Poemas : 

o enterro

 


"Cada uma delas mergulhada numa existência bestial abençoadamente isenta de significado espiritual: esguichar leite, ruminar, defecar e mijar, pastar e dormir, a isso se resumia toda a sua raison d'être." (Roth, Philip. A Mancha Humana. Publicações ...



o homem vestiu o fato preto, deu o nó ao pescoço na gravata de seda italiana preta e saiu de luto na direcção do seu próprio funeral. durante as exéquias não conteve as lágrimas no momento em que o padre dirigiu um rol infinito de elogios ao morto, que era ele próprio ali deitado no caixão de madeira do brasil preta. mas o momento da sua própria cerimónia fúnebre que realmente lhe destroçou o peito foi ver todas as mulheres que amara em vida, juntas e em uníssono, a enterrarem-no sob a terra fria. e ele que lhes havia dado tanto calor.


 
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cromeleque
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 21/10/2011 09:46  Atualizado: 21/10/2011 09:46
 Re: o enterro
coloquei-me nos olhos do defunto e desfrutei desta última viagem. boa premissa para um texto. a meu gosto, cortar-lhe-ia ainda assim algumas gorduras descritivas e talvez lhe aplicasse um final mais contundente.


Enviado por Tópico
Margô_T
Publicado: 08/07/2016 08:56  Atualizado: 08/07/2016 08:56
Da casa!
Usuário desde: 27/06/2016
Localidade: Lisboa
Mensagens: 308
 Re: o enterro
E porque a escrita não é só para dizer o que queremos ouvir, mas também para nos fazer pensar, causando impacto sobre nós, não poderia deixar de comentar este teu texto tão impressivo.
A mudança de perspectiva traz-nos uma nova consciência, tornando praticamente impossível que não nos identifiquemos com este homem e não nos sintamos a preparar-nos para assistir ao nosso próprio enterro.
As descrições minuciosas ajudam a tornar o momento ainda mais realista e, consequentemente, mais vívido: o homem sai de “fato preto”, dá um “nó ao pescoço na gravata de seda italiana preta” e sai “de luto” (fazer um luto do nosso luto, antes do luto… toda esta componente estranha, no meio de uma descrição realista, nos causa impacto).
Saem as lágrimas quando o “padre dirigiu um rol infinito de elogios” mas o momento que mais destroçou o já destroçado foi “ver todas as mulheres que amara em vida, juntas e em uníssono, a enterrarem-no sob a terra fria”. Porquê? Porque é no calor que as sente ou sentiu e ali, frio ele e frias elas, o calor se esvai sobre a terra fria.
Forte, agreste e, acima de tudo, com aquela força bruta de uma verdade a fazer-se ouvir, saindo da caixa de Pandora.