Contos : 

Uma história curta - 2

 


Joaquim dos Santos guardava, com deleite na memória, os tempos em que tinha sido guarda-florestal lá para cima, bem ao Norte do país.
Graças às inúmeras caminhadas pela serra, de sol a sol e no pino do calor, agora já maduro, conseguia palmilhar durante mais de três horas diárias seguidas, as ruas nas cercanias do Castelo de S.Jorge. Semblante franzino e trigueiro. Nariz aquilino. Alguns fios prateavam-lhe a testa, legitimando o seu ar de bem-estar na vida. Vida dura...Olhar escuro e fugidio, olhar de vigilante. Calçadas íngremes e lanços de escadarias eram os seus passeios predilectos por entre o dédalo de prédios mouriscos encostados à sombra da muralha do Castelo. A escola tinha-lhe ensinado , em pouco tempo, que o saber não ocupava lugar, e então cultivava o mesmo lema dos antigos atletas gregos, mente sã em corpo são. Também gostava de ver televisão. Os documentários históricos levavam-no às lágrimas e os concursos eram o seu vício diário. E o futebol, claro.
Saloio, mas burguês. E era-o pelo seu pulso trabalhador e persistente. Estava sempre pronto para tudo porque qualquer espécie de trabalho podia surgir, repentinamente, e alguém, numa aflição, necessitar dos seus serviços. De momento, gozava até de uma inactividade forçada como detective privado. Era a crise económica em que o país vivia desde há muito, amenamente. Sempre discreto, a bem da ética profissional, residia em casa da falecida madrinha, da qual tinha herdado, não só os cómodos mas também o Eusébio, o malvado gato siamês que parecia desafiar todos os limites de longevidade adequados à raça. Paciência. Uma promessa feita à madrinha no seu leito de morte ligava-o, até ao fim, ao raio do gato. Sem Eusébio não havia casa, portanto cumpria, estoicamente, a sua função ao ser mordomo do animal.
E viver no Sul tinha-se revelado ser uma sensação muito agradável.
Lisboa, que encantamento constante, um amor já duradouro! O pior eram os domingos, durante as tardes de futebol. O bicho, Eusébio, tinha aversão doentia aos relatos na telefonia. Uivava, arranhava tudo o que apanhava e por fim, urinava em qualquer sítio da casa. Uma canseira e um desassossego impossíveis de suportar.
Um dia, há alguns anos atrás, comprou a sua primeira televisão. Tinham acabado de sair das fábricas e logo Joaquim era o feliz proprietário de uma. Para ele tecnologia, só a melhor. Foi pior. A partir de então Joaquim atribuiu, doutamente, a Eusébio, qualquer distúrbio de origem nervosa e trancava-o, sem dó nem piedade, numa arca de madeira antiga por si comprada para o efeito. Só por umas horitas, claro. O cadeado era suficientemente forte para suster os arremessos insanos do bichano. Finalmente, um pouco de paz.

Uma tarde, limpava Joaquim a caixa de areia dos dejectos do Eusébio, quando soaram três fortíssimas campainhadelas na tarde morna. Joaquim acercou-se da porta, devagar, não sem um eriçar de pêlos pelo corpo. O seu instinto detectivesco estava ao rubro. Lá fora, ninguém. Os sete vasos de porcelana da vizinha D.Sebastiana, professora de História na situação de reformada, antiga amiga da falecida madrinha, contemplavam-no com a indiferença costumeira. A seus pés, uma trouxa de pano escuro, jazia no tapete. Joaquim toca-lhe com a ponta do pé.
O choro de uma criança recém-nascida soa, como uma bomba, no patamar sereno. Joaquim fecha a porta com estrondo e corre a fechar todas as cortinas e janelas após o que se lança no corredor de soalho encerado.
Ali estava a trouxa cinzenta, a berrar como uma criança a sério.
Joaquim pega-lhe e numa tremura mal contida, desfaz o rolo que, inexplicavelmente, ali estava. Lá dentro, um ser humano minúsculo guinchava em roxos acessos de fúria, embrulhado num pano ensanguentado. O sangue provinha das dilacerações múltiplas que se revelaram, mais tarde, sórdidas e brutais. Precipitou-se para o telefone.
Em breve, as luzes da ambulância e do carro da polícia estavam à sua porta. Os cuidados prestados pelos técnicos de saúde foram contudo, inúteis em salvar uma vida tão pequena.
Tinha perdido demasiado sangue e estava num estado de subnutrição muito avançado. Provavelmente, não tinha ingerido nenhum alimento desde a nascença.

O funeral foi alguns dias depois. A burocracia da adopção post mortem tinha sido complicada e Joaquim enterrou o seu filho adoptivo ao entardecer, no cemitério dos Prazeres, tendo por companhia o Eusébio e o coveiro, de nome Joaquim, tal como ele próprio.
Ao menino, tinha-lhe chamado Jesus. Jesus dos Santos.
Tinha-lhe parecido apropriado.

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Vilians3
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