Contos : 

Lola

 
Lola é bonita em tudo!
No seu Mundo de fantasias, a vida desperta.

As nuvens trazem água. Lágrimas do céu.
Ela continua serena. A vida é serena.

Lola não pára.
Tem o destino marcado. Um encontro.

A imaginação não tem complexos, a ilusão é real.
Filhos. Já grandes, sem complexos.

Onde andará Lola?
Estará ela em casa? Talvez a tomar um chá.

A noite chegou. As estrelas não se vêem.
O Mundo pára. Procura Lola.

A campaínha toca. Ouvem-se passos mas ninguém atende.
Toco de novo. Volto mais tarde.

Saio do carro, apanho ar, ar puro e deveras sufocante.
O relógio bate as horas. A vida continua mas o carro não pega.
Tento várias vezes e nada. Abrir o capôt para ver se se vê algo de anormal no meio daquela normalidade toda.
Peças, mortas. Telemóvel.
Sem rede. Sosinho com um carro morto.
Avanço, deixo o carro e pego na mochila, dou uns passos e tento usar de novo o telemóvel. Nada.
Merda.
Na mochila só peças mortas.

Em casa de Lola só imaginação. Tudo funciona às mil maravilhas.
Lola vive de dias, os dias são como rebuçados de chocolate. E a vida prossegue, continua, avança.
As tentativas são sós.

No meu caminho só vejo árvores e mais árvores, todas as espécies. Altas, baixas, novas, velhas, sempre em pé, umas a seguir às outras.
Um pássaro vem ter comigo. Traz noticias.
Lola está feliz. É feliz.
A vida é de cada qual e a minha está só. Sosinha com árvores e peças mortas.
O pássaro foi-se. Deixa apenas a noticia.
E agora? Como estará agora? Ainda estará feliz?
O Tempo passa mas a vontade fica.

Lola prepára o dia de ámanha.
É dia especial. É dia de festa.
A casa é uma caixa de supresas, uma caixinha.
O laço desenlaça-se, a tampa abre-se, o escuro sai, a imaginação solta-se.
Na televisão velhos westerns. As coboyadas do costume.
O bom em perseguição do mau.
Lola vai à casa de banho. A toilette está no sitio. A roupa interior tambem.
Lola está só. Em casa, rodeada de coisas mortas.
Espelhos, com luz própria. Lola sabe que é bonita.
Os segundos entram nas horas, os minutos passam.
A roupa interior sai do sitio. O local muda de sitio.
O coração de Lola salta e pensa em mim.

Páro no caminho.
Olho uma árvore de fruto, uma desilusão.
Uma costela vem-me à cabeça. O fruto passou pela costela e subiu-me à cabeça. Lola é um fruto.
A fome está sem fome, está cheia.
A sede secou, a água não correu.
Lola não é esquisita.

O dinheiro.
Uns trocos no bolso.
Não me serve de nada, as árvores não o seguram e não o apanham. Atiro uma moeda ao chão.
Calhou caras e eu reparo no desinteresse delas no meu dinheiro, nos meus trocos.
Ainda daria para três pães. Um para mim e um para Lola, e outro talvez para o passarinho, caso aparecesse. Mas nem uma padaria, um supermercado, um tasco. Nada, só árvores.
Recordo o fruto, a árvore de fruto. Com esta conversa já ia um, mas agora já não volto atrás, seria perder tempo e Lola. Não sei se terá tempo, se esperará o tempo suficiente por mim.
A poesia de Lola revela-se.
A fotografia fica gravada na memória. O filme desenrola-se em directo.
Não há paragens, só passagens e viagens.
A memória quer-se curta.

A inteligência desperta-me. Observo com pormenor.
Vejo o pormenor. Estudo o pormenor. A viagem continua.
LOla chama o pássaro e conta-lhe algo.
Ouviste. Pergunta Lola.
O pássaro abana a cabeça. Responde.
Sai disparado e voa o mais alto que consegue. Lola está ciente disso, nem se mexe. Passa a ser apenas uma peça, morta.
Morta de raiva por estar viva e não feliz.

A inteligência acordou, espreguiça-se, boceja, espreita a memória curta e comprida, profunda, que penetra lá no fundo do nada, do desvirado, e passa a ver branco.
Fecho os olhos por momentos, mas os pés e as pernas não param.
O pássaro aprochega-se e dá-me uma bicada com força na cabeça.

Lola vai até à cozinha. Já marchava um "prearado",
mas nada está preparado, o dia da festa mantém-se.
Ámanha, Terça-feira.

O tempo não espera pela demora e a cabeça solta-se, cai sem ninguém reparar, silenciosa e deixa-se ficar para trás. O Tempo está em todo o lado.
A cabeça escolhe um tempo certo. No tempo certo o passado e o futuro podem não bater certo, mas o Presente é o que se vê. É vida, é Lola, é vontade. Vontade de Lola e de vida, de viver para morrer.

O coração.
Morto de ciúme, ou vivo. Escondido não pára de se esconder, troca o escuro pelo escuro enquanto aguarda pelo morrer, pelo Presente.
Um coração morre, será o de Lola?
Ela não responde, estará a ficar surda?
Roupa interior, sem cor branca, só espaço. O corpo forma-se e desenvolve-se, as pessoas trabalham os corpos, tocam-nos e tocam-se, tocamo-nos. A solidão é boa e eu encosto-me.
Sonho com incertezas, penso em verdades, em passados curtos, não como se esperavam, mas curtos o suficiente para alcançar a perfeição.
Lola ainda queria estar mais sosinha, sem peças mortas à sua volta, só com a liberdade, presa a um dia fictício mas contudo sempre possivel. Não existem impossiveis.

A roda rola.
O Mundo enrola, enrola-se. Ocupa o espaço, o vazio, e espera a morte do próprio Tempo.
Grito.
Alto. Pára. Volta.
Lola.
Estou. Vem. Volta.
Raios e trovões. As nuvens encostam-se uma às outras, o espaço é pouco e não sei se à espaço para todas. Todas cá estão.
Potenciais potencias. Anarcas. Descobridoras do nada que se consome a si mesmo, sem razão, sem objectivo, sem recompensa.
A promessa não existe, só um destino marcado, por quem não se sabe e porquê tambem não.

Lola está em dívida para comigo. Não há prazos, o calendário torna-se infinito, mas o meu, o meu calendário dos dias que comigo passam, o calendário que marca o meu destino, o meu calendário, tem prazo. Tem limite de velocidade e limite de carga, e tem todos os excedentes a esse mesmo prazo.

Uma árvore estatuada no meio do meu caminho entre as árvores. É forte. Contorno-a e aprecio-a, só não a trepo porque Lola me espera e eu não quero perder mais tempo.
As horas entoam na minha cabeça, o descanso chama por mim.
Páro mesmo aqui. Já.
Lola adormece no sofá, por entre coisas mortas, ouve-se o chamamento dos sonhos interiores ao cansaço.

Eu e Lola adormeçemos ao mesmo tempo, como sempre fazemos.
Só nós dois sabemos este nosso truque, que não pertence a mais ninguém.


 
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franciscopeixoto
 
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