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Gabriela

 
Gabriela


Estávamos em 1976 (mais coisa menos coisa...) quando a Radio Televisão Portuguesa (única estação de radio-televisão portuguesa na altura – sim, porque já houve um tempo em que só havia 2 canais de televisão, a RTP1 e a RTP2; ambas com emissões muito restritas, que finalizavam por volta da meia-noite com a apresentação do hino nacional; ambas com uma programação muito pobre em termos de conteúdos; programação essa apresentada por umas quantas “moçoilas” que, a espaços, informavam os telespectadores daquilo que poderiam assistir a seguir; e por mais incrivel... e triste... que pareça, eu sou desse tempo... quem diria?!) transmitia a primeira telenovela produzida pelo nosso “país irmão” – a Gabriela.

Esta novela, onde a língua portuguesa era falada de uma forma muito peculiar (com um sotaque muito diferente das riquíssimas pronúncias e regionalismos nacionais – mais doce na entoação das palavras, ditas com as vogais escandalosamente escancaradas - e repleta de vocabulário, até então, desconhecido para a maioria dos lusitanos...) veio revolucionar os hábitos dos, até então, muito pacatos agregados familiares. Depois do Telejornal (que por essa altura tinha a duração - mais do que suficiente - de 30 minutos...) as famílias reuniam-se à volta do televisor (a preto e branco, claro que está...) com os olhos muito abertos - e ouvidos muito atentos - para poderem absorver tudo dessa fantástica e muito ousada história - também ela apresentada de uma forma que, até então, não se conhecia – repartida por incontáveis capítulos, com cerca de 20 minutos, que deixavam os telespectadores desejosos que as 24 seguintes passassem rapidamente para poderem assistir à continuação.

Baseada na obra homónima do escritor brasileiro, Jorge Amado, a história girava à volta do quotidiano dos habitantes de uma pequena “cidade” brasileira (Ilhéus...) nos loucos anos 20. Uma cidade, igual a tantas outras, onde “Coroneis” mandavam, a seu bel-prazer, nos destinos da cidade – usando e abusando dos seus jagunços (também apeliados de “cabra”...) para matarem quem se lhes pusesse à frente - quando não eram os próprios (por questões de honra...) - não lhes sendo imputada qualquer responsabilidade criminal por tais actos; onde as mulheres não passavam de meros objectos sexuais, que não tinham direito a pensar pelas suas próprias cabeças (quanto mais decidir, fosse aquilo que fosse - nem no que ao amor dizia respeito...); onde aquilo que se mostrava era mais importante do que aquilo que se era (havia que se mostrar um comportamento irreprensivelmente formatado, com aquilo que se esperava, para se poder pertencer à “sociedade”...); onde a “macheza” era uma virtude inabalável a todo e qualquer homem, mas que acabava por ser constantemente posta em causa pela quantidade de “cornos” que elas punham nas cabeças dos infelizes gabarolas; onde a “quadrilhice” era prática comum entre as mulheres (sobretudo daquelas que se diziam “puritanas”...) que, em nome da “moral e os bons costumes”, procuravam avidamente detectar qualquer infracção para poderem apontar o dedo e vangloriarem-se com a sua conduta irrepreensível; onde os cabarets eram locais de “diversão” nocturna onde os homens se deslocavam amúde para se divertirem com as “Kengas” a troco de dinheiro; onde uma mulher (a personagem principal - Gabriela) se destacava das demais pelo facto de pensar de maneira completamente diferente – achando que a “sociedade” era falsa e aborrecida; que cada um devia fazer aquilo que melhor lhe aprouvesse; que a mulher devia ter os mesmos direitos e deveres dos homens...

Em 1976, a idade não me permitiu absorver a moral dessa história, como provavelmente aos meus pais. Só hoje (que não perco um episódio desta excelente novela...) percebo o porquê do seu enorme sucesso... mas, “para mal dos meus pecados”, percebo também que a sociedade não mudou muito desde então (pelo menos do que ao meu país diz respeito): continuam a haver “coroneis”, “cornos” e “quadrilhice” em qualquer esquina por onde me cruzo...


Luís Alturas, 23 de Dezembro de 2012

 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 29/12/2012 01:04  Atualizado: 29/12/2012 01:04
 Re: Gabriela
É engraçado pensarmos que essa obra de Jorge Amado, que se passa em plena década de 1920, pudesse refletir tanto a sociedade moderna, como se fosse uma metáfora dos tempos atuais. Será que a humanidade avançou tanto assim em termos éticos e morais de lá pra cá?
Um texto como este nos faz pensar sobre mil e uma coisas, adorei passar este momento lendo o seu texto.
Abraços, estarei sempre lendo os seus textos!