa as águas impedidas de seguir o seu curso tranquilo por causa de uma rocha, que as obriga a separarem-se, o que recorda à donzela aquilo que as suas "desventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria".

O verso termina com as palavras "seca" e "sede", ambas polissémicas. Quem ou o que está a secar? A busca do sujeito poético? O rio da sua comparação? A própria moça? O mais importante é o efeito, a secura que sente, a ânsia por algo que lhe dá vida -- não esquecendo que a palavra "sede" também pode querer dizer o centro de algo, um espaço que é a base de tudo, o lugar onde nos perdemos nas nossas carências e ausências, mas onde se torna possível a transfiguração graças à palavra poética.

Criado em: 10/3/2022 17:40
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