Crónicas : 

A Memória é Como o Ventre da Alma (S. Agostinho)

 
Encerro também na memória os afetos da minha alma, não da maneira como os sente a própria alma, quando os experimenta, mas de outra muito diferente, segundo o exige a força da memória.

Não é isto para admirar, tratando-se do corpo: porque o espírito é uma coisa e o corpo é outra.

Por isso, se recordo, cheio de gozo, as dores passadas do corpo, não é de admirar. Aqui, porém, o espírito é a memória.

Efetivamente, quando confiamos a alguém qualquer negócio, para que se lhe grave na memóra, dizemos-lhe: "vê lá, grava-o bem no teu espírito".

E quando nos esquecemos, exclamamos: "não o conservei no espírito", ou então: "escapou-se-me do espírito"; portanto, chamamos espírito à própria memória.

Sendo assim, porque será que, ao evocar com alegria as minhas tristezas passadas, a alma contém a alegria e a memória a tristeza, de modo que a minha alma se regozija com a alegria que em si tem e a memória se não entristece com a tristeza que em si possui?

Será porque não faz parte da alma? Quem se atreverá a afirmá-lo?

Não há dúvida que a memória é como o ventre da alma. A alegria, porém, e a tristeza são o seu alimento, doce ou amargo.

Quando tais emoções se confiam à memória, podem ali encerrar-se depois de terem passado, por assim dizer, para esse estômago; mas não podem ter sabor.

É ridículo considerar estas coisas como semelhantes. Contudo, também não são inteiramente dissemelhantes.

Reparai que me apoio na memória, quando afirmo que são quatro as perturbações da alma: o desejo, a alegria, o medo e a tristeza.

Qualquer que seja o raciocínio que possa fazer, dividindo cada uma delas pelas espécies dos seus gêneros e definindo-as, aí encontro o que dizer e declaro-o depois.

Mas, não me altero com nenhuma daquelas perturbações, quando as relembro com a memória.

Ainda antes de eu as recordar e revolver, já lá estavam. Por isso consegui, mediante a lembrança, arrancá-las dali.

Assim como a comida, graças à digestão, sai do estômago, assim também elas saem do fundo da memória, devido à lembrança.

Então, porque é que o que discute, ou aquele que delas se vai recordando, não sente, na boca do pensamento, a doçura da alegria, nem a amargura da tristeza?

Porventura, nisto é dissemelhante o que não é semelhante em todos os seus aspectos?

Quem em nós falaria voluntariamente da tristeza e do temor, se fôssemos obrigados a entristecer-nos e a temer, sempre que falamos de tristeza ou temor?

Contudo, não os traríamos à conversa se não encontrássemos na nossa memória, não só os sons destas palavras, conforme às imagens gravadas em nós pelos sentimentos corporais, mas também a noção desses mesmos sentimentos.

As noções não as alcançamos por nenhuma porta da carne, mas foi o espírito que, pela experiência das próprias emoções, as sentiu e confiou à memória; ou então foi a própria memória que as reteve sem que ninguém lhas entregasse.

Santo Agostinho, in 'Confissões'.

Santo Agostinho de Hipona, Argélia [354-430]
Santo & Doutor da Igreja.
 
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AjAraujo
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