Tinha os olhos cor de ferrugem, como se, há muito em umidade e desuso, não fossem mais à luz. No rosto raríssimos sulcos, esculpidos pelos anos inertes que pouco empregou em contar. Possuía um jeito de caminhar quase manso, as mãos sem gestos, uma espécie de ternura incômoda no sorriso pequeno. Ela era de uma ausência tão pesada que nada lhe tolhia ou empolgava, parecendo estar na vida sem nela ver qualquer significação. Uma estátua, pedra sem dor, diriam vocês se a vissem ultrapassar com igual frieza o casamento desarranjado pela infertilidade, a demissão injusta que carregava na bolsa, em forma de carta, e a morte, que atropelou com demasiada intensidade, o cãozinho que desde a adolescência adivinhava-lhe os pormenores. As perdas, que a toda gente d’alguma maneira tocam, eram em dela se tratando, meras ocorrências a que ela oferecia um alheamento tal que não se podia supor traço de sensibilidade naquela criatura. Contudo, já sabido que a vida inventa mistérios de toda sorte e que tudo pode ser acontecimento embaixo desse céu, um dia estranho acordou com ela certa vez. Pareceu ver no mundo um mundo de solicitude e compreensão e, tão logo se viu na rua, desandou a ocupar-se em corrigir seus trejeitos: deu-se a um andar que era mesmo uma canção; os cabelos muito próximos de um tom real e há tanto sem rédeas que lhes impedissem o tamanho, pareciam incitar o vento e com alguma violência; sem dar conta improvisava uma dança no vai-e-vem que fazia na calçada quando evitava, qual criança encantada num jogo de amarelinha, pisar nos intervalos entre as pedras; as mãos tocavam de quando em quando as têmporas, talvez em busca do calor da vida que sentia brotar no seu rosto. Numa atitude inédita, vinda de dentro da estranha animosidade que sentia, ela não hesitou segundo sequer quando o homem, desconhecido seu, convidou-a para um beijo. Foi assim que Isadora Campos foi dada como desaparecida por si mesma.
Re: A curta história de Isadora Campos
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