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A poesia do espaço

 
Se fosse no tempo em que as insónias me faziam criar, desejava-as em cada noite.
Agora, açoitam-me, lançam-me contra as paredes brancas do quarto onde não há linhas para poisarem os versos, projectam-me contra o tecto, inerte e, quando penso colori-las, repelem as tintas que lhes lanço da paleta em golfadas de desespero.
Porquê que tenho insónias?
Porquê que tenho tantas que já não há carneirinhos em número suficiente para contar?
Porquê que o registo do meu sono é marcado a vermelho, em algumas noites? Nem um segundo a azul, sempre no limite! Ao menos podia ser às bolinhas, todo a vermelho é desespero, é sangue em demasia.
Passa uma vida ociosa o aparelho que me regista o sono e me deveria permitir ter um sono mais reconfortante.
Zero registos, tudo contínuo, nem um gancho para cima, nem um sopro para baixo, tudo igual desde a uma até as sete ou oito da manhã. Porquê que não me deita da cama para fora, esse idiota preguiçoso. Se fosse profissional a sério, desejaria que o desligasse, que o mandasse executar outro trabalho, que mais não fosse, me contasse carneirinhos.
Sou eu que lhe ordeno, sim, a culpada sou eu, o meu corpo cansa-se, quer estar quieto.
Porque me queixo afinal?
Sempre insatisfeita: com as insónias, com as noites demasiado dormidas, com as telas brancas, com os versos incompletos, com as folhas cheias, com as folhas vazias, com as telas imperfeitas e com aquelas em que não lhes induzo um luar porque são excessivamente óbvias.
Porque desejo sempre criar se o acto de parir essa criação me causa tanta dor!?
Porque lanço sementes se a espera do germinar me cansa?...
Giro sobre mim mesma para construir o meu espaço, aquele onde me sinta confortável, cama de veludo, nem uma bolha que seja, como sendo o caracol em sua casa.
Giro, giro, esperneio os obstáculos, aspiro as bolhas de ar para me acomodar, para ver se mando embora as insónias.
Giro, giro, sempre a girar sobre mim própria e, por vezes sinto tonturas, outras vezes náuseas causadas pelas bolhas de ar que me comprimem a cabeça contra a carapaça...
Quando o meu corpo se ajustar ao espaço, ou o espaço ao meu corpo, sei lá,... hei-de senti-me fresca como se sente a ameijoa na concha quando, com a água salgada se abre, para beber essa frescura...
Talvez a ameijoa e o caracol nunca tenham tido insónias, vivendo na poesia do seu espaço.
Talvez me falte poesia, a poesia do espaço...


Quisera eu ser poeta
Quisera eu ser pintor
Escrever telas e pintar poemas
Escrever, pintar, pintar,escrever
A humanidade com muita cor

 
Autor
adelaidemonteiro
 
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Enviado por Tópico
VónyFerreira
Publicado: 06/06/2010 19:48  Atualizado: 06/06/2010 19:48
Membro de honra
Usuário desde: 14/05/2008
Localidade: Leiria
Mensagens: 10301
 Re: A poesia do espaço
Felicito-te Adelaide por este texto.
Excelente!
Beijo
Vóny Ferreira
[quote]Talvez a ameijoa e o caracol nunca tenham tido insónias, vivendo na poesia do seu espaço. Talvez me falte poesia, a poesia do espaço...



Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 06/06/2010 19:50  Atualizado: 06/06/2010 19:50
Membro de honra
Usuário desde: 14/08/2007
Localidade: Setúbal
Mensagens: 11076
 Re: A poesia do espaço
Adelaide,
a razão dessas insónias não é falta de poesia, pois esta tua prosa poética é fértil de inspiração.
Beijinho
Nanda


Enviado por Tópico
Avozita
Publicado: 06/06/2010 21:46  Atualizado: 06/06/2010 21:46
Colaborador
Usuário desde: 08/07/2009
Localidade: Casal de Cambra - Lisboa
Mensagens: 4529
 Re: A poesia do espaço
Com insónias ou sem elas
o certo é que escreveste
um texto extraordinário.

Beijinho
Antonieta

Enviado por Tópico
Conceição Bernardino
Publicado: 06/06/2010 22:15  Atualizado: 06/06/2010 22:15
Usuário desde: 22/08/2009
Localidade: Porto
Mensagens: 3357
 Re: A poesia do espaço
olá Adelaide,

gostei de girar neste texto, engoli-o...fantástico

beijo