Contos -> Policiais : 

Seu derradeiro dia .Capitulo I

 
Antes, silente vale sorria.
Era um vale em que ninguém vivia,
Haviam todos partido em guerra
deixando os doces olhos de estrelas
noturnamente velarem pelas
flores formosas daquela terra,
em cujos braços, dia após dia.
A luz vermelha do sol dormia.

Edgar Allan Poe ( O vale da inquietude )


Nada havia que remotamente lembra-se a presença de terceiros em sua vida. Nada ... cartas, bilhetes, cama, souvenir de motel, perfumes perdidos nas narinas, odores de suor, churrascos, amor, putrefação, calores de mãos, corpos, restos de festas, velórios, resquícios de riso, choros, marcas de sêmen, lagrimas, chuvas, gorduras, sons de vozes, músicas, brigas, lamentos, vestígios do passado ...nada. Ela destruíra tudo, apenas mantinha o que conquistara á vida, como a chácara – Sabe Deus como – lembrança perene de um passado que a incomodava. Seu olhar circundou a propriedade...seu mundo...seu planeta...aqueles três mil metros quadrados eram seus, intocáveis, definitivamente seus.Para trás deixara uma vida que não queria recordar. Inúmeros namorados , casos, amantes , amizades, tiveram a chácara como cenário.A maioria havia se apagado na memória da vida.Outros, poucos, de lembranças presentes transformaram-se em recordações esporádicas. Sua vida transformara amores em amizades, amizades em lembranças, parentes em distantes interessados em seu patrimônio. Nada morrera tudo se transformara, incluindo seus sentimentos. A idade dera-lhes nova dimensão , uma paz inesperada no redemoinho que almejara na vida.Acariciava momentos de paz, solidão e reflexão, olhando as arvores que plantara já adultas, acusando sua idade.Com carinho conversava com elas nada excedia o prazer que sentia ao ver suas silhuetas negras contra o céu poente. Elas ocultavam seu mundo dos olhares curiosos . Se atém a uma coluna de formigas saúva, diligentes, que em mão dupla vão destruindo uma touceira de damas da noite.Carregam inconcebíveis volumes, folhas muito maiores que elas, a outra fileira retornando para buscar mais, completando um ciclo de destruição e construção...com a mão pega um bocado de terra solta e joga sobre a coluna. Observa o tumulto causado pelo ato.Sem se importarem com as companheiras mortas sob a terra as formigas, contornam o monte e mantém seu ritmo sua faina, no caminho novo que as obriga o obstáculo... é a vida, construção, destruição, morte, superação.
Um lampejo passa pelos seus olhos, advertida talvez por essa ultima consciência dos moribundos.Volta a cabeça para os lados abraçando seus domínios despedindo os olhos da casa, das flores e canteiros, da horta, das arvores. Dos cães, que vêm correndo como se avisados fossem da ausência definitiva da dona. Lambem-lhe as mãos, acariciadoras de suas cabeças, sabem instintivamente que amanhã não haverá afagos nem mãos nem dona.Este é o derradeiro dia que terão este carinho, ganem lamentos sentindo sua falta antecipadamente, a orfandade anunciada. Suzana não atina o motivo do nervosismo dos cães, acaricia-os chama-os pelos nomes tenta acalmá-los sem êxito . Não sabe que amanhã a esta hora nada será, seus olhos não terão mais vida, seus pulmões não recolheram o ar perfumado do seu mundo, a luz não atravessará sua retina.Sequer o desejo de morrer na chácara será atendido pelo destino.Amanhã ela, sua vida, seu passado sem futuro serão ... nada. Levanta-se como se arremessada fosse por uma mola interna, irritada sem saber o motivo, dirige-se a torneira .Instala a mangueira e rega o gramado em torno da casa. Dirige um jato d’água certeiro e fulminante sobre a coluna de saúvas e sorri – Contornem isto agora suas pragas. Fecha a torneira, recolhe a mangueira e procura a paz perdida na solidão do jardim,
submerge na penumbra das sombras das arvores, seu vulto esguio dilui-se na escuridão do bosque, o sol despede-se do dia ela tenta esconder-se do destino que a espera.




***



O homem desce do carro que estacionou atrás de uma arvore escondendo-o dos olhares curiosos que poderiam vê-lo da estrada de terra principal, como da estreita bifurcação que entrara, seu rosto anguloso e duro de onde sobressaia um nariz adunco sobre lábios retos duros e finos sob um boné verde compunham perfeitamente com os olhos sem brilho frios e severos observando o elevado da estrada vicinal os campos cercados de arame farpado protegendo um pasto após a estrada de terra, ao seu redor um bosque natural substituído na seqüência por uma vasta plantação de eucalipto...-Deserto verde ... pensara.Abriu a porta da perua Astra 1998 retirando uma valise retangular do banco traseiro encaminhando-se para o meio das arvores por uma picada de possíveis trabalhadores ou caçadores que o levaria a beira de um barranco, parou e dali observou a estrada de terra que subia íngreme, vincada de sulcos de pneus e por depressões formadas pelas águas das ultimas chuvas, iniciava-se numa curva e seguia até a bifurcação que deixara o carro.Avançou pelo mato procurando o arbusto que cortara na véspera e deixara uma forquilha, olhou para os lados do pasto até onde a vista alcança e não via viva alma assim como do lado do bosque que já observara, assim como no dia anterior quando fizera o caminho de sua presa conforme lhe instruíra o mandante , nada via, lembrou-se da entrada da Chácara e fizera o caminho que o delegado Ribeiro o havia descrito, descera a estrada tomara a esquerda até a curva da bifurcação onde se iniciava a subida íngreme em que agora estava, o sol batera-lhe nos olhos como deveriam bater nos olhos de sua vitima, parara o carro na entrada da estradinha vicinal e escolhera o ponto de tiro, desbastara um arbusto deixando uma forquilha em sua ponta após testar sua rigidez, daquele ponto era invisível aos passantes da estrada.
Este seria seu ultimo trabalho sua profissão já não mais era necessária com tantos moleques e policiais que matavam por ninharia, felizmente havia amealhado um patrimônio razoável, tinha uma pousada e uma mulher que o amava assim como ele a amava do seu jeito rude e calado.Neste serviço não receberia dinheiro e sim dois inquéritos restantes que poderiam num momento qualquer incriminá-lo.Sem eles nada de futuras investigações e nada que ligasse o homem de hoje, ao matador que fora ... o delegado lhe havia dado todos os dados da vitima, nada falara dos motivos que a queria morta apenas que precisava um serviço garantido e limpo deixara escapar que até o assassino da mulher já tinha sido providenciado o que o deixaria livre.Como garantia entregara uma parte dos inquéritos o resto entregaria após o serviço consumado.Combinaram como seria a entrega e mais nada, tampouco se preocupara em saber quem iria matar...apenas seus hábitos horários e locais onde seria mais fácil o trabalho, acostumado a ser detalhista saber tudo das vitimas pois de acordo com sua importância seu preço e seu aceite...consultou o relógio, abriu a pasta tirou um pedaço de lona colocou no chão, sentou-se em posição de lótus sobre ele e iniciou a montagem do rifle e de sua mira a laser.Com calma tinha uma hora para consumar o trabalho.Montado o rifle conferiu a mira no mourão do outro lado da estrada até que o barulho de um carro chamou sua atenção, levantou-se colocou a arma na forquilha da arvore aguardou o carro aparecer na curva da estrada, era uma perua Nissan mirou no pára-brisa quando o motorista acabou a curva mesmo fumado o vidro não resistia a potencia do binóculo de mira e do raio laser, o motorista sequer pressentiu a pequena luz vermelha que lhe apareceu no centro da testa, fingiu apertar o gatilho na certeza que o condutor do carro não o via, recolheu a arma e sentou-se na lona com as pernas cruzadas colocando o rifle para descansar sobre os joelhos, olhou o relógio novamente, procurou um chiclete, guardou a embalagem no bolso e ficou a espera para cumprir sua ultima missão.



***



Suzana sai do banho, enxuga-se meticulosamente, confere no espelho seu corpo encolhe a barriga que a idade teima em mostrar sente-se satisfeita com ele, para a idade aparenta 15 anos menos, graças aos cuidados exercícios alimentação e pequenas intervenções cirúrgicas e outros recursos que usava.
Coloca uma calça jeans despretensiosa, uma camiseta, pega sua mala com as roupas de ginástica toma um café simples e sai.Sua cadela Rottweiler vem lhe lamber as mãos, dá um pedaço de pão integral para o animal que come e a olha com olhos súplices.Haveria de acompanhá-la até seu carro um Gol 2000 que usava pelas estradas de terra das redondezas, economizando a perua Nissan para ocasiões especiais, ganiria lamentando sua saída e seria perguntada...O que foi amor o que tem ?... por Suzana, obtendo como resposta ganidos ainda mais lamentosos...liga o carro escuta o cascalho sendo esmagado pelos pneus descendo a pequena estrada que a conduz para a estrada fora da propriedade.


***


O homem sentado acariciava com a mão direita, sua Dragunov SVD semi automática, russa onde um mestre em armas seu velho conhecido, havia adaptado uma mira telescópica Zeiss e uma mira laser...seus pensamentos percorriam sua vida, seus altos e baixos ... tempos bons e ruins, agora uma relativa calmaria tomara conta de sua vida, e gostava de sua rotina de dono de pousada casado com uma boa mulher, estava satisfeito...um barulho de motor dissolveu seus pensamentos, arrumando o boné, levantou-se, colocou a arma na forquilha e ficou esperando o carro apontar na curva da estrada.

***
O Gol prata desliza pela estrada de terra conhecedor dos caminhos pelas mãos de Suzana, não se cansava de olhar a paisagem, as arvores que plantara ao lado da estrada, as azaléias da cerca viva de um visinho, conhecia aquela estrada melhor que a si mesma os arbustos os mourões conhecia tudo assim como as pedras e a terra vermelha da que entre taludes serpenteava pelas pequenas propriedades a esquerda e pela grande fazenda a direita, os taludes aumentavam e diminuíam sua altura do lado direito da estrada mostrando sua topografia do lado da fazenda mantinham uma altura majestosa, mostrando no ventre rasgado da terra algumas raízes das arvores centenárias que haviam sobrevivido ao loteamento e ao deserto verde de eucaliptos.A sua frente a estrada continuava e o talude era pouco maior do uns 50 centímetros na bifurcação que a levaria para a cidade.Reduziu a marcha de 4.a para terceira fez a curva e iniciou, a subida pela bifurcação, o sol magoou-lhe os olhos pela ultima vez ao bater seus raios direto sobre seu rosto, semicerrou os olhos como de costume e reduzia de terceira para segunda marcha para fazer frente a subida íngreme que enfrentava.


***


O homem boné virado para traz olhos na mira, viu o capô prata do Gol subindo a estrada, ajustou a mira e focou no rosto da mulher, o sol deu um flash amarelo no pára-brisa manteve impávido, dormindo o olhar na mira até rever o rosto da mulher que cerrava os olhos protegendo-se do sol, colocou a o ponto vermelho da mira laser entre os olhos da mulher, foi alterando lentamente a mira enquanto o carro subia...
apertou o gatilho.
A bala foi expelida do casulo de ferro que a encerrava para encontrar certeira a testa da mulher, sequer viu o fio de sangue descendo sobre o nariz bem feito, apertou novamente o gatilho e acertou o olho esquerdo...-Só para ter certeza, pensou...de imediato e rápido, recolheu com as mãos enluvadas os dois cartuchos detonados e começou a desmontar a Dragunov.


***

Por um capricho o primeiro impacto acertou Suzana no exato do momento da troca de marchas deixando o Gol em ponto morto.Nada sentiu além de uma queimação e um clarão, a segunda bala a encontraria já sem vida, seu pescoço foi jogado para traz e em seguida novamente para o lado....o Gol subiu uns metros e começou a descer a estrada já sem dono ou comando livre das marchas em ponto morto, subiu uns metros estrada acima e começou a descer lentamente estrada abaixo , aumentando a velocidade e subindo no talude, batendo num mourão de cerca, jogando o corpo sem vida de Suzana de encontro ao volante soando a buzina em seguida descendo, pela força da gravidade parando na valeta que escoava a água das chuvas.O corpo de Suzana caiu de lado sobre o banco do passageiro, como um saco jogado gotejando sangue dos ferimentos.Sua vida se esvaiu no sangue derramado sobre o banco pingando sobre o tapete de borracha.Nada mais havia de Suzana, além do crânio esfacelado sem um olho, cabelos empapados de sangue, e uma vida que não iria mais viver...nada havia.
Ao terminar, incrédulo viu o carro descendo a estrada, subindo no talude, batendo com um estrondo no mourão da cerca o grito da buzina que cessou em minutos, preocupado mas sem parar o que fazia foi pegando a lona arrumando a arma em sua maleta com uma rapidez incrível.Viu o carro voltar a buzina silenciar e o corpo da mulher cair como se o impacto que levara dos projeteis fossem dados pelo lado esquerdo.Fechou a mala após guardar as cápsulas e saiu rapidamente do esconderijo em direção ao seu carro abriu o porta malas do Astra, levantou o tapete e alojou seu equipamento num espaço camuflado entre a lateral e o estepe, de mau humor, não contava com o carro descendo sozinho, não gostava que nada saísse fora do seu planejamento.Olhou para os lados, entrou no carro e seguiu reto pela estrada vicinal.
Ao passar sobre uma ponte jogou as cápsulas no ribeirão que corria em baixo.Chegou a Via Dom Pedro, fez o contorno indo em direção a Via Dutra, acelerou o Astra e se perdeu em meio aos caminhões e carros que percorriam a estrada.

***


Ribeiro estava impaciente em seu apartamento... consultava o relógio do celular a cada minuto...a esta hora já esta acabado porque não liga ?.. o que será que aconteceu ?...alguma coisa deu errado ?...porque não avisa ?...abana fortemente a cabeça, esta ficando paranóico cara ? para de pensar besteiras conjecturas não vão mudar o que já aconteceu.Levanta-se serve mais uma cerveja que toma direto da lata senta-se, liga a televisão sem ver ou ouvir nada apenas seu peito arfante angustiado para receber a ligação...como por instinto o telefone toca não o celular o fixo, olha o identificador não reconhece o numero, marca num papel antes de atender, tem dificuldades com a memória do aparelho por este motivo anota os números tem certeza que é seu matador...Alo ...o homem responde seco ....Dr. Ribeiro o serviço esta feito, vamos terminar os acertos....Calma cara me conta os detalhes....Doutor sem detalhes o presunto que encomendou esta te esperando não tem vestígio algum de mim, o resto é consigo agora por favor vamos acertar o combinado...De onde esta falando cara, esta tudo acabado mesmo ?...Dr. o Sr. me conhece sou matador não estelionatário entrega o resto do inquérito por favor no boxe 170 da rodoviária de São Paulo, manda a chave para o endereço que estiver dentro do boxe...a chave o Sr. pega no balcão de informações ou qualquer pessoa com uma autorização sua, qualquer funcionário vai lhe entregar.
Ta certo cara estou mandando um motorista com o restante dos inquéritos para a rodoviária e vou até o sitio ver o seu serviço combinado ?
Certo doutor, não esquece de deixar os códigos de acesso aos arquivos do computador central.Você desconfia de tudo cara...já disse que estes inquéritos nem entraram no sistema, agora consta como arquivo morto ...caso resolvido ta legal ?.È do negocio doutor quando pegar tudo entro novamente em contato...boa tarde.
Boa tarde e se tudo esta ok parabéns...ouviu apenas o clique do telefone desligando, pegou o celular ligou para a delegacia...Alo Faria...tudo bem meu velho lembra que pedi para ficar de plantão com o cara da telefônica localiza este numero para mim agora...e passou o numero que copiara, estou aguardando ....Tudo bem doutor, respondeu Faria em 5 minutos to retornando.
Terminou de tomar a cerveja, foi ao banheiro a ansiedade e a cerveja lhe deixaram a bexiga com urgência de ser esvaziada quando voltou o celular tocou....Já ta na mão doutor, só que é um telefone publico de Osasco... Tem o endereço do telefone...Tenho doutor é do Shopping Center, quarto aparelho da bateria de fones públicos da entrada ...Valeu cara...te ligo depois....desligou o telefone ... Filho da puta ta querendo ser mais esperto que eu ? Cacete tenho que localizar este cara...Ligou para seu Estevão escrivão aposentado da policia amigo e pau para toda obra... pediu para levar o envelope que lhe tinha entregue no boxe 170 da rodoviária na rodoviária de São Paulo... Antes passa aqui no prédio pega na portaria na portaria e lhe passou as recomendações finais.
Colocou sua blusa ajeitou o coldre da Glock escreveu o bilhete e desceu para a portaria.








 
Autor
Carlos Said
 
Texto
Data
Leituras
968
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.